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Mdia
Do jornal à internet: hegemonia e luta de classes

Por Silvio Mieli*

Há algum tempo, um colega da PUC de São Paulo sugeriu que eu procurasse uma entrevista que o filósofo francês Michel Foucault teria dado à falecida Revista Manchete, em 1973, quando de sua visita ao Brasil para um curso aqui na PUC do Rio. Achei que o colega estivesse delirando. Foucault falando à Manchete, em plena ditadura? Mas fui conferir pessoalmente, e eis que depois de uma tarde nos arquivos da Escola de Comunicação e Artes da USP, achei o número 1104 da Revista Manchete de 16 de Junho de 1973.

A capa trazia a cantora Barbara Straissand vestida de africana, sugerindo que a África entraria na moda também naqueles idos. Outros temas de destaque: a chave da saúde está no cérebro; as maravilhas de Fernando de Noronha e, é claro, na falta de Evo Morales, Hugo Chaves ou do MST, que ainda não atuavam em 1973, o colorido semanário dava um cutucão nos aviões russos: “Tupolev: quando explodem os aviões”, era uma das chamadas de capa.

Depois de folhear a vibrante revista, passando por propagandas que anunciavam o lançamento do Dodge Dart, do novo três em um da Philiphs, da TV em cores Telefunken, e outas pérolas da publicidade da época, eis que desponta a tal entrevista com Foucault.

Sob o título “O mundo é um grande hospício”, Foucault diz o seguinte ao repórter Ricardo Gomes Leite:

“Considero-me um jornalista, na media em que o que me interessa é a atualidade, o que se passa em nosso redor, o que somos, o que acontece no mundo... O futuro é a maneira como reagimos ao que se passa, é a maneira como transformamos em verdade um movimento, uma dúvida. Se nós quisermos ser mestres do nosso futuro, devemos colocar fundamentalmente a questão do hoje. Por isso, completou Foucault, a FILOSOFIA É UMA ESPÉCIE DE JORNALISMO RADICAL.

A leitura desse texto aparentemente despretencioso, publicado numa revista cujo apelido era PAPAGAIO, por ser muito colorida e só falar besteiras, me intrigou profundamente.

Por que um historiador, filosofo, linguista preferia autodefinir-se um jornalista????? Descobri que em outras ocasiões Foucault definiu-se como jornalista, quando perguntado sobre, afinal de contas como gostava de se definir.  E é inegável. Sempre houve nesse filósofo criticado à direita mas também à esquerda  A paixão pelo contemporâneo, pela realidade e pelo factual...

Para ser colocada em prática, essa paixão pelo presente e pelo contemporâneo, inclusive no âmbito jornalístico, demanda um método arqueológico, um corte horizontal que articula historicamente diferentes discursos e saberes locais ao poder.

Na própria palavra arqueologia, temos embutida a noção de arché, começo, princípio e a ideia de arquivo, o registro das coisas. Mas o arquivo não é o traço morto do passado. O objetivo da arqueologia, assim como do jornalismo, é sabermos, na verdade, o que nós somos hoje...e como se articulam os sentidos e significados das ações no presente.

Portanto há no nosso ofício essa característica de nos movimentarmos por camadas, que são linguagens, discursos, técnicas e poderes...

Mas a relação entre jornalismo e arqueologia vai mais além, o que faria supor que estamos mais para um irriquieto e tardio Indiana Jones do que para um Clark Kent pós-moderno, para usar imagens cinematográficas.

O arqueólogo lida com o tempo e com a invenção. Invenção vem do latin invenire, que significa encontrar relíquias ou restos arqueológicos. A invenção não é, como poderíamos imaginar, um clarão, uma hiperiluminacão, um raio que despenca do céu, mas um trabalho com restos, fragmentos, uma prática de tateio, de seleção, de filtragem, de edição, que se dá em terrenos acidentados e, no mais das vezes, obscuros, sombrios, sinistros, verdadeiros campos minados...

A invenção implica um tempo, uma relação com a memória, daí a raiz comum de “invenção” e “inventário”. O arqueólogo  inventa um tesouro porque decidiu cavar num determinado local, com base em lendas, tradições, convicções absolutamente subjetivas....Talvez alguém tenha dito que em determinado local existe um tesouro, resquícios de uma antiga civilização, múmias ou simples e corriqueiros fatos jornalísticos cotidianos a serem desencavados...

Mas depois de cavar, o arqueólogo acaba encontrando algo e esse algo existe concretamente, objetivamente, seja qual for o contexto cultural. E essa invenção é, no fundo, o encontro entre sujeito e objeto, é criação, descoberta que pode abalar as estruturas do tempo e do espaço, assim como uma boa matéria jornalística. Por exemplo, Euclides da Cunha em Os Sertões, texto que trafega entre a ficção e a realidade, entre o romance e reportagem, entre um estilo chamado de pré-modernista e aspectos absolutamente contemporâneos do Brasil.

Ora, o jornalismo sempre lidou com o tempo e com a contemporaneidade. E a nossa luta, no fundo, sempre foi contra o tempo. Colocar o máximo de coisas no menor espaço de forma mais rápida. Tudo ao mesmo tempo agora.

Mas a pergunta que fica é a seguinte: Será que isso é ser contemporâneo????? Iluminar tudo o que eu conseguir no menor espaço de tempo????? Será que assim somos cidadãos do nosso tempo, do tempo atual??? Do jornal à internet, afinal, o que é ser contemporâneo hoje?????????????

Essa pergunta foi tema do filósofo italiano Giorgio Agamben. Retomo a questão porque ela é crucial para esta nossa discussão.

Para aqueles que acham que ser contemporâneo é perseguir os holofotes de uma realidade hiperiluminada, inclusive pelas luzes das novas tecnologias, Agamben alerta que, pelo contrário, contemporâneo é aquele que percebe a sombra de seu tempo como algo que lhe concerne e que não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que qualquer luz, se refere direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o feixe de trevas que provém de seu tempo.

Ora, para nós jornalistas, herdeiros dos ideais iluministas, isso deveria nos chocar. Será que a nossa missão não é mais a de carregadores de fachos de luzes, que esclarecem racionalmente as trevas da mentira e exaltam a verdade dos tempos que correm????? Viramos catadores de feixes de sombras ??????

Será que não é exatamente isso que está acontecendo diante do crescimento do documentário como meio de expressão??? Será que os documentaristas contemporâneos não estariam circulando mais pela beiradas, pelas sombras do tempo e da história ??????

Para além do fenômeno da oferta de equipamentos a baixo custo, acho que existe um outro fator fundamental. Poderíamos chamá-lo de crise, transformação, metamorfose ou até, se preferirmos, de declínio de certas modalidades informacionais, como o jornalismo impresso clássico representado pelos grandes jornais (alguns estão literalmente fechando mundo afora), assim como o modelo das grandes redes de televisão, que vem sendo superado por uma outra lógica de casamento entre a televisão e a internet.

Não é o caso de aprofundarmos aqui os motivos pelos quais o jornalismo impresso entrou em crise e o jornalismo televisivo espetacularizou-se por completo, o que importa é que este fenômeno franqueou uma migração de muitos jornalistas, cineastas, artistas, para o documentário, e outras modalidades menos institucionais de realização.

Ou seja, a mídia impressa corporativa passou a abdicar daquele exercício de aprofundamento mínimo diante de uma realidade cada vez mais complexa. Os jornais e as revistas, com poucas exceções, viraram espécies de catálogos de lojas de departamentos, deixando de darem sentido e significado para o que acontece. Ou, se quisermos, deixando de manifestarem aquela paixão pelo presente da qual nos falava Foucault.

Por outro lado, o cinema ficcional de mercado, ainda que usando efeitos documentais, limita-se a estetizar a mesma realidade (refiro-me a filmes como Tropa de Elite, Salve Geral e congêneres). Ora, parece-me claro que, até por uma questão de necessidade de manifestação cultural e expressão comunicacional, cresce o documentário como forma de expressão, ainda mais com as facilidades de produção, e distribuição via rede. O documentário passa a ser um respiro, uma válvula de escape, quando não um grito tribal ou punk do realizador para resistir ao ambiente de claustrofobia cultural no qual vivemos, apesar da aparente oferta ilimitada de produtos da indústria cultural.

Em seu curso sobre o contemporâneo, oferecido junto à Faculdade de Arte e Design de Veneza, entre 2006 e 2007, Giogio Agamben retoma uma questão que as crianças costumam fazer sobre o azul do céu e a escuridão da noite. Ele a responde a partir de um outro ponto de vista:

No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem rodeadas por uma densa treva. Uma vez que há um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, requer uma explicação. .. No universo em expansão, as galáxias mais remotas se afastam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não consegue nos alcançar. O que percebemos como a sombra do céu é essa luz que viaja extremamente veloz até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais ela provém se afastam a uma velocidade superior à velocidade da luz. Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros

E por isso ser contemporâneo, segundo Agamben, é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter o olhar fixo na sombra da época, mas também perceber nessa sombra uma luz que, dirigida até nós, se afasta infinitamente de nós...

É esta a equação complexa da contemporaneidade que nós jornalistas teremos que resolver... Lutarmos contra o tempo mas ao mesmo tempo percebermos que só somos tecidos do tempo...

Isso significa que o contemporâneo não é só quem, percebendo a sombra do presente, apreende sua luz invendável. É também quem, dividindo e interpolando o tempo, está em condições de transformá-lo e colocá-lo em relação com os outros tempos, ler nele a história de maneira inédita, "encontrar-se" com ela segundo uma necessidade que não provém absolutamente de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode deixar de responder. É como se essa luz invisível que é a escuridão do presente projetasse sua sombra sobre o passado, e este, tocado por seu feixe de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora.

Eu não poderia deixar de dar um exemplo concreto do que talvez ande pela penumbra dos tempos, além da emergência do documentário como estilo concreto de luta contra hegemônica...  Num artigo recente no jornal Brasil de Fato, fiz questão de destacar o coletivo canadense Adbusters, uma espécie de vanguarda do ativismo digital, que afinal de contas assumiu os riscos de convocar o movimento de ocupação de Wall Street em 15 de outubro último.

Ora, o que faz o coletivo Adbusters ???? Uma revista de mesmo nome, que existe desde meados dos anos 90, especializada em antipublicidade e uma rede de agitadores e provocadores culturais (os Culture Jammers).

Este coletivo ajudou a moldar o midiativismo da última década, que passou a atuar a partir da fronteira entre arte, comunicacão, tecnologia e política. Em primeiro lugar uma luta implacável contra o poder corporativo, que passou a colonizer o imaginário humano através da publicidade. A diluição entre jornalista e militante, que se manifesta via internet principalmente nos blogs, deve muito a experiências como a da Revista Adbusters.

A Media Foundation, através da revista Adbusters (que circula desde 1989 sem anúncios pagos) lançou campanhas históricas, como aUnbrand America, quando cada estrela da bandeira estadunidense foi substituída por um logo corporativo, ou aBlackspot, que resumia-se a um ponto escuro, espécie de ponto de partida para uma resistência contra "a transformação do consumismo na religião nacional". Sem falar do “Dia sem Compras” e do “Dia Sem TV”, dentre tantas outras pouco conhecidas entre nós brasileiros.

Tanto na versão impressa da revista como no site, prevalece um design simples, mas refinado e moderno, baseado num cuidado especial com a relação criativa entre texto e imagem, principalmente nas paródias inteligentes de campanhas publicitárias famosas. As análises políticas e comportamentais são primorosas. Na edição de maio/junho de 2011 encontra-se, por exemplo, a melhor definição do fenômeno Justin Bieber, sob o seguinte título: “a vacuidade da cultura ocidental”.

Quando muitos imaginavam que a mistura entre arte, comunicação, tecnologia e política seria incapaz de estabelecer qualquer vinculo concreto com a realidade, eis que vingou uma ocupação de carne e osso no núcleo duro do capitalismo financeiro. Apesar das ameaças, a ocupação em Wall Street completa o seu primeiro mês. E no histórico 15 de outubro espalhou-se pelo mundo. Mais uma prova de que existem territórios que só a arte, a cultura e a linguagem conseguem penetrar.

Assim sendo, só me resta pedir emprestado um velho mote que avós e bisavós usavam ao verem seus filhos e netos prontos para saírem de casa em dias ensolarados: “Companheiros, caminhem pela sombra”.  Quem sabe, conforme inspira a canção de Chico Buarque, consigamos, na penumbra, catar alguma poesia que a contemporaneidade entorna no chão...

***
Texto preparado para ser apresentado no 17º Curso Anual do NPC, que teve como tema geral Comunicação e hegemonia num mundo em ebulição.


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