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Políticas de radiodifusão: omissão do Congresso, desprezo dos concessionários
A
advertência feita pela deputada Luiza Erundina sobre a omissão e o
desinteresse dos parlamentares no debate sobre a regulamentação da
comunicação se materializou, na forma de uma prova irrefutável, na
audiência pública realizada dia 15 de dezembro na Câmara dos Deputados.
Publicado em 21.12.11 - Por Venício Lima*, original no Observatório da Imprensa
Em debate sobre a regulação da mídia realizado na Associação dos Juízes
do Rio Grande do Sul (Ajuris), em Porto Alegre, em 3 de novembro último,
a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) advertiu:
“Não esperem que os partidos políticos façam algo para enfrentar o atual
esquema de poder da mídia. Há muita omissão no Congresso Nacional sobre
esse tema. Sou uma voz isolada na Comissão de Ciência e Tecnologia,
Comunicação e Informática. Tento apenas incomodar um pouco” (ver aqui).
Se houvesse alguma dúvida sobre a veracidade dessas afirmações – e do
quanto elas alcançam para além do Congresso Nacional – a audiência
pública da CCTCI realizada na manhã de quinta feira (15/12), constitui
uma prova irrefutável.
Convocada por Requerimento da própria deputada Erundina para debater "a
prática de subconcessão, arrendamento ou alienação a terceiros promovida
por concessionários de serviços públicos de radiodifusão sonora e de
sons e imagens sem a autorização competente", a audiência pública foi
simplesmente ignorada por deputados e concessionários de radiodifusão.
Dos oitenta deputados titulares e suplentes da CCTCI (ver abaixo relação
completa dos seus integrantes), apenas quatro, incluída a autora do
requerimento, compareceram, ou seja, 5% do total – Luiza Erundina
(PSB-SP); Bruno Araújo (PSDB-PE); Paulo Foletto (PSB-ES) e Sandro Alexis
(PPS-PR); o representante do Ministério Público não compareceu; e dos
sete representantes dos concessionários convidados – Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação
Brasileira de Radiodifusores (Abra), Grupo Silvio Santos, Rede Record,
Organizações Globo, Grupo Bandeirantes e MIX e Mega TVs – nem sequer um
único compareceu.
Poderia haver atestado maior da veracidade das afirmações da deputada Luiza Erundina do que este?
Breve história da audiência
Em sua intervenção, a deputada Erundina esclareceu que, na
verdade, aquela era a terceira tentativa de se colocar a prática ilegal
de arrendamento do serviço público de radiodifusão em discussão na
CCTCI. A primeira tentativa ocorreu em 2009, quando a OAB Nacional
encaminhou à CCTCI parecer sobre a matéria, elaborado pelo jurista Fábio
Konder Comparato, solicitando ao seu presidente que o distribuísse aos
membros (ver abaixo a íntegra do parecer). O então presidente da CCTCI,
deputado Eduardo Gomes (PSDB-TO), não distribuiu o parecer nem colocou o
assunto em discussão.
Em 2011 a deputada Erundina apresentou requerimento solicitando a
realização da audiência pública que chegou a ser marcada para novembro,
mas acabou adiada sine die exatamente porque não se obteve confirmação
de presença dos concessionários. Finalmente, ao apagar das luzes do ano
legislativo, a audiência pública foi “realizada” no dia 15 de dezembro.
O que está em jogo?
Dados de arrendamento de concessões de três redes de televisão, somente no estado de São Paulo, revelam:
(1) TV Gazeta: arrendamento de 37 horas e 5 minutos por semana, assim distribuídos:
2a a 6ª feiras
6h - 8h - Igreja Universal do Reino de Deus
20h - 22h - Igreja Universal do Reino de Deus
1h - 2h - Polishop
Sábado
6h - 8h - Igreja Universal do Reino de Deus
20h - 22h - Igreja Universal do Reino de Deus
23h - 2h - Polishop
Domingo
6h - 8h - Igreja Universal do Reino de Deus
8h - 8h30 - Encontro com Cristo
14h - 20h - Polishop
0h - 2h – Polishop
(2) Rede TV!: arrendamento de 30 horas e 25 minutos por semana (tempo estimado), assim distribuídos:
Domingo
6h - 8h - Programa Ultrafarma
8h - 10h - Igreja Mundial do Poder de Deus
10h - 11h - Ultrafarma Médicos de Corpos e Alma
16h45 - 17h - Programa Parceria5
3h - Igreja da Graça no Seu Lar
2a e 3ª feiras
12h - 14h - Igreja Mundial do Poder de Deus
14h - 15h - Programa Parceria 5
17h10 - 18h10 - Igreja da Graça - Nosso Programa
1h55 - 3h - Programa Nestlé
3h - Igreja da Graça no Seu Lar
4a feira
12h - 14h - Igreja Mundial do Poder de Deus
14h - 15h - Programa Parceria 5
17h10 - 18h10 - Igreja da Graça - Nosso Programa
3h - Igreja da Graça no Seu Lar
5a e 6ª feiras
12h - 14h - Igreja Mundial do Poder de Deus
17h10 - 18h10 - Igreja da Graça - Nosso Programa
3h - Igreja da Graça no Seu Lar
Sábado
7h15 - 7h45 - Igreja Mundial do Poder de Deus
7h45 - 8h - Tempo de Avivamento
8h - 8h15 - Apeoesp - São Paulo
8h15 - 8h45 - Igreja Presbiteriana Verdade e Vida
8h45 - 10h30 - Vitória em Cristo
10h30 - 11h - Igreja Pentecostal
11h - 11h15 - Vitória em Cristo 2
12h - 12h30 - Assembléia de Deus do Brasileiro
12h30 - 13h30 - Programa Ultrafama
2h - 2h30 - Programa Igreja Bola de Neve
3h - Igreja da Graça no Seu Lar
(3) Rede Bandeirantes: arrendamento de 24 horas e 35 minutos por semana (tempo estimado), assim distribuídos:
2a a 6a feira
5h45 - 6h45 (Religioso I)
20h55 - 21h20 (Show da Fé)
2h35 (Religioso II)
Sábado e domingo
5h45 - 7h (Religioso III)
4h (Religioso IV)
No parecer que elaborou para a OAB em 2009, o professor Comparato
concluiu pela completa ilegalidade da pratica afirmando que “o direito
de prestar serviço público em virtude de concessão administrativa não é
um bem patrimonial suscetível de negociação pelo concessionário no
mercado.
Não se trata de um bem in commercio.
O concessionário de serviço público não pode, de forma alguma, arrendar
ou alienar a terceiro sua posição de delegatário do Poder Público. O
que o direito brasileiro admite (Lei nº 8.987, de 13/02/1995, art. 26) é
a subconcessão de serviço público, mas desde que prevista no contrato
de concessão e expressamente autorizada pelo poder concedente; sendo
certo que a transferência da concessão sem prévia anuência do poder
concedente implicará a caducidade da concessão (mesma lei, art. 27)”.
O que fazer?
A omissão de parlamentares em relação às políticas públicas de
comunicações não constitui novidade. Está no Supremo Tribunal Federal,
desde novembro de 2010, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão (ADO) que pede à Corte que declare “a omissão inconstitucional
do Congresso Nacional em legislar sobre as matérias constantes dos
artigos 5°, inciso V; 220, § 3º, II; 220, § 5°; 211; 222, § 3º, todos da
Constituição Federal, dando ciência dessa decisão àquele órgão do Poder
Legislativo, a fim de que seja providenciada, em regime de urgência, na
forma do disposto nos arts. 152 e seguintes da Câmara dos Deputados e
nos arts. 336 e seguintes do Senado Federal, a devida legislação sobre o
assunto” (ver aqui).
A recusa sistemática dos empresários de mídia em discutir
democraticamente questões ligadas ao setor também não constitui qualquer
surpresa. Desprezam e se ausentam da CCTCI exatamente como boicotaram a
1ª Conferência Nacional de Comunicação realizada em dezembro de 2009.
Diante disso, ao final da audiência pública do dia 15/12, a deputada
Luiza Erundina anunciou que (1) encaminharia à Mesa Diretora da Câmara
dos Deputados proposta de fiscalização e controle para que o Tribunal de
Contas da União (TCU) realize auditoria nos contratos de permissões e
concessões das empresas de radiodifusão; e (2) ao Ministério Público,
representação para que proceda a uma investigação da prática ilegal de
subconcessão, arrendamento ou alienação a terceiros, promovida por
concessionários de radiodifusão.
Perspectivas
Infelizmente a advertência da deputada Luiza Erundina no debate
da Ajuris está correta. Não se consegue debater ilegalidades como esta
na CCTCI da Câmara dos Deputados, sua comissão específica.
Além disso, mais um ano termina sem que se conheça o prometido projeto
do governo Dilma Rousseff de marco regulatório para as comunicações. Ele
necessariamente terá que contemplar questões como a tratada aqui. E,
por óbvio, terá que tramitar na CCTCI do Congresso Nacional.
O(a) eventual leitor(a) concordará que as perspectivas confirmam um
longo e difícil caminho a ser percorrido no rumo da regulação da mídia
para a democratização das comunicações.
A ver.
***
Membros da CCTCI (ver aqui, acesso em 15/12/2011)
Presidente: Bruno Araújo (PSDB/PE)
1º Vice-Presidente: Antonio Imbassahy (PSDB/BA)
2º Vice-Presidente: Silas Câmara (PSD/AM)
3º Vice-Presidente: Ruy Carneiro (PSDB/PB)
Parecer do jurista Fábio Konder Comparato (outubro de 2009)
Examino aqui a validade, perante a Constituição e as leis pertinentes,
do ato, formal ou informal, de cessão ou arrendamento a terceiros de
serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, efetuado por um
concessionário.
1.- A premissa fundamental do raciocínio a seguir desenvolvido é o
reconhecimento de que as atividades de radiodifusão sonora e de sons e
imagens constituem, pela sua própria natureza, um serviço público, o
qual só pode ser prestado por particulares mediante autorização,
concessão ou permissão da União Federal (Constituição Federal, art. 21,
inciso XII, alínea a).
Releva notar que o adjetivo publicus, -a, -um, na linguagem dos
iurisprudentes, designava o que pertencia em comum a todo o povo romano,
em oposição aos bens de propriedade privada. Eis porque, com a habitual
concisão latina, Cícero pôs na boca de Cipião, o Africano, a definição
precisa de república: res publica, res populi. Por sua vez, o verbo
publico, -are tinha o sentido de adjudicar ao povo um bem próprio de
outrem.
Serviço público é, por conseguinte, aquele prestado em benefício do
povo. Em assim sendo, como salienta a doutrina mundial sem discrepância,
toda essa matéria obedece, entre outros, a dois princípios fundamentais
do direito público. O primeiro deles é o de que o Estado tem o dever
indeclinável de prestá-lo. O segundo é que, na prestação de um serviço
público, o bem comum do povo está sempre acima das conveniências ou
interesses particulares; não só dos administrados, mas também dos
próprios órgãos do Estado (redução de despesas financeiras, por
exemplo).
2.- Da estrita obediência ao princípio republicano da supremacia do bem
comum do povo sobre os interesses privados, decorre a conclusão de que, a
rigor, só deve haver concessão quando o Estado não está, absolutamente,
em condições de prestar diretamente o serviço ao povo. Sem adotar o
radicalismo da Escola de Direito Administrativo de Léon Duguit, para a
qual o Estado nada mais seria do que um conjunto de serviços públicos, é
evidente que o serviço do povo representa uma função essencial do
Estado.
Por isso mesmo, pretender, sob a evidente influência da ideologia
liberal-capitalista, que a concessão de serviço público ou, o que é
muito pior, a sua privatização é a regra e o exercício direto do serviço
público pelo Estado, a exceção representa um colossal disparate.
Acontece que essa visão privatista da vida pública está há muito
arraigada entre nós. Já na primeira metade do século XVII, Frei Vicente
do Salvador a denunciava, afirmando com todas as letras: “Nem um homem
nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual
do bem particular”.
Eis por que, tradicionalmente, a nossa ordenação jurídica tem sempre
duas faces. Há o direito oficial, de bom quilate, equiparado aos
melhores do mundo. Mas há também, por trás dele, um direito oculto, que
acaba por prevalecer sobre o direito oficial, quando este se choca com
os interesses dos poderosos.
No campo das concessões de rádio e televisão, os exemplos dessa
duplicidade jurídica abundam, valendo aqui citar apenas dois deles.
O Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962, ainda em vigor,
determina que “as emissoras de radiodifusão, inclusive televisão,
deverão cumprir sua finalidade informativa, destinando um mínimo de 5%
(cinco por cento) de seu tempo para transmissão de serviço noticioso”
(art. 38, alínea h). Dispõe também que “o tempo destinado na programação
das estações de radiodifusão à publicidade comercial não poderá exceder
de 25% (vinte e cinco por cento) do total” (art. 124).
Malgrado a clareza dessas normas legais – ainda em vigor, repita-se –,
ninguém ignora que bom número de empresas concessionárias do serviço
público de rádio e televisão as descumprem, sem que tal fato seja
minimamente levado em consideração pelo Poder Executivo ou pelo
Congresso Nacional, quando da renovação da concessão.
3.- Registre-se que a concessão a um particular da prestação de serviço
público é mera delegação feita pelo Poder Público. Assim a define a Lei
nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 (art. 2º, II), que dispõe sobre o
regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos,
previsto no art. 175 da Constituição Federal.
Ou seja, não há nem pode haver alienação de funções públicas a
particulares. Os concessionários de serviço público agem de maneira
análoga aos substitutos processuais no processo civil: atuam em nome
próprio, mas em razão de competência alheia.
4.- É exatamente por essa razão que a Constituição Federal, no já citado
art. 175, determina que a prestação de serviços públicos sob regime de
concessão ou permissão realizar-se-á “sempre através de licitação”.
No entanto, como já foi anotado, em matéria de concessão de serviço
público de radiodifusão sonora ou de sons e imagens, a concessão pública
costuma ser “deferida por simples favoritismo, em proveito de
apaniguados ou como instrumento de vergonhosa barganha política”.
Frise-se que a relação de concessão de serviço público é personalíssima.
O Estado confia a prestação do serviço a certa e determinada pessoa ou
entidade, considerada a mais apta, em confronto com todas as
concorrentes, a prestar um serviço adequado ao pleno atendimento dos
usuários (Lei nº 8.987, de 13/02/1995, art. 6º).
5.- Pelo que se acaba de expor, percebe-se, em rigorosa lógica, que o
direito de prestar serviço público em virtude de concessão
administrativa não é um bem patrimonial suscetível de negociação pelo
concessionário no mercado. Não se trata de um bem in commercio. O
concessionário de serviço público não pode, de forma alguma, arrendar ou
alienar a terceiro sua posição de delegatário do Poder Público.
O que o direito brasileiro admite (Lei nº 8.987, de 13/02/1995, art. 26)
é a subconcessão de serviço público, mas desde que prevista no contrato
de concessão e expressamente autorizada pelo poder concedente; sendo
certo que a transferência da concessão sem prévia anuência do poder
concedente implicará a caducidade da concessão (mesma lei, art. 27).
Ora, mesmo em tais condições, uma grande autoridade na matéria enxerga
nesse permissivo legal da subconcessão de serviço público uma flagrante
inconstitucionalidade, pelo fato de burlar a exigência de licitação
administrativa e desrespeitar com isso o princípio da isonomia.
6.- O mesmo regime jurídico, assim estabelecido de modo geral para as
transferências de concessão de serviço público, aplica-se às concessões
de radiodifusão sonora e de sons e imagens.
O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117, de 27 de agosto
de 1962) comina a pena de perempção da concessão ou autorização do
serviço público, se a concessionária ou permissionária decair do direito
à renovação, em razão do descumprimento do contrato de concessão ou
permissão, ou das exigências legais e regulamentares (art. 67).
Em conclusão, tenho por nulos e de nenhum efeito os atos de arrendamento
de concessão de serviços públicos de radiodifusão sonora e de sons e
imagens, bem como toda e qualquer transferência, expressa ou oculta,
formal ou informal, do status de concessionário desses serviços
públicos, realizada sem previsão no contrato de concessão e sem a prévia
anuência do poder concedente, devendo-se, em qualquer hipótese,
proceder a nova licitação.
Ao tomar conhecimento de tais ilicitudes, por ocasião do exercício de
sua competência de supervisão das decisões do Poder Executivo nessa
matéria, segundo o disposto no art. 223 da Constituição Federal, o
Congresso Nacional tem o dever de se pronunciar pela não-renovação do
contrato de concessão.
Importa saber que essa competência supervisora do Congresso Nacional
sobre os atos de outorga e renovação de concessões, permissões e
autorizações para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens
não é mera apreciação de conveniência, mas um juízo de conformidade com a
Constituição e as leis em vigor.
*Professor Titular de Ciência
Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de
Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus,
2011.
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