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Portaria 460 (Norma 01/11) quer calar a voz das rádios comunitárias
Publicado em 15.12.11 - Por Dioclécio Luz* com colaboração de João Malerba, na página da Amarc Brasil
Este
trabalho mostra como o Ministério das Comunicações (MC) e, por
extensão, o governo Dilma Rousseff, fazendo uso de dispositivos da
legislação, discrimina as rádios comunitárias (RC), dando continuidade a
uma política estatal que historicamente tem criado mecanismos para
reprimir e assim inviabilizar a comunicação popular. Também mostra que
este Governo utiliza práticas típicas de regimes ditatoriais.
Analisamos
a Portaria 460, que contém a Norma 01/11, assinada[1] pelo Ministro das
Comunicações, Paulo Bernardo Silva; ela estabelece procedimentos para
outorga de rádios comunitárias. Avaliada em seus aspectos técnicos e
políticos, revela-se nesta Norma uma intencionalidade de Governo, ou de
Estado, em excluir o segmento das rádios comunitárias.
Usaremos
como metodologia os estudos de Foucault, e em especial, o seu conceito
de poder disciplinar. Também faremos uso da análise de discurso, método
corrente no campo comunicacional. Inicialmente é feita uma análise da
Norma, identificando os seus aspectos essenciais; em seguida, escolhemos
oito itens da legislação e comparamos com práticas adotadas por regimes
ditatoriais.
Introdução A
Norma pode ser vista como um discurso[2] institucional. E, por ser uma
Norma técnica, é um discurso que se apresenta semioticamente com
“virtudes”: ela teria autonomia(teria sido construída em ambiente alheio
aos conflitos do setor), seria necessária(ao processo burocrático),
seria apolítica(teria sido construída em ambiente alheio à política). O
discurso técnico manifesta a retórica da superioridade na medida em que
se eleva sobre as pessoas comuns. É como se o “técnico” (ou a
tecnologia) se aproximasse da metafísica, do divino. Quem ousaria
questionar o técnico? Considere-se,
porém que, embora uma Norma se constitua num discurso, e, portanto,
tenha sua ideologia, não necessariamente ela é um posicionamento
opressor. O fato de ser Norma não implica em opressão ou discriminação.
No caso da Norma 01/11, porém, isso acontece. Parece haver uma vontade
política em oprimir determinadas pessoas, as que fazem RC.
Conforme
Edgar Morin, o discurso técnico (como também o científico) expressa uma
ideologia. De fato, o discurso técnico, o texto expresso nessa Norma, é
ideológico, político. Mais exatamente, observamos que a Norma: a) é um
discurso político, com uma intencionalidade política; b) o discurso
político vem mascarado como discurso técnico; c) a burocracia, que faz
parte do discurso técnico, é utilizada estrategicamente (e
camufladamente) para sedimentar o posicionamento ideológico. O
discurso técnico expresso nesta Norma objetiva manipular os
interessados. O manipulador, o Governo, quer submeter (manipular) os que
querem fazer rádio comunitária.
A
manipulação envolve não apenas o poder, mas especificamente abuso de
poder, ou seja, dominação. Mais especificamente, a manipulação implica o
exercício de uma forma de influência deslegitimada por meio do
discurso: os manipuladores fazem os outros acreditarem ou fazerem coisas
que são do interesse do manipulador, e contra os interesses dos
manipulados (VAN DIJK, 2008, p. 234). Esse mascaramento do discurso, essa tentativa de manipulação das pessoas, é um ato ilegítimo. Definimos
como ilegítimas todas as formas de interação, comunicação ou outras
práticas sociais que servem apenas aos interesses de uma parte e são
contra os interesses dos receptores. (VAN DIJK, 2008, p. 238).
“Vigiar
e Punir” é o título de um célebre estudo do sociólogo francês Michel
Foucault sobre os métodos adotados historicamente para conter e punir os
criminosos[3]. Trata-se de um “estudo cientifico, sobre a evolução
histórica da legislação penal e respectivos meios coercitivos e
punitivos adotados pelo poder público”4. Foucault revela que, a partir
do século XIX, um conjunto de práticas foram sistematizadas e têm sido
usadas até hoje nas mais diversas instituições – elas constituem a
“ordem disciplinar”. Há um “poder disciplinar” que aplica tais práticas
com o objetivo de humilhar e controlar, vigiar e punir aqueles que
poderiam desobedecer ao poder.
A
punição e a vigilância são poderes destinados a educar (adestrar) as
pessoas para que essas cumpram normas, leis e exercícios de acordo com a
vontade de quem detêm o poder. A vigilância é uma maneira de se
observar a pessoa, se esta está realmente cumprindo com todos seus
deveres – é um poder que atinge os corpos dos indivíduos, seus gestos,
seus discursos, suas atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana. A
vigilância tem como função evitar que algo contrário ao poder aconteça e
busca regulamentar a vida das pessoas para que estas exerçam suas
atividades. Já a punição é o meio encontrado pelo poder para tentar
corrigir as pessoas que infligem as regras ditadas pelo poder e ela
também é o meio de impedir que essas pessoas cometam condutas puníveis
(através da punição as pessoas terão receio de cometer algo contrário às
normas do poder). A vigilância e a punição podem ser encontradas em
várias entidades estatais, como hospitais, prisões e escolas5.
A Norma O
objetivo da Norma 01/11 é regulamentar os procedimentos de outorga de
rádios comunitárias. Ela substitui a Norma 01/04, que, por sua vez,
substituiu a Norma 01/98. Antes de publicar esta nova Norma em novembro
de 2011, em junho deste ano o Governo submeteu o texto à “consulta
pública”. A Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC-Brasil)
apresentou diversas sugestões6. Nenhuma delas foi acatada.
Eis os principais elementos dessa nova norma:
I. Referências legais (2.1 a 2.11)
São estas as referências legais explícitas na Norma: Constituição
Federal; Lei 4.117/62, modificada pelo Decreto 236/67, sancionado pelo
general Castelo Branco; Lei 9.612/98, que regulamenta as rádios
comunitárias; Lei 10.610/02, que amplia o prazo de outorga de 3 para 10
anos; Medida Provisória 2216-37/01, que concede autorização provisória
caso o Congresso Nacional não se pronuncie em três meses; Decreto
52.795/63, que regulamenta a Lei 4.117/62; Decreto 2.615/98, que
regulamenta a Lei 9.612/98; Resolução 67 (12/11/98) da Anatel, com o
Regulamento técnico para as rádios FM; Resolução 60 (24/09/98) da Anatel
estabelece o canal 200 (faixa de 87,9 a 88,1 MHz); Resolução 356 da
Anatel (11/03/04), estabelecendo mais canais (faixa de 87,4 a 87,8
MHz)7; Plano de Referência para Distribuição de Canais do serviço de
Radiodifusão Comunitária (PRRadCom).
Analisando a legislação citada percebemos que há uma intenção política de Estado em coibir o setor. Vejamos:
**
Decreto 236/67.Foi criado pela ditadura militar. O artigo 70 foi
inserido na Lei 4.117/62 com o objetivo de reprimir os inimigos da
ditadura, os “subversivos”, “os terroristas”, criando penas severas para
quem operasse sistema de telecomunicações sem autorização. **
Decreto 2.615/98. Contémilegalidades. Uma delas: limita o alcance da
emissora a 1 Km quando a Lei 9.612/98 não faz essa restrição. **
Resoluções 60 e 356.Disponibilizam frequências abaixo de 88 MHz, fora
do dial. O espectro de rádio FM, por acordos internacionais, está na
faixa que vai de 88 a 108 MHz.
Ausências: a)
A Norma não cita a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), 9.472/97, mas
os agentes da Anatel usem o art. 183 dessa Lei para fechar rádios sem
autorização. b)
A Norma não incluiu entre as suas referências a Lei nº 10.871/04, que
permite ao agente da Anatel buscar e apreender equipamentos.
É
importante lembrar que um fato precede a criação da Lei 10.871/04. Em
decisão liminar de 1997, o Supremo Tribunal Federal (STF), respondendo a
ADIN impetrada pelo PT e PDT contra o artigo 19 da Lei Geral de
Telecomunicações, que dava esse poder aos agentes da Anatel, decidiu
favoravelmente pelo veto a tal artigo. Isto é, agentes da Anatel não
podem fazer esse tipo de ação, é inconstitucional. Porém, ao assumir o
Governo, o presidente Lula encaminhou Projeto de Lei regulamentando as
ações dos fiscais de agências. Esse projeto se tornou a Lei 10.871/04 e
agora eles têm o poder de polícia que o STF negou. Isto é, o que era
inconstitucional agora é legal.
II. Apoio cultural (3.1 e outros) Diz a Norma que: 3.1
Apoio cultural – É a forma de patrocínio limitada à divulgação de
mensagens institucionais para pagamento dos custos relativos à
transmissão da programação ou de um programa específico, em que não
podem ser propagados bens, produtos, preços, condições de pagamento,
ofertas, vantagens e serviços que, por si só, promovam a pessoa jurídica
patrocinadora, sendo permitida a veiculação do nome, endereço e
telefone do patrocinador situado na área da comunidade atendida.
A Lei 9.612/98, porém, trata de patrocínio, mas não manifesta o que entende por apoio “cultural”. Diz o texto: Art.
18. As prestadoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária poderão
admitir patrocínio, sob a forma de apoio cultural, para os programas a
serem transmitidos, desde que restritos aos estabelecimentos situados na
área da comunidade atendida.
Portanto,
há uma diferença muito grande entre o que diz a Lei e o que diz a
Norma. A Lei permite o patrocínio dos programas restringindo-os aos
estabelecimentos instalados na área em que funciona a rádio comunitária.
A Norma, porém, restringiu mais ainda ao estabelecer que esse
patrocínio (apoio cultural) não pode divulgar ofertas, produtos,
valores. Qual a lojinha, mercado ou empresa de serviços do lugar que vai
querer patrocinar na rádio se a emissora está proibida de informar o
que tal estabelecimento oferece e os preços?
Até
então não existia definição de apoio cultural. Nem a Lei nem o Decreto
2.615/98, que regulamenta a Lei, tratam disso. Tampouco há Resoluções
neste sentido. Nem mesmo as duas normas anteriores definiram o tema. A
bem da verdade, na legislação brasileira não havia definição para apoio
cultural.
Agora há. E essa definição, não por acaso, é
exatamente a que queriam as grandes redes de comunicação. Elas não
aceitariam publicidade nas rádios comunitárias porque o mercado lhes
pertence.
Mas
como a rádio comunitária vai sobreviver se não faz propaganda? Este é
um problema real; hoje a grande maioria das RCs não tem sustentabilidade
econômica exatamente porque não podem vender publicidade.
Em termos políticos, o Governo tinha duas opções:
**
1) Atender às rádios comunitárias.Para tanto, criaria condições de
sustentabilidade das RCs ao definir apoio cultural conforme essa
realidade; ou não daria nenhuma definição e valeria como está na lei. **
2) Atender as grandes redes de comunicação.Os empresários e as
religiões que dominam o setor queriam uma definição de apoio cultural
que impedisse a propaganda de produtos, serviços, bens, nas suas
“concorrentes”, as rádios comunitárias.
O Governo, como faz ver a Norma, escolheu a segunda alternativa.
E
o Governo nem pode alegar que desconhece outra proposta. A Amarc, como
observamos, entre as tantas sugestões feitas (e descartadas pelo
Governo), encaminhou uma definição para apoio cultural bem mais adequada
a este segmento da comunicação. Diz o texto:
Apoio
cultural – É a forma de patrocínio dos programas da emissora, para
pagamento dos custos relativos à transmissão da programação, do operador
ou locutor, ou de um programa específico. Deve se limitar a 25% da
programação (como estabelece o art. 28, Decreto 52.795/63, para as
outras modalidades de comunicação)[7].
Cabe
registrar que, antes de existir uma definição de apoio cultural, a
Anatel já usava esta que agora se impõe. E aplicou multas em diversas
RCs por não cumprirem essa regra inexistente.
Este
abuso da Anatel (punir sem ter norma legal para tanto) contou com a
colaboração do Ministério das Comunicações, que tornou público uma regra
inexistente como se fosse norma legal, quando era somente um
posicionamento oficial (e político). Bem antes da Norma ser publicada,
esse texto estava lá no site do MC como resposta às “perguntas mais
frequentes”[8]. Os redatores da Norma copiaram o texto (que se encontra
até hoje no site do MC) e colaram na nova Norma. Ou seja, o Executivo já
impunha essa definição como se fosse regra, e multou quem não a
cumpriu! Há duas irregularidades aqui: a Anatel multou com base numa
norma que não existia; o MC divulgou como regra legal o que não era. Com
base nisso, todos que foram multados podem contestar a punição na
Justiça.
A
questão da sustentabilidade mereceria um outro olhar do Estado, porque
este é um dos grandes problemas (senão o maior) que enfrentam as rádios
comunitárias no país. Sobre o tema assim se manifestou a Amarc:
Para
assegurar a sustentabilidade das rádios comunitárias, a AMARC Brasil
sugere que as emissoras tenham a possibilidade de buscar múltiplas
formas de financiamento, como doações, apoios, propaganda oficial,
fundos públicos, e também publicidade oficial. Na verdade, a solicitação
faz eco a recomendações internacionais: a Declaração Conjunta do
Relator Especial das Nações Unidas para a Liberdade de Opinião e
Expressão (ONU), do Representante da Organização de Segurança e
Cooperação na Europa para a Liberdade dos Meios de Comunicação (OSCE),
da Relatora Especial da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos
Povos sobre a Liberdade de Expressão e Acesso à Informação (CADHP) e
Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos
Estados Americanos (OEA), de 2007, afirmam a necessidade da radiodifusão
comunitária ter acesso a publicidade. A AMARC entende que a publicidade
não descaracteriza a rádio comunitária, desde que a gestão seja feita
de forma coletiva (assegurando a decisão conjunta sobre a escolha das
parcerias e sobre o investimento dos recursos) e todo o recurso seja
reinvestido na própria emissora (ou seja, sem fins de lucro).[9]
III. Burocracia (7.1 e outros) A Norma 01/11 exige uma centena de papeis da entidade que se habilita à outorga.
Ao
invés de facilitar o processo de obtenção de outorga, o Estado aumentou
ainda mais a burocracia, gerando constrangimentos, restrições e
dificuldades que não favorecem a radiodifusão comunitária no Brasil.
Não
seria exagero afirmar que o MC vai necessitar construir um novo prédio
para depositar a grande quantidade de papeis gerados pelos processos; e
também vai necessitar contratar pessoal somente para conduzir esses
papeis para os seus devidos lugares, e contratar mais gente para
analisar e decidir sobre os processos. Quanto vai custar essa burocracia
ao erário público? Considerando o número de processos em tramitação,
algo em torno de vinte mil10, o que esperar disso?
A burocracia estabelecida pela Norma (8.1.d) exige uma lista… De
todos os associados pessoas físicas, com o número do CPF, número do
documento de identidade e órgão expedidor mais o endereço de residência
ou domicílio, bem como de todos os associados pessoas jurídicas, com o
número do CNPJ e endereço da sede.
Qual
a finalidade desta atitude? Controlar quem se associa? Repassar esses
dados para os órgãos de inteligência? Qual o interesse do Estado em
saber quem faz parte da associação? Agora, imagine-se o calhamaço que
vai render uma associação com 1 mil associados? Este número não é algo
extraordinário, afinal se trata de uma comunidade. Em Heliópolis, São
Paulo, por exemplo, moram 125 mil pessoas. O que o Ministério das
Comunicações pretende fazer com uma lista contendo os dados de centenas
ou milhares de pessoas, com a especificação de nome, endereço, CPF? Vai
repassar para a ABIN11? Vai verificar a autenticidade de cada um?
Estamos diante do Big Brother de George Orwell? Estamos tratando de
métodos fascistas ou nazistas? Ao que parece temos aqui uma prática
comum de regimes ditatoriais objetivando controlar as pessoas.
Outros
elementos ditatoriais foram incorporados à burocracia na forma de
“declarações” a serem encaminhadas ao Poder. Aparentemente são
solicitações sem sentido. Por exemplo, é solicitado aos dirigentes das
emissoras declarações de que seguirão a norma legal. Ora, qual a lógica
em solicitar de concessionário de serviço público papel assinado dizendo
que ele vai seguir a lei? Uma insensatez? Não.
Os que redigiram essa Norma não são insensatos. Pelo contrário. Tudo
indica, eles foram colocados na função com o objetivo de criar um
rigoroso sistema de controle sobre as rádios comunitárias e sobre a
comunidade que elas atendem. Percebe-se que há uma lógica no processo e
ele foi determinado por uma postura ideológica.
Convém
notar, ainda, que a aparentemente insana papelada repete exigências já
estabelecidas pela legislação. Eis a lista de algumas dessas
declarações:
a)
Declaração de que os dirigentes da RC residem dentro do círculo com 1
Km de raio; espaço reservado pelo Estado para alojar as RCs – uma área
cercada eletromagneticamente. b) Declaração de que a entidade não é executante de qualquer outro serviço de radiodifusão. c) Declaração de que, quando solicitada, a entidade vai apresentar o projeto técnico. Esta
parece a mais absurda. Afinal, a entidade sabe que, de acordo com a
legislação, ela tem que apresentar projeto técnico; se não apresentá-lo
não consegue outorga. Mesmo assim é preciso declarar “no papel” que vai
apresentá-lo? d) Declaração de que a entidade não mantém vínculos que a subordinem com partidos ou religiões. e)
Declaração, assinada por todos os seus dirigentes, comprometendo-se “ao
fiel cumprimento das normas estabelecidas para o Serviço”.
A
lista de declarações insensatas não acaba aí. Quando a RC for renovar
sua outorga deve apresentar outras declarações do gênero. É preciso
declaração de que a emissora obedece às normas técnicas (20.3, a); de
que a emissora não veicula anúncios comerciais, mas somente apoio
cultural como diz a Norma (20.3; f.1); de que a rádio reserva 5% para o
noticiário (20.3, f.2); de que cumpre a finalidade constitucional de
promover a cultura.
Para
renovação, além destas declarações “insensatas”, também é solicitado um
monte de papeis, incluindo um laudo técnico de vistoria (vigilância),
e, mais uma vez, a lista de associados. O Estado não abre mão de
controlar os que serão instalados nesse campo de concentração
eletromagnético.
IV. Proselitismo Diz a Norma: 21.8 É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária.
Mas
o que é proselitismo? A Norma 01/11, que teve o cuidado em definir
apoio cultural, não abordou a questão do proselitismo. Por quê? Por
razões políticas?
A
Lei 9.612/98, em seus artigos 4º e 11, proíbe a prática do proselitismo
religioso e político, bem como o comando da emissora comunitária por
entidades religiosas ou político-partidárias. Diz o texto: Art 4º As emissoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária atenderão, em sua programação, aos seguintes princípios:
……………. § 1º É vedado o proselitismode qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária. Art.
11. A entidade detentora de autorização para execução do Serviço de
Radiodifusão Comunitária não poderá estabelecer ou manter vínculos que a
subordinem ou a sujeitem à gerência, à administração, ao domínio, ao
comando ou à orientação de qualquer outra entidade, mediante
compromissos ou relações financeiras, religiosas, familiares,
político-partidárias ou comerciais. O
Governo, porém, não obedece a Lei. E tem concedido autorizações de
rádios comunitárias para instituições religiosas. Como exemplo citamos
dois casos:
Processo
nº 53770.000456/99. Licença Definitiva para a “Associação Comunitária
Nossa Senhora de Copacabana”, localizada na rua Hilário Gomes, 36,
Copacabana, Rio de Janeiro. No local funciona a Igreja Nossa Senhora de
Copacabana.
Processo
nº 53000.000210/00. Autorização concedida à “Associação de Assistência
Social Casa da Benção”, localizada, de acordo com o MC, à Área Especial 5
– Setor F Sul Taguatinga Sul, Distrito Federal. A Catedral da Casa
Bênção funciona no mesmo endereço, com o nome de fantasia de “Rádio
ondas da bênção”[13].
O
Executivo – Ministério das Comunicações, Anatel ou Casa Civil – não
pode nem alegar dificuldades em localizar essas emissoras. A Casa da
Benção localiza-se a 20 Km do Ministério das Comunicações. Copacabana,
um bairro conhecido no mundo, fica no Rio de Janeiro, e essa rádio da
igreja está instalada no prédio onde funciona a Igreja Católica. Tais
exemplos de ilegalidades evidentes demonstram haver uma cumplicidade do
Governo com essas religiões.
Estudo
realizado em 2007 pelo ex-professor da UnB, Venício Lima, e pelo
consultor da Câmara dos deputados, Cristiano Lopes, revela que oprocesso
de outorga de emissoras comunitárias está submetido a influências
religiosas e políticas [14]. Diz o estudo que mais da metade das
autorizações concedidas pelo Ministério das Comunicações foram obtidas
por políticos e religiões. Em contrapartida, muitas rádios comunitárias
de qualidade tiveram seu processo arquivado ou protelado porque não
tinham padrinhos (sacerdotes ou políticos) para fazerem avançar os
processos.
Há
uma relação histórica de subserviência do Estado em relação às
religiões; o elevado número de outorgas de rádios e TVs sob controle
deste setor sacramenta a relação15. Daí, não é de estranhar que a nova
Norma abstenha-se de tratar do tema proselitismo. É uma atitude de
proteção aos seus aliados – igrejas e políticos – que usam as emissoras
(inclusive rádios comunitárias) para propaganda dos seus interesses;
para fazer proselitismo. A situação atual é esta: a lei proíbe o
proselitismo, mas, na falta de uma definição para o que é proselitismo
não há como identificar e punir os infratores. O Governo optou por
deixar como está.
V. Vigilância e perseguição Diz a Norma 01/11 que o MC solicitará da entidade interessada os seguintes documentos: 10.8: a)
certidão de setores de distribuição dos foros criminais dos lugares em
que cada dirigente tenha residido nos últimos cinco anos, da Justiça
federal, Estadual e Eleitoral. b)
folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia dos estados nos
quais os dirigentes da entidade requerente residiram nos últimos cinco
anos. E mais: 10.8.2
Os documentos mencionados no subitem10.8 servirão ao exame da
idoneidade da entidade interessada e de seus dirigentes pelo Ministério
das Comunicações, o qual indeferirá os pleitos de habilitação daqueles
que não lograrem demonstra-se idôneos. (grifo nosso). Aqui
o Governo deturpa o conceito de idoneidade, colocando na mesma situação
todos que têm problemas na Justiça. Ocorre que nem todos que foram ou
estão sendo processados pela Justiça são criminosos. Vejamos.
Hoje
o Executivo faz uso de dois dispositivos “legais” para coibir as
emissoras que operam sem autorização. O artigo 70 da Lei 4117/62 (CBT)
alterado pelo Decreto 236/67, assinado pelo General Castelo Branco, e o
Art. 183 da Lei 9.472/97 (LGT). O Governo considera que operar emissora
sem autorização é crime, e a Justiça tem processado e condenado centenas
de pessoas por este “crime”. Na
verdade, essas pessoas tentaram exercer o direito à comunicação,
consagrado na Constituição Federal e em diversos acordos que o Brasil
fez, entre eles o Pacto de São José da Costa Rica. O Brasil ratificou
este acordo em 1992 [16].
Pois
bem, a Norma diz que todas as pessoas que foram processadas por operar
emissoras em autorização, isto é, as que tentaram exercer o direito à
comunicação, principalmente os líderes de movimentos comunitários, ficam
impedidos de dirigir rádio comunitária. Estes recebem um “selo na
testa” – estão censurados, vetados, marcados pelo Estado. Agora, além de
punidos pelo Judiciário, também são punidos pelo Executivo – os
possíveis rebeldes, os “subversivos”, ficam impedidos de dirigir RC.
Ao
analisar a reforma penal no século XVIII, Foucault observa como as
punições visavam preservar “a sociedade”, isto é, as classes mais
abastadas. A punição tem efeito “educativo”, deve servir de exemplo (e
alerta) para todos:
Calcular
uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar
não à ofensa passada, mas a desordem futura. Fazer de tal modo que o
malfeitor não possa ter vontade de recomeçar, nem possibilidade de ter
imitadores. (FOUCAULT, 2009, p. 89).
Aqui
se trata, como diz Foucault, de “castigar o inimigo do corpo social”.
Mais uma vez: segregação e exclusão. A Norma 01/11, que é do Século XXI,
segue esta doutrina (exclusão dos “criminosos”). É
preciso ressaltar que essa punição trazida pela Norma não é original. O
ministro Paulo Bernardo tornou Norma o que é um Projeto de Lei (248/07)
do ex-deputado Victorio Galli (PMDB-MT), que tramita na Câmara dos
Deputados. Diz o PL 248/97 que os dirigentes das fundações e sociedades
civis autorizadas a explorar o Serviço não poderão ter sido condenados
pelo crime de que trata o art. 70 da Lei nº 4.117/62. Portanto, ou o
Governo plagiou o deputado ou, considerando o conjunto da obra, de comum
acordo com o autor, transcreveu o texto para a Norma.
O
PL 248/07 faz parte do conjunto de propostas apresentadas no
Legislativo para inviabilizar ou dificultar as rádios comunitárias[17].
No caso, a intenção é dupla: a) criar o medo, fazer com que os
“rebeldes” pensem duas vezes antes de colocar no ar uma rádio sem
autorização; b) impedir que lideranças mais ousadas assumam a direção
das rádios.
O
Executivo foi bastante ardiloso ao conceber este item da proposta. Ele
passou por cima do Congresso Nacional ao transformar em Norma legal o
que era um projeto de lei; o Legislativo foi descartado do processo. Tal
atitude referenda mais uma vez o posicionamento ideológico do
Governo18Dilma Rousseff. Por que, com tantas propostas de interesse das
rádios comunitárias tramitando no Congresso Nacional, o Executivo
escolheu uma que é de interesse das grandes redes de comunicação?
Mas
quem é Victorio Galli, o autor do PL 248/07? Victorio Galli, pastor da
Igreja Assembleia de Deus, não é mais deputado federal. Quando deputado,
Galli apresentou propostas contra o direito ao aborto, pediu aumento da
idade penal de adolescentes, o fim do status de padroeira do Brasil
para Nossa Senhora Aparecida.
Devemos
observar que a burocracia estatal estimula a “ilegalidade”. Há duas
burocracias: uma no Ministério das Comunicações, que pode segurar um
processo por mais de dez anos (e há vários casos assim); outra no
Palácio do Planalto, que segura por até três anos. Cansada de esperar a
autorização “que nunca chega”, e ciente de que a liberdade de expressão é
um direito consagrado pela Constituição brasileira, a comunidade decide
por a rádio no ar. Rádios como Valente FM e Santa Luz (do sertão
baiano), Rádio Heliópolis (São Paulo), Utopia FM (Distrito Federal),
emissoras comunitárias que são referências de qualidade, esperaram dez
anos para receber a autorização oficial.
VI. Campos de concentração Exige-se das rádios comunitárias que o seu alcance se limite a 1 Km. Mas a Lei 9.612/98 nãoprevê isso. Diz o seu art. 1º: Art.
1º Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão
sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura
restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins
lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço. §
1º Entende-se por baixa potência o serviço de radiodifusão prestado a
comunidade, com potência limitada a um máximo de 25 watts ERP e altura
do sistema irradiante não superior a trinta metros. §
2º Entende-se por cobertura restrita aquela destinada ao atendimento de
determinada comunidade de um bairro e/ou vila. (grifo nosso). Quem
estabelece tal limite é o Decreto 2.615/98, que regulamentou a Lei e
incluiu uma redefinição para “cobertura restrita”. Um decreto não pode
ir além do que diz a Lei, mas isso foi feito e está em vigor. Diz o
decreto: Art. 6º
A cobertura restritade uma emissora do RadCom é a área limitada por um
raio igual ou inferior a mil metros a partir da antena transmissora,
destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro, uma
vila ou uma localidade de pequeno porte. (grifo nosso). Mas
o abuso antecede o Decreto. A Lei 9.612/98 cuida de limitar uma área,
estabelecendo um cercado eletromagnético, sobre o indivíduo19 e não
sobre o alcance da emissora. Diz a Lei: Art. 7º ……….. Parágrafo
único. Os dirigentes das fundações e sociedades civis autorizadas a
explorar o Serviço, além das exigências deste artigo, deverão manter
residência na área da comunidade atendida. (grifo nosso).
O Ministério das Comunicações não acatou proposta da Amarc à Consulta pública da Norma. Sugeriu a entidade:
A
razão de ser dos veículos comunitários é atender as necessidades de
comunicação e habilitar o exercício do direito à informação e liberdade
de expressão aos integrantes de suas comunidades sejam elas
territoriais, etnolinguísticas ou de interesses. (…) Não deve haver
limites arbitrários e pré-estabelecidos referentes a: áreas geográficas
de serviço, cobertura, potência ou números de estações em uma
localidade, região ou país, salvo restrições razoáveis devido a uma
limitada disponibilidade de frequências ou a necessidade de impedir a
concentração na propriedade de meios de comunicação20.
A
Norma 01/11 optou (politicamente) por sacramentar o abuso sobre a
privacidade do cidadão contido na Lei e seu Decreto. Na verdade, ela foi
além: agora se exigem provas de que a pessoa mora no lugar determinado
pelo Estado. Não basta o atestado de residência, o Governo também quer
uma “foto da rua” e a indicação da casa em que mora o dirigente[21]. O
texto diz que no “projeto técnico” deve vir a planta de arruamento
indicando a…
c.6) localização das residências dos dirigentes da entidade. Que
relação pode existir entre um “projeto técnico” – obra de um engenheiro
– e a localização da residência dos dirigentes? Mais uma insensatez?
Não. Embutir como parte do “projeto técnico” dados de natureza privada –
uma imagem da residência da pessoa – foi mais uma forma encontrada pelo
Governo para identificar e controlar aqueles que ficarão nesse espaço.
Estamos,
na verdade, tratando da construção de guetos ou campos de concentração,
e de como colocar as pessoas dentro deles. O Estado teria um projeto de
controle das pessoas da comunidade envolvidas com a RC do lugar?
A resposta é positiva. E ela se sustenta em alguns elementos já vistos neste estudo. Eis o que fez o Governo:
a)
Determinou um lugar de exclusão para as rádios comunitárias: elas devem
ficar “fora do mundo”, concentradas em determinados espaços. São campos
de concentração? Guetos? Como
foi visto, duas Resoluções da Anatel22 estabelecem que as RCs devem
operar fora do dial (canais 198, 199, 200). Na consulta pública nº 28,
de 30/05/2011, a Anatel, como fez em outras ocasiões, frisa que as
rádios comunitárias devem se deslocar para este campo de concentração. É
apresentado um discurso “técnico” para justificar a decisão política de
excluir estas emissoras. O discurso fala que é “recomendável” que elas
se desloquem para os campos de concentração fora do dial. Uma imposição,
uma ordem. Aceita-se, provisoriamente, que as rádios fiquem dentro do
dial (canais 251 a 254). Diz o texto da consulta:
Neste
caso é recomendável, do ponto de vista de planejamento a longo prazo,
que os canais alternativos sejam, sempre que possível, designados dentre
os canais 251, 252, 253 e 254, os quais oferecem viabilidade técnica
para sua futura alteração para os canais 198, 199 e 200 quando do
encerramento das transmissões analógicas no canal 6 (seis) ao final do
período de implementação da Televisão Digital[23].
O
sociólogo Zygmunt Bauman (2003)[24] considera que o gueto é o nível
mais baixo de comunidade. O gueto significa o confinamento espacial com o
fechamento social. É a exclusão.
Podemos
dizer que o fenômeno do gueto consegue ser ao mesmo tempo territorial e
social, misturando a proximidade/distância física com a
proximidade/distância moral. [...] a homogeneidadedos de dentro contra a
heterogeneidade dos de fora. (BAUMAN, 2003, p. 105)
b)
“Fincou” cercas eletromagnéticas determinando um campo restrito para
ação da rádio comunitária. Trata-se de um gueto imposto, uma vez que
esta circunferência de raio de 1 Km naturalmente não coincide com a área
ocupada pela comunidade.
c) Impôs que os dirigentes residam dentro desse cercado.
d) Requer “fotografia” (planta de arruamento) da área cercada (do gueto).
e) Requer a indicação, nessa “fotografia”, dos locais de residência dos dirigentes.
f) Requer a lista (nome, endereço, CPF) de todos que moram nesse espaço (os associados).
g) Determinou que nada pode ser modificado (15.3) sem a prévia anuência do Poder concedente (Ministério das Comunicações).
h) Determinou que a RC não terá a proteção do Estado25.
Conclusões A
Norma 01/11 é parte de um conjunto de procedimentos que têm por
objetivo regulamentar o Serviço de Radiodifusão Comunitária. Tais
procedimentos incorporam uma vontade política (polissêmica e
pragmática), caracterizando o que Michel Foucault denominou de “ordem
disciplinar” – são estabelecidos mecanismos de disciplina e punição.
Os mecanismos de disciplina existiam, mas de forma fragmentada, até se consolidarem no século XVIII.
Fala-se
frequentemente das invenções técnicas do século XVIII – tecnologias
químicas, metalurgia, etc. – mas erroneamente nada se diz dessa nova
maneira de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-las
ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade,
graças a um sistema de poder suscetível de controlá-los. Nas grandes
oficinas que começam a se formar, no exército, na escola, quando se
observa na Europa um grande processo de alfabetização, aparecem essa
novas técnicas de poder, que são uma grande invenção do século XVIII.
(FOUCAULT, 2009).
O
estudo de Foucault mostra como as modernas instituições reelaboraram
este poder e dele fazem uso ainda hoje. O “poder disciplinar” tem por
objetivo a regulação e a vigilância, para que haja o controle e a
submissão do indivíduo/entidade. O poder nem sempre é negativo, mas
quando adota determinadas versões se torna uma tirania; quando não
respeita valores éticos consagrados, manifesta-se como abuso sobre o ser
humano. Temos isso claro nos governos ditatoriais, nas prisões, em
algumas instituições formais, como a escola e a igreja. Expressões
políticas como o nazismo, o fascismo, e mesmo democracias modernas,
fazem uso do “Poder disciplinar”. O caso mais evidente é o dos Estados
Unidos que, argumentando a existência de uma globalização do terrorismo,
deu-se ao direito de sequestrar, torturar e matar qualquer pessoa em
qualquer lugar do mundo.
A
questão é, no caso das rádios comunitárias, o Governo Dilma Rousseff,
estaria fazendo uso do Poder disciplinar e assim reproduzindo práticas
ditatoriais, nazistas ou similares?
Com
base no que foi exposto até o momento, concluímos que a resposta é
positiva. Mas podemos avançar na argumentação, realizando um exercício
comparativo entre as ações do Estado brasileiro e práticas de Estados
nazistas ou ditatoriais. Para tanto elencamos oito aspectos. Eis:
1) Campos de concentração Primeiro,
deve-se considerar que ao se tratar de RC há espaços visíveis e espaços
invisíveis. Visível, por exemplo, é a área geográfica ocupada pela
comunidade – um bairro, uma vila, um povoado. Invisível é o espaço
eletromagnético, aquele associado à frequência (toda emissora ocupa
determinada frequência no dial).
No
caso das RCs, a intenção do Estado foi “concentrar” as emissoras
comunitárias no mesmo lugar (a mesma faixa de frequências). Poderia ser
qualquer “lugar” entre 88 e 108 MHz, porque este, afinal, é o espaço
eletromagnético internacionalmente disponibilizado para as rádios que
operam em Frequência Modulada (FM). Mas, como foi visto, o Governo
determinou para as rádios comunitárias “locais específicos” e fora do
dial (faixa de 87,5 a 87,9 MHz)26. Ocupam áreas, ou campos de
concentração, invisíveis.
Quanto
ao que é visível. O Estado brasileiro definiu geograficamente campos de
concentração de forma circular, com raio de 1 Km. Estes campos são
cercados eletromagneticamente (telas invisíveis) – o sinal da emissora
não pode ultrapassar esses limites. E a Anatel “recomenda”: todos devem
se dirigir para estes campos.
Os
nazistas montaram diversos campos de concentração. Neles prenderam e
depois mataram judeus, negros, comunistas, ciganos, homossexuais. Em
certo momento da história nazista veio a ordem: todos deveriam se
dirigir para este local.
2) Controle do indivíduo O
Estado brasileiro pretende controlar quem for instalado dentro do
campo. Exige os dados pessoais de todos que vão residir neste espaço e
até “foto” do local de moradia dos dirigentes; qualquer mudança deve ser
imediatamente comunicada ao Poder.
Os
nazistas fizeram isso. Antes de serem deportados para os campos de
concentração os judeus eram “fichados” e obrigados a ostentar no peito a
estrela de Davi, símbolo do judaísmo. Também as casas e lojas dos
judeus eram devidamente identificadas. O Governo brasileiro está bem
próximo disso ao “fichar” os da comunidade e cobrar uma “foto” do local
de moradia dos dirigentes.
3) Identificação e segregação dos rebeldes A
norma 01/11 veta aos “criminosos” a direção das rádios comunitárias. É
uma forma de expurgar e punir novamente os rebeldes. O Estado prefere os
passivos no “controle” da rádio que opera no campo de concentração.
Os
nazistas não permitiam manifestações contrárias ao regime. Ser judeu,
comunista, negro, homossexual ou cigano, já era considerado crime. Matar
um destes não era crime. Durante
a ditadura militar no Brasil os generais criaram um dispositivo legal
(art. 70 da Lei 4.117/62) que tinha como objetivo “pegar” os inimigos do
regime, os subversivos, os terroristas. Este dispositivo é usado até
hoje pelo Governo Dilma Roussef.
4) Burocracia A
burocracia é uma das formas de controle. Faz parte dela exigir
declarações aparentemente insensatas dos que serão encaminhados aos
campos de concentração. A intenção é humilhar; já vale como punição. A
burocracia, que se manifesta como discurso técnico, oculta uma
intencionalidade política – vigiar, segregar, punir, excluir o setor.
No
início da campanha contra os judeus, os nazistas usavam a burocracia
como forma de lhes criar dificuldades e também para fazer o controle
sobre eles. A burocracia é uma das formas mais perversas e sutis de se
controlar e punir as pessoas.
Em
seus estudos, Foucault faz diversas referências ao uso da burocracia
pela máquina do Estado para vigiar e punir os inimigos do Poder.
5) Punições Elas
começam com a burocracia estabelecida pelo Estado. O rito é humilhante
por vários motivos: a) quantidade de papeis; b) exigem-se declarações
insensatas; c) distanciamento e falta de informações. A lista de
punições não está na Norma – são 29 itens,estabelecidos no Decreto
2.615/98 (Art. 40 incisos I a XXIX).
Os
nazistas estabeleceram punições em regra. Com o tempo, elas foram se
tornando cada vez mais cruéis. Por fim, veio o extermínio nas câmaras de
gás.
6) Legislação O
Estado brasileiro criou uma legislação27 para o setor que visa limitar,
coibir, controlar e punir as rádios comunitárias. Foi feita uma
parceria entre o Legislativo e o Executivo para que esta legislação se
tornasse ideologicamente eficiente. O Executivo complementou o
sentimento disciplinar iniciado no Legislativo, impondo decretos, normas
e resoluções. Ele transformou em Norma e já colocou em vigor o que era
projeto de lei tramitando no Legislativo.
Os
nazistas elaboraram leis de segregação aos que não eram arianos puros
como eles. Para tanto, adaptaram para a Alemanha nazista leis racistas e
eugênicas dos Estados Unidos28. Aos poucos, os que não faziam parte da
“raça ariana”, superior, foram perdendo espaço e recebendo punições.
Normas foram estabelecidas sobre questões de raça (ocultando a proteção
de uma classe). Aos poucos implantaram normas que estabeleciam os
poderes de uma elite (nazista) sobre os demais. Os
tiranos e ditadores costumam buscar a legitimidade dos seus atos
através da legislação. Os generais que cuidaram da ditadura no Brasil
fizeram isso através de Atos institucionais, decretos-leis, e até de uma
“constituição”. Alguns destes dispositivos continuam em vigor.
7) Vigilância Nos
últimos oito anos, o Estado se preocupou em aperfeiçoar a Anatel.
Aumentou o quadro de pessoal e o salário dos seus agentes; novos e
modernos equipamentos de monitoramento foram adquiridos. Até criou uma
lei que dá poder de polícia aos agentes da Anatel.
Os
nazistas tinham sua polícia secreta, a SS. A ditadura brasileira
investiu na criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), que,
articulado com órgãos similares nas Forças Armadas, comandou um grande
sistema de vigilância e repressão aos inimigos do regime. Sequestrar,
torturar e matar era rotina.
Vigiar e reprimir As
ações de repressão ocorrem numa parceria da Anatel com a Polícia
Federal. A eficiência do setor é espantosa: estima-se que uma média de
mil rádios não-autorizadas são fechadas por ano.
Há
denúncias de ações truculentas dos agentes da Anatel e PF. Prisões e
apreensões de equipamentos estariam sendo feitas sem o devido mandado
judicial.
O
nazismo montou um eficiente aparato repressor. Ele é lembrado pela
forma truculenta com que tratava aqueles que eram contrários ao regime.
As ditaduras na América Latina foram marcadas por sequestro, tortura, morte. A repressão sempre foi eficiente nas ditaduras.
Este
conjunto de dados reforça a existência de uma semelhança muito grande
entre as práticas nazistas (e outras formas tiranas de governar) e os
métodos empregados pelo Estado brasileiro para lidar com as rádios
comunitárias. Há uma elite29, devidamente representada no Governo Dilma
(como estava no Governo Lula, FHC e antecessores), que não admite o
crescimento de um setor que pode contestar esse poder, na medida em que
amplia o número de enunciadores, de críticos. Boa parte dos que fazem RC
são os excluídos históricos da sociedade brasileira, que, através das
rádios comunitárias, podem reivindicar seus direitos de cidadão. E isto
as elites nacionais não aceitam. O
caso, certamente, requer uma leitura mais pragmática por parte dos que
atuam com direitos humanos. Entendemos que é necessário denunciar o
Brasil à corte internacional. Este conjunto de práticas, muito
semelhantes às empregadas pelos nazistas e governadores tiranos, indica
que o Governo brasileiro discrimina as rádios comunitárias. E faz isso
apelando para o discurso do legalismo, o discurso técnico e a repressão
violenta. Tais práticas representam um retrocesso político; revelam que a
democracia brasileira ainda é frágil e questionável no que se refere à
democratização dos meios de comunicação.
Isto
é evidente. O que não é evidente para a sociedade são os métodos de
manipulação empregados pelo Governo. Ele camuflou como Norma técnica um
discurso político opressor e manipulador. Mais que um discurso, há
ordens, imposições deste poder. Existe a postura política de vigiar e
punir muitos (os excluídos históricos) e favorecer uns poucos (as elites
do país).
Uma
Norma como esta, infelizmente, sacramenta uma história de exclusão,
segregação, discriminação, vigilância e punição pelo Estado, a um
movimento que tem como princípio o acesso da sociedade brasileira aos
meios de comunicação.
Não
se trata aqui de defender rádios que se apresentam como comunitárias,
mas pertencem a padres, pastores, políticos ou empresários – estas
enganam a sociedade. Pelo contrário, as rádios têm princípios e eles
devem ser seguidos – rádios comunitárias são emissoras em que todos
podem se manifestar, opinar, decidir, informar, independente de cor,
etnia, raça, sexo, classe social, etc.
Trata-se do exercício da
democracia na forma mais radical, uma vez que todos – com suas
diferenças – devem contribuir para viabilização da RC. Quando o ministro
Paulo Bernardo publica normas como a 01/11, demonstra que foi mantido o
posicionamento histórico do Estado contra as RCs e que, dado esse
contexto de repressão e abuso, vigilância e punição, o diálogo entre
Governo e sociedade se torna impossível.
Notas 1
– Publicada no Diário Oficial da União de 18/10/11. A Portaria 462, que
tem como Anexo a Norma 01/11.Disponível aqui , acesso em 15/11/11. 2
– “Discurso é aqui entendido para significar somente um evento
comunicativo específico, em geral, e uma forma oral ou escrita de
interação verbal ou uso da língua, em particular” (VAN DIJK, 2008, p.
135). VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder.São Paulo, Contexto, 2008. 3 – FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de janeiro, Petrópolis: Vozes, 2009. 4 – Disponível aqui , acesso em 09/11/2011. O site não indica a autoria do texto. 5 – Idem. 6
– A Amarc propôs aumento de potência, alcance superior ao raio de 1 Km,
menos burocracia, mais transparência, cursos de formação para quem faz
rádio e para os agentes da Anatel e Polícia Federal,…Disponível aqui ,
acesso em: 17/11/11. 7 – Disponível aqui , acesso em: 17/11/11. 8 – Disponível aqui , acesso em 13/05/2011. 9 – Disponível aqui , acesso em: 17/11/11. 10
– PERUZZO Cicilia M. Krohling, Rádios comunitárias: entre
controvérsias, legalidade e repressão.2005.Disponível aqui , acesso em
14/11/2011. 11
– ABIN é Agência Brasileira de Inteligência. Sucessora do antigo
Serviço Nacional de Informações (SNI), que foi bastante eficiente
durante a ditadura militar, a ABIN é um ente secreto, mantido com verbas
secretas, que faz espionagem para o Estado. 12
– São casos simbólicos. A maioria deles são mantidos “invisíveis”
porque o processo de outorga não obedece a transparência exigida. Tanto o
Governo quanto a instituição não gostariam de dar publicidade a esta
aliança. 13 – Disponível aqui , acesso em 09/11/2011. 14
– LIMA, Venício Arthur de; LOPES, Cristiano Aguiar. Coronelismo
eletrônico de novo tipo (1999-2004): as autorizações de emissoras como
moeda de barganha política. Observatório da imprensa, Instituto para o
Desenvolvimento do Jornalismo (Projor): 2007. Disponível aqui, acesso
em: 4/11/11. 15
– O poder das igrejas na radiodifusão.Total de rádios: 259. Total de
redes de rádios: 69. A Igreja Católica é majoritária entre as religiões.
Ela detém o comando sobre 133 rádios e sobre 46 redes de rádio. No que
se refere à televisão, as igrejas controlam 234 emissoras, detém 1826
TVs, e 48 grupos afiliados. A Igreja Católica, em particular, tem
outorgas de 46 emissoras, controla 863 retransmissoras e tem 9
afiliadas. Fonte: www.donosdamidia.com.br 16
– A Convenção Americana de Direitos Humanos completa 40 anos. O
tratado, também chamado de Pacto de San José da Costa Rica, foi assinado
em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica, e
ratificado pelo Brasil em setembro de 1992. 17
– Um total de 36 propostas tramitam hoje no Congresso Nacional. São 33
Projetos de Lei (PL) na Câmara; dois PLs que ainda estão no Senado; uma
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) também da Câmara. (Fonte: Câmara
dos Deputados e Senado Federal). 18
– Podemos apontar como ações de Estado contrárias às RCs, entre outras:
legislação restritiva, construção de um aparato repressor eficiente,
abusos de poder, burocracia, falta de transparência, sistema de
atendimento diferenciado aos aliados políticos ou religiosos. 19 – Essa preocupação com o indivíduo está presente em toda legislação. 20 – Disponível aqui , acesso em: 20/11/11. 21 – Planta de arruamento é uma espécie de fotografia da área. 22 – Página 2. Resoluções nº 60/98 e nº 356/04. 23 – Disponível aqui , acesso em: 14/11/11. 24 – BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 25- O art. 22 da Lei 9.612/98 diz exatamente isso. 26 – Como ouvir a RC se os aparelhos disponíveis no mercado só captam acima de 88 MHz? 27 – Lei 9.612/98, Decreto 2.615/98 e Norma 01/11. 28
– Do final do século XIX até o fim da Segunda guerra, havia uma espécie
de consenso no mundo sobre a existência de raças superiores. Academias
do mundo inteiro propagaram essa ideia eugênica. De acordo com Chomsky,
nos anos 1930, 75% das universidades norte-americanas pregavam isso. Nos
Estados Unidos, antes de Hitler, antes da Guerra, havia concursos para
premiar a família mais pura”. Hitler, que tinha boas relações com os
norte-americanos, solicitou estudos sobre a legislação de segregação
norte-americana e fez sua adaptação ao nazismo. Academias da América
Latina e o Caribe também acataram a eugenia como ciência. 29 – Empresarial, econômica, religiosa; incluindo os proprietários das grandes redes de comunicação, mas não só estes. ***
*Dioclécio
Luz é jornalista, mestre em Comunicação pela UnB, integra o Conselho
político da Amarc; neste texto, contou com a colaboração de João Paulo
Malerba, que fez críticas e sugestões ao texto original.
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