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Portaria 460 (Norma 01/11) quer calar a voz das rádios comunitárias

Publicado em 15.12.11 - Por Dioclécio Luz* com colaboração de João Malerba, na página da Amarc Brasil

Este trabalho mostra como o Ministério das Comunicações (MC) e, por extensão, o governo Dilma Rousseff, fazendo uso de dispositivos da legislação, discrimina as rádios comunitárias (RC), dando continuidade a uma política estatal que historicamente tem criado mecanismos para reprimir e assim inviabilizar a comunicação popular. Também mostra que este Governo utiliza práticas típicas de regimes ditatoriais.

Analisamos a Portaria 460, que contém a Norma 01/11, assinada[1] pelo Ministro das Comunicações, Paulo Bernardo Silva; ela estabelece procedimentos para outorga de rádios comunitárias. Avaliada em seus aspectos técnicos e políticos, revela-se nesta Norma uma intencionalidade de Governo, ou de Estado, em excluir o segmento das rádios comunitárias.

Usaremos como metodologia os estudos de Foucault, e em especial, o seu conceito de poder disciplinar. Também faremos uso da análise de discurso, método corrente no campo comunicacional. Inicialmente é feita uma análise da Norma, identificando os seus aspectos essenciais; em seguida, escolhemos oito itens da legislação e comparamos com práticas adotadas por regimes ditatoriais.

Introdução
A Norma pode ser vista como um discurso[2] institucional. E, por ser uma Norma técnica, é um discurso que se apresenta semioticamente com “virtudes”: ela teria autonomia(teria sido construída em ambiente alheio aos conflitos do setor), seria necessária(ao processo burocrático), seria apolítica(teria sido construída em ambiente alheio à política). O discurso técnico manifesta a retórica da superioridade na medida em que se eleva sobre as pessoas comuns. É como se o “técnico” (ou a tecnologia) se aproximasse da metafísica, do divino. Quem ousaria questionar o técnico?
Considere-se, porém que, embora uma Norma se constitua num discurso, e, portanto, tenha sua ideologia, não necessariamente ela é um posicionamento opressor. O fato de ser Norma não implica em opressão ou discriminação. No caso da Norma 01/11, porém, isso acontece. Parece haver uma vontade política em oprimir determinadas pessoas, as que fazem RC.

Conforme Edgar Morin, o discurso técnico (como também o científico) expressa uma ideologia. De fato, o discurso técnico, o texto expresso nessa Norma, é ideológico, político. Mais exatamente, observamos que a Norma: a) é um discurso político, com uma intencionalidade política; b) o discurso político vem mascarado como discurso técnico; c) a burocracia, que faz parte do discurso técnico, é utilizada estrategicamente (e camufladamente) para sedimentar o posicionamento ideológico.
O discurso técnico expresso nesta Norma objetiva manipular os interessados. O manipulador, o Governo, quer submeter (manipular) os que querem fazer rádio comunitária.

A manipulação envolve não apenas o poder, mas especificamente abuso de poder, ou seja, dominação. Mais especificamente, a manipulação implica o exercício de uma forma de influência deslegitimada por meio do discurso: os manipuladores fazem os outros acreditarem ou fazerem coisas que são do interesse do manipulador, e contra os interesses dos manipulados (VAN DIJK, 2008, p. 234).
Esse mascaramento do discurso, essa tentativa de manipulação das pessoas, é um ato ilegítimo.
Definimos como ilegítimas todas as formas de interação, comunicação ou outras práticas sociais que servem apenas aos interesses de uma parte e são contra os interesses dos receptores. (VAN DIJK, 2008, p. 238).

“Vigiar e Punir” é o título de um célebre estudo do sociólogo francês Michel Foucault sobre os métodos adotados historicamente para conter e punir os criminosos[3]. Trata-se de um “estudo cientifico, sobre a evolução histórica da legislação penal e respectivos meios coercitivos e punitivos adotados pelo poder público”4. Foucault revela que, a partir do século XIX, um conjunto de práticas foram sistematizadas e têm sido usadas até hoje nas mais diversas instituições – elas constituem a “ordem disciplinar”. Há um “poder disciplinar” que aplica tais práticas com o objetivo de humilhar e controlar, vigiar e punir aqueles que poderiam desobedecer ao poder.

A punição e a vigilância são poderes destinados a educar (adestrar) as pessoas para que essas cumpram normas, leis e exercícios de acordo com a vontade de quem detêm o poder. A vigilância é uma maneira de se observar a pessoa, se esta está realmente cumprindo com todos seus deveres – é um poder que atinge os corpos dos indivíduos, seus gestos, seus discursos, suas atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana. A vigilância tem como função evitar que algo contrário ao poder aconteça e busca regulamentar a vida das pessoas para que estas exerçam suas atividades. Já a punição é o meio encontrado pelo poder para tentar corrigir as pessoas que infligem as regras ditadas pelo poder e ela também é o meio de impedir que essas pessoas cometam condutas puníveis (através da punição as pessoas terão receio de cometer algo contrário às normas do poder). A vigilância e a punição podem ser encontradas em várias entidades estatais, como hospitais, prisões e escolas5.

A Norma
O objetivo da Norma 01/11 é regulamentar os procedimentos de outorga de rádios comunitárias. Ela substitui a Norma 01/04, que, por sua vez, substituiu a Norma 01/98. Antes de publicar esta nova Norma em novembro de 2011, em junho deste ano o Governo submeteu o texto à “consulta pública”. A Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC-Brasil) apresentou diversas sugestões6. Nenhuma delas foi acatada.

Eis os principais elementos dessa nova norma:

I. Referências legais (2.1 a 2.11)

São estas as referências legais explícitas na Norma:
Constituição Federal; Lei 4.117/62, modificada pelo Decreto 236/67, sancionado pelo general Castelo Branco; Lei 9.612/98, que regulamenta as rádios comunitárias; Lei 10.610/02, que amplia o prazo de outorga de 3 para 10 anos; Medida Provisória 2216-37/01, que concede autorização provisória caso o Congresso Nacional não se pronuncie em três meses; Decreto 52.795/63, que regulamenta a Lei 4.117/62; Decreto 2.615/98, que regulamenta a Lei 9.612/98; Resolução 67 (12/11/98) da Anatel, com o Regulamento técnico para as rádios FM; Resolução 60 (24/09/98) da Anatel estabelece o canal 200 (faixa de 87,9 a 88,1 MHz); Resolução 356 da Anatel (11/03/04), estabelecendo mais canais (faixa de 87,4 a 87,8 MHz)7; Plano de Referência para Distribuição de Canais do serviço de Radiodifusão Comunitária (PRRadCom).

Analisando a legislação citada percebemos que há uma intenção política de Estado em coibir o setor. Vejamos:

** Decreto 236/67.Foi criado pela ditadura militar. O artigo 70 foi inserido na Lei 4.117/62 com o objetivo de reprimir os inimigos da ditadura, os “subversivos”, “os terroristas”, criando penas severas para quem operasse sistema de telecomunicações sem autorização.
** Decreto 2.615/98. Contémilegalidades. Uma delas: limita o alcance da emissora a 1 Km quando a Lei 9.612/98 não faz essa restrição.
** Resoluções 60 e 356.Disponibilizam frequências abaixo de 88 MHz, fora do dial. O espectro de rádio FM, por acordos internacionais, está na faixa que vai de 88 a 108 MHz.

Ausências:
a) A Norma não cita a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), 9.472/97, mas os agentes da Anatel usem o art. 183 dessa Lei para fechar rádios sem autorização.
b) A Norma não incluiu entre as suas referências a Lei nº 10.871/04, que permite ao agente da Anatel buscar e apreender equipamentos.

É importante lembrar que um fato precede a criação da Lei 10.871/04. Em decisão liminar de 1997, o Supremo Tribunal Federal (STF), respondendo a ADIN impetrada pelo PT e PDT contra o artigo 19 da Lei Geral de Telecomunicações, que dava esse poder aos agentes da Anatel, decidiu favoravelmente pelo veto a tal artigo. Isto é, agentes da Anatel não podem fazer esse tipo de ação, é inconstitucional. Porém, ao assumir o Governo, o presidente Lula encaminhou Projeto de Lei regulamentando as ações dos fiscais de agências. Esse projeto se tornou a Lei 10.871/04 e agora eles têm o poder de polícia que o STF negou. Isto é, o que era inconstitucional agora é legal.

II. Apoio cultural (3.1 e outros)
Diz a Norma que:
3.1 Apoio cultural – É a forma de patrocínio limitada à divulgação de mensagens institucionais para pagamento dos custos relativos à transmissão da programação ou de um programa específico, em que não podem ser propagados bens, produtos, preços, condições de pagamento, ofertas, vantagens e serviços que, por si só, promovam a pessoa jurídica patrocinadora, sendo permitida a veiculação do nome, endereço e telefone do patrocinador situado na área da comunidade atendida.

A Lei 9.612/98, porém, trata de patrocínio, mas não manifesta o que entende por apoio “cultural”. Diz o texto:
Art. 18. As prestadoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária poderão admitir patrocínio, sob a forma de apoio cultural, para os programas a serem transmitidos, desde que restritos aos estabelecimentos situados na área da comunidade atendida.

Portanto, há uma diferença muito grande entre o que diz a Lei e o que diz a Norma. A Lei permite o patrocínio dos programas restringindo-os aos estabelecimentos instalados na área em que funciona a rádio comunitária. A Norma, porém, restringiu mais ainda ao estabelecer que esse patrocínio (apoio cultural) não pode divulgar ofertas, produtos, valores. Qual a lojinha, mercado ou empresa de serviços do lugar que vai querer patrocinar na rádio se a emissora está proibida de informar o que tal estabelecimento oferece e os preços?

Até então não existia definição de apoio cultural. Nem a Lei nem o Decreto 2.615/98, que regulamenta a Lei, tratam disso. Tampouco há Resoluções neste sentido. Nem mesmo as duas normas anteriores definiram o tema. A bem da verdade, na legislação brasileira não havia definição para apoio cultural.

Agora há. E essa definição, não por acaso, é exatamente a que queriam as grandes redes de comunicação. Elas não aceitariam publicidade nas rádios comunitárias porque o mercado lhes pertence.

Mas como a rádio comunitária vai sobreviver se não faz propaganda? Este é um problema real; hoje a grande maioria das RCs não tem sustentabilidade econômica exatamente porque não podem vender publicidade.

Em termos políticos, o Governo tinha duas opções:

** 1) Atender às rádios comunitárias.Para tanto, criaria condições de sustentabilidade das RCs ao definir apoio cultural conforme essa realidade; ou não daria nenhuma definição e valeria como está na lei.
** 2) Atender as grandes redes de comunicação.Os empresários e as religiões que dominam o setor queriam uma definição de apoio cultural que impedisse a propaganda de produtos, serviços, bens, nas suas “concorrentes”, as rádios comunitárias.

O Governo, como faz ver a Norma, escolheu a segunda alternativa.

E o Governo nem pode alegar que desconhece outra proposta. A Amarc, como observamos, entre as tantas sugestões feitas (e descartadas pelo Governo), encaminhou uma definição para apoio cultural bem mais adequada a este segmento da comunicação. Diz o texto:

Apoio cultural – É a forma de patrocínio dos programas da emissora, para pagamento dos custos relativos à transmissão da programação, do operador ou locutor, ou de um programa específico. Deve se limitar a 25% da programação (como estabelece o art. 28, Decreto 52.795/63, para as outras modalidades de comunicação)[7].

Cabe registrar que, antes de existir uma definição de apoio cultural, a Anatel já usava esta que agora se impõe. E aplicou multas em diversas RCs por não cumprirem essa regra inexistente.

Este abuso da Anatel (punir sem ter norma legal para tanto) contou com a colaboração do Ministério das Comunicações, que tornou público uma regra inexistente como se fosse norma legal, quando era somente um posicionamento oficial (e político). Bem antes da Norma ser publicada, esse texto estava lá no site do MC como resposta às “perguntas mais frequentes”[8]. Os redatores da Norma copiaram o texto (que se encontra até hoje no site do MC) e colaram na nova Norma. Ou seja, o Executivo já impunha essa definição como se fosse regra, e multou quem não a cumpriu! Há duas irregularidades aqui: a Anatel multou com base numa norma que não existia; o MC divulgou como regra legal o que não era. Com base nisso, todos que foram multados podem contestar a punição na Justiça.

A questão da sustentabilidade mereceria um outro olhar do Estado, porque este é um dos grandes problemas (senão o maior) que enfrentam as rádios comunitárias no país. Sobre o tema assim se manifestou a Amarc:

Para assegurar a sustentabilidade das rádios comunitárias, a AMARC Brasil sugere que as emissoras tenham a possibilidade de buscar múltiplas formas de financiamento, como doações, apoios, propaganda oficial, fundos públicos, e também publicidade oficial. Na verdade, a solicitação faz eco a recomendações internacionais: a Declaração Conjunta do Relator Especial das Nações Unidas para a Liberdade de Opinião e Expressão (ONU), do Representante da Organização de Segurança e Cooperação na Europa para a Liberdade dos Meios de Comunicação (OSCE), da Relatora Especial da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos sobre a Liberdade de Expressão e Acesso à Informação (CADHP) e Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), de 2007, afirmam a necessidade da radiodifusão comunitária ter acesso a publicidade. A AMARC entende que a publicidade não descaracteriza a rádio comunitária, desde que a gestão seja feita de forma coletiva (assegurando a decisão conjunta sobre a escolha das parcerias e sobre o investimento dos recursos) e todo o recurso seja reinvestido na própria emissora (ou seja, sem fins de lucro).[9]

III. Burocracia (7.1 e outros)
A Norma 01/11 exige uma centena de papeis da entidade que se habilita à outorga.

Ao invés de facilitar o processo de obtenção de outorga, o Estado aumentou ainda mais a burocracia, gerando constrangimentos, restrições e dificuldades que não favorecem a radiodifusão comunitária no Brasil.

Não seria exagero afirmar que o MC vai necessitar construir um novo prédio para depositar a grande quantidade de papeis gerados pelos processos; e também vai necessitar contratar pessoal somente para conduzir esses papeis para os seus devidos lugares, e contratar mais gente para analisar e decidir sobre os processos. Quanto vai custar essa burocracia ao erário público? Considerando o número de processos em tramitação, algo em torno de vinte mil10, o que esperar disso?

A burocracia estabelecida pela Norma (8.1.d) exige uma lista…
De todos os associados pessoas físicas, com o número do CPF, número do documento de identidade e órgão expedidor mais o endereço de residência ou domicílio, bem como de todos os associados pessoas jurídicas, com o número do CNPJ e endereço da sede.

Qual a finalidade desta atitude? Controlar quem se associa? Repassar esses dados para os órgãos de inteligência? Qual o interesse do Estado em saber quem faz parte da associação? Agora, imagine-se o calhamaço que vai render uma associação com 1 mil associados? Este número não é algo extraordinário, afinal se trata de uma comunidade. Em Heliópolis, São Paulo, por exemplo, moram 125 mil pessoas. O que o Ministério das Comunicações pretende fazer com uma lista contendo os dados de centenas ou milhares de pessoas, com a especificação de nome, endereço, CPF? Vai repassar para a ABIN11? Vai verificar a autenticidade de cada um? Estamos diante do Big Brother de George Orwell? Estamos tratando de métodos fascistas ou nazistas? Ao que parece temos aqui uma prática comum de regimes ditatoriais objetivando controlar as pessoas.

Outros elementos ditatoriais foram incorporados à burocracia na forma de “declarações” a serem encaminhadas ao Poder. Aparentemente são solicitações sem sentido. Por exemplo, é solicitado aos dirigentes das emissoras declarações de que seguirão a norma legal. Ora, qual a lógica em solicitar de concessionário de serviço público papel assinado dizendo que ele vai seguir a lei? Uma insensatez?
Não. Os que redigiram essa Norma não são insensatos. Pelo contrário. Tudo indica, eles foram colocados na função com o objetivo de criar um rigoroso sistema de controle sobre as rádios comunitárias e sobre a comunidade que elas atendem. Percebe-se que há uma lógica no processo e ele foi determinado por uma postura ideológica.

Convém notar, ainda, que a aparentemente insana papelada repete exigências já estabelecidas pela legislação. Eis a lista de algumas dessas declarações:

a) Declaração de que os dirigentes da RC residem dentro do círculo com 1 Km de raio; espaço reservado pelo Estado para alojar as RCs – uma área cercada eletromagneticamente.
b) Declaração de que a entidade não é executante de qualquer outro serviço de radiodifusão.
c) Declaração de que, quando solicitada, a entidade vai apresentar o projeto técnico.
Esta parece a mais absurda. Afinal, a entidade sabe que, de acordo com a legislação, ela tem que apresentar projeto técnico; se não apresentá-lo não consegue outorga. Mesmo assim é preciso declarar “no papel” que vai apresentá-lo?
d) Declaração de que a entidade não mantém vínculos que a subordinem com partidos ou religiões.
e) Declaração, assinada por todos os seus dirigentes, comprometendo-se “ao fiel cumprimento das normas estabelecidas para o Serviço”.

A lista de declarações insensatas não acaba aí. Quando a RC for renovar sua outorga deve apresentar outras declarações do gênero. É preciso declaração de que a emissora obedece às normas técnicas (20.3, a); de que a emissora não veicula anúncios comerciais, mas somente apoio cultural como diz a Norma (20.3; f.1); de que a rádio reserva 5% para o noticiário (20.3, f.2); de que cumpre a finalidade constitucional de promover a cultura.

Para renovação, além destas declarações “insensatas”, também é solicitado um monte de papeis, incluindo um laudo técnico de vistoria (vigilância), e, mais uma vez, a lista de associados. O Estado não abre mão de controlar os que serão instalados nesse campo de concentração eletromagnético.

IV. Proselitismo
Diz a Norma:
21.8 É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária.

Mas o que é proselitismo? A Norma 01/11, que teve o cuidado em definir apoio cultural, não abordou a questão do proselitismo. Por quê? Por razões políticas?

A Lei 9.612/98, em seus artigos 4º e 11, proíbe a prática do proselitismo religioso e político, bem como o comando da emissora comunitária por entidades religiosas ou político-partidárias. Diz o texto:
Art 4º As emissoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária atenderão, em sua programação, aos seguintes princípios:

…………….
§ 1º É vedado o proselitismode qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária.
Art. 11. A entidade detentora de autorização para execução do Serviço de Radiodifusão Comunitária não poderá estabelecer ou manter vínculos que a subordinem ou a sujeitem à gerência, à administração, ao domínio, ao comando ou à orientação de qualquer outra entidade, mediante compromissos ou relações financeiras, religiosas, familiares, político-partidárias ou comerciais.
O Governo, porém, não obedece a Lei. E tem concedido autorizações de rádios comunitárias para instituições religiosas. Como exemplo citamos dois casos:

Processo nº 53770.000456/99. Licença Definitiva para a “Associação Comunitária Nossa Senhora de Copacabana”, localizada na rua Hilário Gomes, 36, Copacabana, Rio de Janeiro. No local funciona a Igreja Nossa Senhora de Copacabana.

Processo nº 53000.000210/00. Autorização concedida à “Associação de Assistência Social Casa da Benção”, localizada, de acordo com o MC, à Área Especial 5 – Setor F Sul Taguatinga Sul, Distrito Federal. A Catedral da Casa Bênção funciona no mesmo endereço, com o nome de fantasia de “Rádio ondas da bênção”[13].

O Executivo – Ministério das Comunicações, Anatel ou Casa Civil – não pode nem alegar dificuldades em localizar essas emissoras. A Casa da Benção localiza-se a 20 Km do Ministério das Comunicações. Copacabana, um bairro conhecido no mundo, fica no Rio de Janeiro, e essa rádio da igreja está instalada no prédio onde funciona a Igreja Católica. Tais exemplos de ilegalidades evidentes demonstram haver uma cumplicidade do Governo com essas religiões.

Estudo realizado em 2007 pelo ex-professor da UnB, Venício Lima, e pelo consultor da Câmara dos deputados, Cristiano Lopes, revela que oprocesso de outorga de emissoras comunitárias está submetido a influências religiosas e políticas [14]. Diz o estudo que mais da metade das autorizações concedidas pelo Ministério das Comunicações foram obtidas por políticos e religiões. Em contrapartida, muitas rádios comunitárias de qualidade tiveram seu processo arquivado ou protelado porque não tinham padrinhos (sacerdotes ou políticos) para fazerem avançar os processos.

Há uma relação histórica de subserviência do Estado em relação às religiões; o elevado número de outorgas de rádios e TVs sob controle deste setor sacramenta a relação15. Daí, não é de estranhar que a nova Norma abstenha-se de tratar do tema proselitismo. É uma atitude de proteção aos seus aliados – igrejas e políticos – que usam as emissoras (inclusive rádios comunitárias) para propaganda dos seus interesses; para fazer proselitismo. A situação atual é esta: a lei proíbe o proselitismo, mas, na falta de uma definição para o que é proselitismo não há como identificar e punir os infratores. O Governo optou por deixar como está.

V. Vigilância e perseguição
Diz a Norma 01/11 que o MC solicitará da entidade interessada os seguintes documentos:
10.8:
a) certidão de setores de distribuição dos foros criminais dos lugares em que cada dirigente tenha residido nos últimos cinco anos, da Justiça federal, Estadual e Eleitoral.

b) folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia dos estados nos quais os dirigentes da entidade requerente residiram nos últimos cinco anos.
E mais:
10.8.2 Os documentos mencionados no subitem10.8 servirão ao exame da idoneidade da entidade interessada e de seus dirigentes pelo Ministério das Comunicações, o qual indeferirá os pleitos de habilitação daqueles que não lograrem demonstra-se idôneos. (grifo nosso).
Aqui o Governo deturpa o conceito de idoneidade, colocando na mesma situação todos que têm problemas na Justiça. Ocorre que nem todos que foram ou estão sendo processados pela Justiça são criminosos. Vejamos.

Hoje o Executivo faz uso de dois dispositivos “legais” para coibir as emissoras que operam sem autorização. O artigo 70 da Lei 4117/62 (CBT) alterado pelo Decreto 236/67, assinado pelo General Castelo Branco, e o Art. 183 da Lei 9.472/97 (LGT). O Governo considera que operar emissora sem autorização é crime, e a Justiça tem processado e condenado centenas de pessoas por este “crime”.
Na verdade, essas pessoas tentaram exercer o direito à comunicação, consagrado na Constituição Federal e em diversos acordos que o Brasil fez, entre eles o Pacto de São José da Costa Rica. O Brasil ratificou este acordo em 1992 [16].

Pois bem, a Norma diz que todas as pessoas que foram processadas por operar emissoras em autorização, isto é, as que tentaram exercer o direito à comunicação, principalmente os líderes de movimentos comunitários, ficam impedidos de dirigir rádio comunitária. Estes recebem um “selo na testa” – estão censurados, vetados, marcados pelo Estado. Agora, além de punidos pelo Judiciário, também são punidos pelo Executivo – os possíveis rebeldes, os “subversivos”, ficam impedidos de dirigir RC.

Ao analisar a reforma penal no século XVIII, Foucault observa como as punições visavam preservar “a sociedade”, isto é, as classes mais abastadas. A punição tem efeito “educativo”, deve servir de exemplo (e alerta) para todos:

Calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar não à ofensa passada, mas a desordem futura. Fazer de tal modo que o malfeitor não possa ter vontade de recomeçar, nem possibilidade de ter imitadores. (FOUCAULT, 2009, p. 89).

Aqui se trata, como diz Foucault, de “castigar o inimigo do corpo social”. Mais uma vez: segregação e exclusão. A Norma 01/11, que é do Século XXI, segue esta doutrina (exclusão dos “criminosos”).
É preciso ressaltar que essa punição trazida pela Norma não é original. O ministro Paulo Bernardo tornou Norma o que é um Projeto de Lei (248/07) do ex-deputado Victorio Galli (PMDB-MT), que tramita na Câmara dos Deputados. Diz o PL 248/97 que os dirigentes das fundações e sociedades civis autorizadas a explorar o Serviço não poderão ter sido condenados pelo crime de que trata o art. 70 da Lei nº 4.117/62. Portanto, ou o Governo plagiou o deputado ou, considerando o conjunto da obra, de comum acordo com o autor, transcreveu o texto para a Norma.

O PL 248/07 faz parte do conjunto de propostas apresentadas no Legislativo para inviabilizar ou dificultar as rádios comunitárias[17]. No caso, a intenção é dupla: a) criar o medo, fazer com que os “rebeldes” pensem duas vezes antes de colocar no ar uma rádio sem autorização; b) impedir que lideranças mais ousadas assumam a direção das rádios.

O Executivo foi bastante ardiloso ao conceber este item da proposta. Ele passou por cima do Congresso Nacional ao transformar em Norma legal o que era um projeto de lei; o Legislativo foi descartado do processo. Tal atitude referenda mais uma vez o posicionamento ideológico do Governo18Dilma Rousseff. Por que, com tantas propostas de interesse das rádios comunitárias tramitando no Congresso Nacional, o Executivo escolheu uma que é de interesse das grandes redes de comunicação?

Mas quem é Victorio Galli, o autor do PL 248/07? Victorio Galli, pastor da Igreja Assembleia de Deus, não é mais deputado federal. Quando deputado, Galli apresentou propostas contra o direito ao aborto, pediu aumento da idade penal de adolescentes, o fim do status de padroeira do Brasil para Nossa Senhora Aparecida.

Devemos observar que a burocracia estatal estimula a “ilegalidade”. Há duas burocracias: uma no Ministério das Comunicações, que pode segurar um processo por mais de dez anos (e há vários casos assim); outra no Palácio do Planalto, que segura por até três anos. Cansada de esperar a autorização “que nunca chega”, e ciente de que a liberdade de expressão é um direito consagrado pela Constituição brasileira, a comunidade decide por a rádio no ar. Rádios como Valente FM e Santa Luz (do sertão baiano), Rádio Heliópolis (São Paulo), Utopia FM (Distrito Federal), emissoras comunitárias que são referências de qualidade, esperaram dez anos para receber a autorização oficial.

VI. Campos de concentração
Exige-se das rádios comunitárias que o seu alcance se limite a 1 Km. Mas a Lei 9.612/98 nãoprevê isso. Diz o seu art. 1º:
Art. 1º Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço.
§ 1º Entende-se por baixa potência o serviço de radiodifusão prestado a comunidade, com potência limitada a um máximo de 25 watts ERP e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros.
§ 2º Entende-se por cobertura restrita aquela destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila. (grifo nosso).
Quem estabelece tal limite é o Decreto 2.615/98, que regulamentou a Lei e incluiu uma redefinição para “cobertura restrita”. Um decreto não pode ir além do que diz a Lei, mas isso foi feito e está em vigor. Diz o decreto:
Art. 6
º A cobertura restritade uma emissora do RadCom é a área limitada por um raio igual ou inferior a mil metros a partir da antena transmissora, destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro, uma vila ou uma localidade de pequeno porte. (grifo nosso).
Mas o abuso antecede o Decreto. A Lei 9.612/98 cuida de limitar uma área, estabelecendo um cercado eletromagnético, sobre o indivíduo19 e não sobre o alcance da emissora. Diz a Lei:
Art. 7º ………..
Parágrafo único. Os dirigentes das fundações e sociedades civis autorizadas a explorar o Serviço, além das exigências deste artigo, deverão manter residência na área da comunidade atendida. (grifo nosso).

O Ministério das Comunicações não acatou proposta da Amarc à Consulta pública da Norma. Sugeriu a entidade:

A razão de ser dos veículos comunitários é atender as necessidades de comunicação e habilitar o exercício do direito à informação e liberdade de expressão aos integrantes de suas comunidades sejam elas territoriais, etnolinguísticas ou de interesses. (…) Não deve haver limites arbitrários e pré-estabelecidos referentes a: áreas geográficas de serviço, cobertura, potência ou números de estações em uma localidade, região ou país, salvo restrições razoáveis devido a uma limitada disponibilidade de frequências ou a necessidade de impedir a concentração na propriedade de meios de comunicação20.

A Norma 01/11 optou (politicamente) por sacramentar o abuso sobre a privacidade do cidadão contido na Lei e seu Decreto. Na verdade, ela foi além: agora se exigem provas de que a pessoa mora no lugar determinado pelo Estado. Não basta o atestado de residência, o Governo também quer uma “foto da rua” e a indicação da casa em que mora o dirigente[21]. O texto diz que no “projeto técnico” deve vir a planta de arruamento indicando a…

c.6) localização das residências dos dirigentes da entidade.
Que relação pode existir entre um “projeto técnico” – obra de um engenheiro – e a localização da residência dos dirigentes? Mais uma insensatez? Não. Embutir como parte do “projeto técnico” dados de natureza privada – uma imagem da residência da pessoa – foi mais uma forma encontrada pelo Governo para identificar e controlar aqueles que ficarão nesse espaço.

Estamos, na verdade, tratando da construção de guetos ou campos de concentração, e de como colocar as pessoas dentro deles. O Estado teria um projeto de controle das pessoas da comunidade envolvidas com a RC do lugar?

A resposta é positiva. E ela se sustenta em alguns elementos já vistos neste estudo. Eis o que fez o Governo:

a) Determinou um lugar de exclusão para as rádios comunitárias: elas devem ficar “fora do mundo”, concentradas em determinados espaços. São campos de concentração? Guetos?
Como foi visto, duas Resoluções da Anatel22 estabelecem que as RCs devem operar fora do dial (canais 198, 199, 200). Na consulta pública nº 28, de 30/05/2011, a Anatel, como fez em outras ocasiões, frisa que as rádios comunitárias devem se deslocar para este campo de concentração. É apresentado um discurso “técnico” para justificar a decisão política de excluir estas emissoras. O discurso fala que é “recomendável” que elas se desloquem para os campos de concentração fora do dial. Uma imposição, uma ordem. Aceita-se, provisoriamente, que as rádios fiquem dentro do dial (canais 251 a 254). Diz o texto da consulta:

Neste caso é recomendável, do ponto de vista de planejamento a longo prazo, que os canais alternativos sejam, sempre que possível, designados dentre os canais 251, 252, 253 e 254, os quais oferecem viabilidade técnica para sua futura alteração para os canais 198, 199 e 200 quando do encerramento das transmissões analógicas no canal 6 (seis) ao final do período de implementação da Televisão Digital[23].

O sociólogo Zygmunt Bauman (2003)[24] considera que o gueto é o nível mais baixo de comunidade. O gueto significa o confinamento espacial com o fechamento social. É a exclusão.

Podemos dizer que o fenômeno do gueto consegue ser ao mesmo tempo territorial e social, misturando a proximidade/distância física com a proximidade/distância moral. [...] a homogeneidadedos de dentro contra a heterogeneidade dos de fora. (BAUMAN, 2003, p. 105)

b) “Fincou” cercas eletromagnéticas determinando um campo restrito para ação da rádio comunitária. Trata-se de um gueto imposto, uma vez que esta circunferência de raio de 1 Km naturalmente não coincide com a área ocupada pela comunidade.

c) Impôs que os dirigentes residam dentro desse cercado.

d) Requer “fotografia” (planta de arruamento) da área cercada (do gueto).

e) Requer a indicação, nessa “fotografia”, dos locais de residência dos dirigentes.

f) Requer a lista (nome, endereço, CPF) de todos que moram nesse espaço (os associados).

g) Determinou que nada pode ser modificado (15.3) sem a prévia anuência do Poder concedente (Ministério das Comunicações).

h) Determinou que a RC não terá a proteção do Estado25.

Conclusões
A Norma 01/11 é parte de um conjunto de procedimentos que têm por objetivo regulamentar o Serviço de Radiodifusão Comunitária. Tais procedimentos incorporam uma vontade política (polissêmica e pragmática), caracterizando o que Michel Foucault denominou de “ordem disciplinar” – são estabelecidos mecanismos de disciplina e punição.

Os mecanismos de disciplina existiam, mas de forma fragmentada, até se consolidarem no século XVIII.

Fala-se frequentemente das invenções técnicas do século XVIII – tecnologias químicas, metalurgia, etc. – mas erroneamente nada se diz dessa nova maneira de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-las ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade, graças a um sistema de poder suscetível de controlá-los. Nas grandes oficinas que começam a se formar, no exército, na escola, quando se observa na Europa um grande processo de alfabetização, aparecem essa novas técnicas de poder, que são uma grande invenção do século XVIII. (FOUCAULT, 2009).

O estudo de Foucault mostra como as modernas instituições reelaboraram este poder e dele fazem uso ainda hoje. O “poder disciplinar” tem por objetivo a regulação e a vigilância, para que haja o controle e a submissão do indivíduo/entidade. O poder nem sempre é negativo, mas quando adota determinadas versões se torna uma tirania; quando não respeita valores éticos consagrados, manifesta-se como abuso sobre o ser humano. Temos isso claro nos governos ditatoriais, nas prisões, em algumas instituições formais, como a escola e a igreja. Expressões políticas como o nazismo, o fascismo, e mesmo democracias modernas, fazem uso do “Poder disciplinar”. O caso mais evidente é o dos Estados Unidos que, argumentando a existência de uma globalização do terrorismo, deu-se ao direito de sequestrar, torturar e matar qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo.

A questão é, no caso das rádios comunitárias, o Governo Dilma Rousseff, estaria fazendo uso do Poder disciplinar e assim reproduzindo práticas ditatoriais, nazistas ou similares?

Com base no que foi exposto até o momento, concluímos que a resposta é positiva. Mas podemos avançar na argumentação, realizando um exercício comparativo entre as ações do Estado brasileiro e práticas de Estados nazistas ou ditatoriais. Para tanto elencamos oito aspectos. Eis:

1) Campos de concentração
Primeiro, deve-se considerar que ao se tratar de RC há espaços visíveis e espaços invisíveis. Visível, por exemplo, é a área geográfica ocupada pela comunidade – um bairro, uma vila, um povoado. Invisível é o espaço eletromagnético, aquele associado à frequência (toda emissora ocupa determinada frequência no dial).

No caso das RCs, a intenção do Estado foi “concentrar” as emissoras comunitárias no mesmo lugar (a mesma faixa de frequências). Poderia ser qualquer “lugar” entre 88 e 108 MHz, porque este, afinal, é o espaço eletromagnético internacionalmente disponibilizado para as rádios que operam em Frequência Modulada (FM). Mas, como foi visto, o Governo determinou para as rádios comunitárias “locais específicos” e fora do dial (faixa de 87,5 a 87,9 MHz)26. Ocupam áreas, ou campos de concentração, invisíveis.

Quanto ao que é visível. O Estado brasileiro definiu geograficamente campos de concentração de forma circular, com raio de 1 Km. Estes campos são cercados eletromagneticamente (telas invisíveis) – o sinal da emissora não pode ultrapassar esses limites. E a Anatel “recomenda”: todos devem se dirigir para estes campos.

Os nazistas montaram diversos campos de concentração. Neles prenderam e depois mataram judeus, negros, comunistas, ciganos, homossexuais. Em certo momento da história nazista veio a ordem: todos deveriam se dirigir para este local.

2) Controle do indivíduo
O Estado brasileiro pretende controlar quem for instalado dentro do campo. Exige os dados pessoais de todos que vão residir neste espaço e até “foto” do local de moradia dos dirigentes; qualquer mudança deve ser imediatamente comunicada ao Poder.

Os nazistas fizeram isso. Antes de serem deportados para os campos de concentração os judeus eram “fichados” e obrigados a ostentar no peito a estrela de Davi, símbolo do judaísmo. Também as casas e lojas dos judeus eram devidamente identificadas. O Governo brasileiro está bem próximo disso ao “fichar” os da comunidade e cobrar uma “foto” do local de moradia dos dirigentes.

3) Identificação e segregação dos rebeldes
A norma 01/11 veta aos “criminosos” a direção das rádios comunitárias. É uma forma de expurgar e punir novamente os rebeldes. O Estado prefere os passivos no “controle” da rádio que opera no campo de concentração.

Os nazistas não permitiam manifestações contrárias ao regime. Ser judeu, comunista, negro, homossexual ou cigano, já era considerado crime. Matar um destes não era crime.
Durante a ditadura militar no Brasil os generais criaram um dispositivo legal (art. 70 da Lei 4.117/62) que tinha como objetivo “pegar” os inimigos do regime, os subversivos, os terroristas. Este dispositivo é usado até hoje pelo Governo Dilma Roussef.

4) Burocracia
A burocracia é uma das formas de controle. Faz parte dela exigir declarações aparentemente insensatas dos que serão encaminhados aos campos de concentração. A intenção é humilhar; já vale como punição. A burocracia, que se manifesta como discurso técnico, oculta uma intencionalidade política – vigiar, segregar, punir, excluir o setor.

No início da campanha contra os judeus, os nazistas usavam a burocracia como forma de lhes criar dificuldades e também para fazer o controle sobre eles. A burocracia é uma das formas mais perversas e sutis de se controlar e punir as pessoas.

Em seus estudos, Foucault faz diversas referências ao uso da burocracia pela máquina do Estado para vigiar e punir os inimigos do Poder.

5) Punições
Elas começam com a burocracia estabelecida pelo Estado. O rito é humilhante por vários motivos: a) quantidade de papeis; b) exigem-se declarações insensatas; c) distanciamento e falta de informações. A lista de punições não está na Norma – são 29 itens,estabelecidos no Decreto 2.615/98 (Art. 40 incisos I a XXIX).

Os nazistas estabeleceram punições em regra. Com o tempo, elas foram se tornando cada vez mais cruéis. Por fim, veio o extermínio nas câmaras de gás.

6) Legislação
O Estado brasileiro criou uma legislação27 para o setor que visa limitar, coibir, controlar e punir as rádios comunitárias. Foi feita uma parceria entre o Legislativo e o Executivo para que esta legislação se tornasse ideologicamente eficiente. O Executivo complementou o sentimento disciplinar iniciado no Legislativo, impondo decretos, normas e resoluções. Ele transformou em Norma e já colocou em vigor o que era projeto de lei tramitando no Legislativo.

Os nazistas elaboraram leis de segregação aos que não eram arianos puros como eles. Para tanto, adaptaram para a Alemanha nazista leis racistas e eugênicas dos Estados Unidos28. Aos poucos, os que não faziam parte da “raça ariana”, superior, foram perdendo espaço e recebendo punições. Normas foram estabelecidas sobre questões de raça (ocultando a proteção de uma classe). Aos poucos implantaram normas que estabeleciam os poderes de uma elite (nazista) sobre os demais.
Os tiranos e ditadores costumam buscar a legitimidade dos seus atos através da legislação. Os generais que cuidaram da ditadura no Brasil fizeram isso através de Atos institucionais, decretos-leis, e até de uma “constituição”. Alguns destes dispositivos continuam em vigor.

7) Vigilância
Nos últimos oito anos, o Estado se preocupou em aperfeiçoar a Anatel. Aumentou o quadro de pessoal e o salário dos seus agentes; novos e modernos equipamentos de monitoramento foram adquiridos. Até criou uma lei que dá poder de polícia aos agentes da Anatel.

Os nazistas tinham sua polícia secreta, a SS. A ditadura brasileira investiu na criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), que, articulado com órgãos similares nas Forças Armadas, comandou um grande sistema de vigilância e repressão aos inimigos do regime. Sequestrar, torturar e matar era rotina.

Vigiar e reprimir
As ações de repressão ocorrem numa parceria da Anatel com a Polícia Federal. A eficiência do setor é espantosa: estima-se que uma média de mil rádios não-autorizadas são fechadas por ano.

Há denúncias de ações truculentas dos agentes da Anatel e PF. Prisões e apreensões de equipamentos estariam sendo feitas sem o devido mandado judicial.

O nazismo montou um eficiente aparato repressor. Ele é lembrado pela forma truculenta com que tratava aqueles que eram contrários ao regime.

As ditaduras na América Latina foram marcadas por sequestro, tortura, morte. A repressão sempre foi eficiente nas ditaduras.

Este conjunto de dados reforça a existência de uma semelhança muito grande entre as práticas nazistas (e outras formas tiranas de governar) e os métodos empregados pelo Estado brasileiro para lidar com as rádios comunitárias. Há uma elite29, devidamente representada no Governo Dilma (como estava no Governo Lula, FHC e antecessores), que não admite o crescimento de um setor que pode contestar esse poder, na medida em que amplia o número de enunciadores, de críticos. Boa parte dos que fazem RC são os excluídos históricos da sociedade brasileira, que, através das rádios comunitárias, podem reivindicar seus direitos de cidadão. E isto as elites nacionais não aceitam.
O caso, certamente, requer uma leitura mais pragmática por parte dos que atuam com direitos humanos. Entendemos que é necessário denunciar o Brasil à corte internacional. Este conjunto de práticas, muito semelhantes às empregadas pelos nazistas e governadores tiranos, indica que o Governo brasileiro discrimina as rádios comunitárias. E faz isso apelando para o discurso do legalismo, o discurso técnico e a repressão violenta. Tais práticas representam um retrocesso político; revelam que a democracia brasileira ainda é frágil e questionável no que se refere à democratização dos meios de comunicação.

Isto é evidente. O que não é evidente para a sociedade são os métodos de manipulação empregados pelo Governo. Ele camuflou como Norma técnica um discurso político opressor e manipulador. Mais que um discurso, há ordens, imposições deste poder. Existe a postura política de vigiar e punir muitos (os excluídos históricos) e favorecer uns poucos (as elites do país).

Uma Norma como esta, infelizmente, sacramenta uma história de exclusão, segregação, discriminação, vigilância e punição pelo Estado, a um movimento que tem como princípio o acesso da sociedade brasileira aos meios de comunicação.

Não se trata aqui de defender rádios que se apresentam como comunitárias, mas pertencem a padres, pastores, políticos ou empresários – estas enganam a sociedade. Pelo contrário, as rádios têm princípios e eles devem ser seguidos – rádios comunitárias são emissoras em que todos podem se manifestar, opinar, decidir, informar, independente de cor, etnia, raça, sexo, classe social, etc.

Trata-se do exercício da democracia na forma mais radical, uma vez que todos – com suas diferenças – devem contribuir para viabilização da RC. Quando o ministro Paulo Bernardo publica normas como a 01/11, demonstra que foi mantido o posicionamento histórico do Estado contra as RCs e que, dado esse contexto de repressão e abuso, vigilância e punição, o diálogo entre Governo e sociedade se torna impossível.



Notas
1 – Publicada no Diário Oficial da União de 18/10/11. A Portaria 462, que tem como Anexo a Norma 01/11.Disponível aqui , acesso em 15/11/11.
2 – “Discurso é aqui entendido para significar somente um evento comunicativo específico, em geral, e uma forma oral ou escrita de interação verbal ou uso da língua, em particular” (VAN DIJK, 2008, p. 135). VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder.São Paulo, Contexto, 2008.
3 – FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de janeiro, Petrópolis: Vozes, 2009.
4 – Disponível aqui , acesso em 09/11/2011. O site não indica a autoria do texto.
5 – Idem.
6 – A Amarc propôs aumento de potência, alcance superior ao raio de 1 Km, menos burocracia, mais transparência, cursos de formação para quem faz rádio e para os agentes da Anatel e Polícia Federal,…Disponível aqui , acesso em: 17/11/11.
7 – Disponível aqui , acesso em: 17/11/11.
8 – Disponível aqui , acesso em 13/05/2011.
9 – Disponível aqui , acesso em: 17/11/11.
10 – PERUZZO Cicilia M. Krohling, Rádios comunitárias: entre controvérsias, legalidade e repressão.2005.Disponível aqui , acesso em 14/11/2011.
11 – ABIN é Agência Brasileira de Inteligência. Sucessora do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), que foi bastante eficiente durante a ditadura militar, a ABIN é um ente secreto, mantido com verbas secretas, que faz espionagem para o Estado.
12 – São casos simbólicos. A maioria deles são mantidos “invisíveis” porque o processo de outorga não obedece a transparência exigida. Tanto o Governo quanto a instituição não gostariam de dar publicidade a esta aliança.
13 – Disponível aqui , acesso em 09/11/2011.
14 – LIMA, Venício Arthur de; LOPES, Cristiano Aguiar. Coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004): as autorizações de emissoras como moeda de barganha política. Observatório da imprensa, Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor): 2007. Disponível aqui, acesso em: 4/11/11.
15 – O poder das igrejas na radiodifusão.Total de rádios: 259. Total de redes de rádios: 69. A Igreja Católica é majoritária entre as religiões. Ela detém o comando sobre 133 rádios e sobre 46 redes de rádio. No que se refere à televisão, as igrejas controlam 234 emissoras, detém 1826 TVs, e 48 grupos afiliados. A Igreja Católica, em particular, tem outorgas de 46 emissoras, controla 863 retransmissoras e tem 9 afiliadas. Fonte: www.donosdamidia.com.br
16 – A Convenção Americana de Direitos Humanos completa 40 anos. O tratado, também chamado de Pacto de San José da Costa Rica, foi assinado em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica, e ratificado pelo Brasil em setembro de 1992.
17 – Um total de 36 propostas tramitam hoje no Congresso Nacional. São 33 Projetos de Lei (PL) na Câmara; dois PLs que ainda estão no Senado; uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) também da Câmara. (Fonte: Câmara dos Deputados e Senado Federal).
18 – Podemos apontar como ações de Estado contrárias às RCs, entre outras: legislação restritiva, construção de um aparato repressor eficiente, abusos de poder, burocracia, falta de transparência, sistema de atendimento diferenciado aos aliados políticos ou religiosos.
19 – Essa preocupação com o indivíduo está presente em toda legislação.
20 – Disponível aqui , acesso em: 20/11/11.
21 – Planta de arruamento é uma espécie de fotografia da área.
22 – Página 2. Resoluções nº 60/98 e nº 356/04.
23 – Disponível aqui , acesso em: 14/11/11.
24 – BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
25- O art. 22 da Lei 9.612/98 diz exatamente isso.
26 – Como ouvir a RC se os aparelhos disponíveis no mercado só captam acima de 88 MHz?
27 – Lei 9.612/98, Decreto 2.615/98 e Norma 01/11.
28 – Do final do século XIX até o fim da Segunda guerra, havia uma espécie de consenso no mundo sobre a existência de raças superiores. Academias do mundo inteiro propagaram essa ideia eugênica. De acordo com Chomsky, nos anos 1930, 75% das universidades norte-americanas pregavam isso. Nos Estados Unidos, antes de Hitler, antes da Guerra, havia concursos para premiar a família mais pura”. Hitler, que tinha boas relações com os norte-americanos, solicitou estudos sobre a legislação de segregação norte-americana e fez sua adaptação ao nazismo. Academias da América Latina e o Caribe também acataram a eugenia como ciência.
29 – Empresarial, econômica, religiosa; incluindo os proprietários das grandes redes de comunicação, mas não só estes.
***

*Dioclécio Luz é jornalista, mestre em Comunicação pela UnB, integra o Conselho político da Amarc; neste texto, contou com a colaboração de João Paulo Malerba, que fez críticas e sugestões ao texto original.


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