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Carta Denúncia do Fórum Comunitário do Porto do Rio de Janeiro
Publicado em 04.01.11 – Por Blog do Eliomar
A zona portuária do Rio de Janeiro vem passando por intensas transformações urbanas decorrentes das intervenções do projeto Porto Maravilha. Neste contexto, desde janeiro de 2011 moradores e entidades culturais da região tem se organizado para discutir as possibilidades de mobilização e resistência aos conflitos gerados pelo projeto. Aos moradores e entidades culturais foram somando-se outros atores como ONGs, universidades, instituições e mandatos parlamentares e formou-se, assim, o Fórum Comunitário do Porto (FCP), que desde então, se constituiu como um espaço público onde são vocalizadas denúncias de violações de direitos humanos e sociais, e são articulados apoios institucionais necessários à ação política de defesa de direitos.
As denúncias apresentadas por moradores são encaminhadas e acompanhadas pelo FCP através da sistematização e articulação necessárias sobre as diversas situações. Nesse sentido, o fórum elaborou a carta a seguir e busca dar apoio aos moradores.
Carta Denúncia do Fórum Comunitário do Porto
Despejos e remoções na área portuária estão se intensificando. Moradores estão sendo diariamente ameaçados. A falta de participação e de transparência das informações sobre o Morar Carioca e Porto Maravilha, ao contrário do anunciado, demonstram que a violação de direitos humanos continua.
Com a proximidade do período do recesso de fim de ano, em que quase tudo para, moradoras e moradores da região portuária estão apavorados. Afinal, a política da secretaria municipal de Habitação da prefeitura do Rio de Janeiro, de negociação caso a caso para realizar despejos forçados por lá, continua. Esta semana estão derrubando a casa de uma família que cedeu à pressão da SMH na Ladeira do Barroso. Na Rua do Livramento, há informações sobre a previsão de uma série de despejos até o final da semana. Desde janeiro, na Ladeira do Barroso, assim como outras localidades da Providência, diversas casas foram pichadas como forma de demarcar futuras remoções e algumas já foram decretadas pela secretaria para que as famílias saiam.
A prefeitura por vezes alega riscos ou justifica a remoção por “interesse público”. Um exemplo são as casas de Márcia e Erasto, alvos constantes de ameaças por parte do poder público. Para se ter uma idéia da confusão dos processos, em uma das investidas da SMH, na promoção de negociação individualizada para retirar as famílias de um edifício situado à Ladeira do Barroso, nº 235, o documento apresentado pela Procuradoria Geral do Município justificava a remoção das casas para obra da Transcarioca, que passa bem longe! Segundo material produzido pela prefeitura, só na Providência estão previstos 832 remoções quase metades dos domicílios da favela, mais de 50 já foram removidas, inclusive do Apê, para dar lugar a um centro esportivo na Ladeira do Faria.
A SMH tem apresentado o projeto de forma superficial e pouco elucidativa para a comunidade. Não mostra análise técnica e demonstra fragilidade naquilo que justificaria as áreas de risco demarcadas. Cabe ressaltar, que no passado diversas obras de engenharia foram realizadas nas encostas da Providência para estabilização e contenção, o que assegura a segurança da favela. Isso demonstra a falta de comprometimento e institucionalidade técnica e jurídica nos processos de despejos, que desrespeitam a legislação urbana e os direitos sociais no Brasil, caracterizando a violação de direitos humanos frente aos parâmetros internacionais.
Os exemplos da falta de transparência e comprometimento com as informações são inúmeros. Não se tem clareza da origem e gestão na ponta dos recursos dos projetos na região. Com isso, se dificulta o controle social dos recursos tanto em termos de prioridade quanto dos gastos realizados.
Não há mandato judicial, nem diálogo amplo, democrático e participativo para que a população compreenda e possa opinar e propor alternativas sobre o projeto previsto para Providência, através do “Morar Carioca”. As reivindicações não têm sido atendidas mesmo com a formação de uma Comissão de Moradores que interpôs uma ação cautelar contra a prefeitura através da Defensoria Pública. Os moradores também tentaram discutir o caso (em vão) na Comissão de Mediação de Conflitos que revelou possuir um “vício de orígem”, pois é uma comissão para mediar e prevenir conflitos causados pelo poder público e que tem na sua coordenação a própria SMH. Além do fato da SMH ter se retirado do processo de mediação porque os moradores não abriram mão do seu direito constitucional de defesa através do Núcleo de Terra e Habitação (NUTH).
Ou seja, a experiência do Rio de Janeiro com o processo de mediação de conflitos urbanos reproduziu o conhecido caminho da “negociação para abrir mão de direitos” quando os conflitos já estão constituídos e a desigualdade é o que baliza as relações.
Ao contrário do que se quer fazer acreditar, os moradores e moradoras da Providência não são contrários à urbanização. Eles reclamam por informação, por participação, pela integridade física e moral de suas casas e de suas famílias e por um projeto de urbanização que atenda as necessidades reais da comunidade: melhoria dos serviços públicos, tais como abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo das águas pluviais e dos resíduos sólidos; melhoria da acessibilidade para os/as moradores/as (e não apenas para fins turísticos) e projetos urbanos que considerem as características históricas, sociais e culturais da comunidade.
Ao que parece, o discurso de que “alguém tem que pagar o preço do que supostamente seria de interesse público”, fala mais alto. O Museu a Céu Aberto, o teleférico e o plano inclinado são de interesse público? Alguém discutiu isso com a população carioca? E com os próprios moradores atingidos? Os moradores apresentam propostas alternativas ao traçado previsto para estes dois modais e repudiam a descaracterização do entorno do Oratório para a construção de um museu e de casas coloniais que nada tem a ver com sua história de ocupação e resistência.
Vale lembrar que a Providência é considerada a primeira favela da cidade. A população pobre dos bairros impactados pelo projeto Porto Maravilha possui pouca informação e não se sente parte do projeto. A memória e história da área portuária do Rio de Janeiro, que guarda na sua população e nas suas construções a história da cidade, estão ameaçadas.
Segundo o artigo 5º da Constituição “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade: (…) II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; (…) XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Atualmente, a prefeitura tem agido por decreto, descumprindo leis discutidas e aprovadas na Câmara de Vereadores, como a lei Orgânica do Município. A legislação urbana brasileira considera a segurança da posse às famílias que residem em imóveis públicos e privados. Na área portuária, há inúmeros imóveis públicos vazios e subutilizados que, conforme a lei do Sistema Nacional de Habitação deveriam ser destinados à moradia popular prioritariamente. Hoje, a justificativa para remover a família da Marcia é a da construção de um conjunto habitacional. Por que não pensar num outro imóvel nas proximidades da favela, na Gamboa, no Santo Cristo, na Saúde? A resposta está no Projeto Porto Maravilha, que atinge todos estes bairros e também vem promovendo cirurgicamente despejos de famílias em imóveis privados com dívidas, passíveis de regularização urbanística a favor dos atuais moradores. A Rua do Livramento é uma das localidades em que alguns os/as moradores/as pela pressão acabam cedendo às negociações da SMH de indenizações ou reassentamento, o que não garante o pleno direito à moradia às famílias despejadas. Outras ainda permanecem e prometem seguir na resistência.
Um exemplo deste processo de desrespeito ao acúmulo já gerado a partir do Estatuto da Cidade, em termos dos instrumentos legais e urbanísticos para o exercício da função social da propriedade e da cidade, é o decreto municipal nº 34522, de 03 de outubro de 2011, que trata das “Diretrizes para demolição de edificações e relocações de moradores em assentamentos populares”. O decreto não reconhece o direito à posse dos moradores e institucionaliza o processo das indenizações pobres para pobres. É importante denunciar que o referido decreto, repete o anterior de 2003, e inicia as diretrizes afirmando “A relocação compulsória de uma moradia, mesmo em casos justificados, deve ser precedida de um entendimento e aceitação, por parte das famílias a serem reassentadas, dos objetivos, condições e benefícios do projeto”. Contudo, a ação da SMH ocorre no sentido de pressionar os moradores afirmando que não há outra solução a não ser a saída deles. Ou seja, o direito de não concordar, afirmado no decreto, e permanecer na moradia não é nem mesmo cogitado.
Enquanto isso, a prefeitura negligencia a situação de famílias que realmente precisam ser reassentadas como é o caso dos impactados pelas chuvas de 2010, como os do Morro dos Prazeres, que até hoje esperam por uma solução para garantia do seu direito pleno à moradia. Esta prefeitura desloca os recursos que deveriam ser investidos onde há um real déficit habitacional a ser atendido, para gerar mais alguns.
A este respeito, é curioso observar que as remoções geradas por projetos urbanos na cidade, como o Porto Maravilha, o Morar Carioca, obras da Copa 2014 e das Olimpíadas de 2016, possuem como alternativa de reassentamento a produção de moradia através do Programa Minha Casa Minha Vida.
Ou seja, um programa que nasceu reivindicando ser uma ação de provisão habitacional para intervir sobre o déficit quantitativo, a despeito das críticas quanto à forma de sua implantação e planejamento sem discussão e controle social pelo SNHIS, é, hoje, utilizado pela cidade do Rio de Janeiro como programa de remoção de moradores de áreas de favelas.
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