Publicado em 11.10.2011 - Por Francisco Bicudo*, na edição 663 do Observatório da Imprensa
O mediador levou cerca de cinco minutos para fazer as devidas apresentações e relembrar apenas algumas das experiências profissionais vividas pelo convidado da noite de abertura da 19ª Semana de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Ele subiu ao palco e, ao receber o microfone, confessou que naquelas situações fica sempre tentado a cantar “Strangers in the night”, imortalizada na voz de Frank Sinatra. A plateia (o auditório estava lotado) se animou e insistiu, entoando o tradicional coro de “Canta, canta!” “A tentação é forte. Mas vou conter a empolgação. Resistirei”, recusou elegantemente o jornalista Mino Carta, diretor de redação da revista CartaCapital. O que se ouviu então, e durante as quase duas horas seguintes, foram sinceras e mais do que relevantes lições sobre elementos e princípios do (bom) jornalismo.
Mino reconheceu que não seria exatamente portador de boas notícias. Apesar de vislumbrar que no longo prazo o Brasil será um país feliz e muito importante no cenário internacional, ressaltou que ainda não alcançamos tal estágio justamente por conta de nossas elites – que classifica como uma das piores e mais atrasadas do mundo. “A elite herdeira do ideal da Casa Grande cuidou para que as coisas por aqui continuassem medievais. É assim que nossas oligarquias sobrevivem.”
Por consequência lógica, completou Mino, o jornalismo não escapa desse cenário. Expressa e representa o que somos, como somos, os nossos conflitos – e atrasos. Citou como exemplo a cobertura feita pela grande mídia na semana passada a respeito do título de doutor honoris causa recebido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condecorado pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po, uma das instituições mais importantes e renomadas do mundo na área), por conta da “revolução econômica, social e pacífica promovida no Brasil nos últimos oito anos”.
“O jornalista não pode brigar contra a verdade factual”
Na entrevista coletiva ocorrida após a homenagem, repórteres brasileiros presentes à cerimônia faziam questão de não esconder o inconformismo com a conquista. Como lembrou Mino, um deles perguntou ao diretor do Instituto francês como era possível alguém receber o título sem que jamais tivesse lido livro algum... Um segundo questionou: como entregar algo tão grandioso a alguém que permitiu a corrupção em larga escala? E um terceiro ainda explicitou que era inexplicável que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não tivesse alcançado o mesmo grau. “Essas perguntas provam muita coisa”, alertou Mino, reconhecendo que Lula, durante os dois mandatos, deixou de promover mudanças que o jornalista considerava importantes, mas também destacando que o balanço final que faz da “Era Lula” é positivo, além de reforçar que a eleição e o governo de um ex-metalúrgico significaram um divisor de águas na História do país, pela simbologia que carregam. “Naquele momento, indignados, os jornalistas estavam expressando o discurso dos patrões e claramente manifestando seu ódio de classe”, confirmou. “Os donos de nossos meios de comunicação adorariam viver em uma democracia sem povo. E somos o único país do mundo onde jornalista chama o patrão de colega”, completou, contrariado.
Sem minimizar a importância da universidade, Mino disse que é nas redações que se aprende a ser jornalista. Para tanto, segundo ele, é preciso reunir alguns talentos. O primeiro: lidar bem com o vernáculo. Segundo: desenvolver sólido conteúdo moral. Foi nesse momento que Mino recordou de seus tempos de enfrentamento com a ditadura militar, quando, revelou, entendeu com profundidade a serventia do jornalismo – senão para mais nada, para narrar as histórias daquele tempo horroroso, a partir do viés dos vencidos, daqueles que não tinham voz.
Mino contou que foi também durante os anos de chumbo que leu Entre o passado e o presente, da filósofa alemã Hannah Arendt. De forma bem resumida, na obra a pensadora analisa a verdade que cada um carrega consigo – “são nossas opiniões ou tentativas de interpretação”, diferenciou o jornalista, para em seguida acrescentar: “Mas há uma verdade factual, contra a qual o jornalista não pode brigar.” Mino fez uma pausa e tomou um longo gole d´água. “Tomei água. Eis uma verdade factual. É a ela que o jornalista deve fidelidade canina. É mais um fundamento básico da profissão.” A partir do fato, o desafio é dar voz a todos os envolvidos, de maneira plural, sem preconceitos – e a opinião do repórter, admite Mino, pode até ser evidenciada, desde que honestamente anunciada como tal.
“Veja imitou à perfeição o jornalismo de Rupert Murdoch”
Para o diretor de redação de CartaCapital, no entanto, o jornalismo brasileiro não respeita essa premissa básica do buscar a verdade factual. “Omite quando convém ao dono do veículo, ao político, ao empresário. Isso quando não patrocina conscientemente a distorção, a invenção, a mentira. E dizia Hannah Arendt que quando uma verdade vai ao fundo do mar, não pode mais ser recuperada”, lamentou. Por fim, Mino fez questão de dizer com muita convicção que o jornalista precisa ainda ser movido por candente espírito crítico, para fiscalizar os poderes – os donos do poder, como diria Raymundo Faoro – e todos eles, não apenas o político.
Um aluno na plateia perguntou: se o cenário for diferente no longo prazo, o senhor consegue avaliar de onde virão as transformações? Mino foi incisivo: não tem fórmulas mágicas. Mas reconheceu que as mudanças passam pela democratização, pela regulamentação e pelo controle social da mídia. “É procedimento absolutamente normal em outros países democráticos. É indispensável para definir limites e deveres”, afirmou. O problema, completou, é que os barões da mídia não querem nem pensar nessa hipótese e, sempre que o debate vem a público, saem gritando: “Estão querendo nos censurar, cercear a liberdade de expressão.” O governo então recua, acomoda-se, lamentou mais uma vez Mino. Para ele, é uma dinâmica semelhante àquela que resultou na criação da Comissão da Verdade. “É difícil acreditar que, do jeito como foi concebida, poderá mesmo revelar alguma coisa.” E fulminou, sem tergiversar: “O problema é que o poder, inclusive o petista, adora aparecer na TV Globo e dar entrevistas para as páginas amarelas da revista Veja.”
Sobre a revista semanal da editora Abril, que Mino Carta ajudou a idealizar e a criar ainda no final dos anos 1960, em plena época de terror da ditadura, o jornalista não dourou a pílula: “Veja é hoje monstruosa, hedionda. Eu criei um monstro.” Para ilustrar, e mais uma vez provocado pela plateia, ele citou a recente matéria de capa sobre as “relações perigosas” do ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu. “Pois é, não tenho admiração divina alguma pelo senhor José Dirceu. Mas com aquele texto o que Vejaconseguiu foi só imitar à perfeição o jornalismo feito por Rupert Murdoch. Mas o que esperar da Veja? É assim mesmo. É a Veja”, disparou.
*Francisco Bicudo é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação