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Os protestos em Londres, por Naomi Klein
Publicado por Carta Maior
Claro que os tumultos de rua em Londres não foram protesto político.
Mas o pessoal dos saques noturnos com certeza absoluta sabe que suas
elites passaram o dia dedicadas aos saques diários. Saques são
contagiosos. Alimentados por um sentido patológico de ‘direitos
adquiridos’ pelos ricos, o grande saque global está em andamento à luz
do dia, como se nada houvesse a esconder. Mas há, sim, temores
ocultados. No início de julho, o Wall Street Journal, citando pesquisa
recente, noticiava que 94% dos milionários temiam “a violência nas
ruas”. O artigo é de Naomi Klein.
Naomi Klein - The Nation
Leio comparações entre os tumultos
em Londres e em outras cidades europeias – vitrines quebradas em Atenas,
carros incendiados em Paris. E há paralelos, sem dúvida: uma fagulha
lançada pela violência policial, uma geração que se sente esquecida.
Esses eventos foram marcados por destruição em massa, com poucos saques.
Mas tem havido saques em massa em anos recentes e acho que temos de
falar também deles. Houve em Bagdá, logo depois da invasão
norte-americana – um frenesi de destruição e saques que esvaziou
bibliotecas e museus. Também em fábricas. Em 2004, visitei uma fábrica
de refrigeradores. Os trabalhadores tinham saqueado tudo que havia ali
de aproveitável, empilharam e incendiaram. No armazém ainda havia uma
escultura gigantesca de placas de metal retorcido.
Naquela ocasião, os noticiários entenderam que teria sido saque
altamente político. Diziam que aquilo exatamente seria o que aconteceria
sempre que um governo não é considerado legítimo pelos cidadãos. Depois
de ter assistido durante tanto tempo ao espetáculo de Saddam e filhos
roubarem o que conseguissem e de quem conseguissem roubar, os iraquianos
comuns sentir-se-iam, então, merecedores do direito de também roubar um
pouco. Mas Londres não é Bagdá e o primeiro-ministro britânico David
Cameron não é Saddam. Assim sendo, nada haveria a aprender dos saques em
Londres.
Mas há exemplos no mundo democrático. A Argentina, em 2001. A
economia em queda livre e milhares de pessoas vivendo em periferias
destruídas (que haviam sido prósperas zonas fabris, antes da era
neoliberal) invadiram e saquearam supermercados de propriedade de
empresas estrangeiras. Saíam empurrando carrinhos abarrotados dos
produtos que perderam condições para comprar – roupas, aparelhos
eletrônicos, carne. O governo implantou “estado de sítio” para restaurar
a ordem; a população não gostou e derrubou o governo.
Na Argentina, o episódio ficou conhecido como El Saqueo – o
saque[1]. É exemplo politicamente significativo, porque a palavra
aplica-se, na Argentina, também ao que as elites do país fizeram, ao
vender patrimônio da nação à guisa de ‘privatizar’, em negócios de
corrupção flagrante e enviando para o exterior o produto das
‘privatizações’, para, em seguida, cobrar do povo obediência a um brutal
pacote de ‘austeridade’. Os argentinos entenderam que o saque dos
supermercados jamais teria acontecido sem o saque anterior, muito maior,
do próprio país; e que os reais gângsteres estavam no governo.
Mas a Inglaterra não é a América Latina e, na Inglaterra, não há
tumultos políticos – ou, pelo menos, é o que nunca se cansam de repetir.
Os jovens que devastaram ruas em Londres são crianças sem lei, que se
aproveitam de uma situação, para roubar o que não lhes pertence. E a
sociedade britânica, diz-nos Cameron, tem ojeriza a esse tipo de gente
mal comportada.
Disse, e com ar sério. Como se os ‘resgates’ massivos dos bancos
jamais tivessem acontecido, seguidos imediatamente do pagamento de
escandalosos bônus recordes aos altos executivos. Depois, as reuniões de
emergência do G-8 e do G-20, mas quais os líderes decidiram,
coletivamente, nada fazer para punir os banqueiros por esse ou aquele
crime, além de também nada fazer para impedir que crises semelhantes
voltem a acontecer. Em vez disso, cada um daqueles líderes nacionais
voltou aos seus respectivos países para impor sacrifícios ainda maiores
aos mais vulneráveis. Como? A receita é sempre a mesma: despedir
trabalhadores do setor público, fazer dos professores bodes expiatórios,
cancelar acordos previamente firmados com sindicatos, aumentar as
mensalidades escolares, promover rápida privatização de patrimônio
público e reduzir aposentadorias e pensões. – Cada um que prepare a
mistura específica para o país onde viva. E quem lá está, na televisão,
pontificando sobre a necessidade de abrir mãos desses “benefícios”? Os
banqueiros e gerentes de empresas de hedge-fund, claro.
É o Saqueo global, tempo de saques imensos! Alimentados por
um sentido patológico de ‘direitos adquiridos’ pelos ricos, o grande
saque global está em andamento à luz do dia, como se nada houvesse a
esconder. Mas há, sim, temores ocultados. No início de julho, o Wall
Street Journal, citando pesquisa recente, noticiava que 94% dos
milionários temiam “a violência nas ruas”. Aí, afinal, um medo
compreensível.
Claro que os tumultos de rua em Londres não foram protesto político.
Mas o pessoal dos saques noturnos com certeza absoluta sabe que suas
elites passaram o dia dedicadas aos saques diários. Saqueos são contagiosos.
Os Conservadores acertam quando dizem que os tumultos nada têm a ver
com os cortes. Mas, sim, têm muito a ver com os cortados que os cortes
cortaram. Presos longe, numa subclasse que infla dia a dia e sem as vias
de escape que antes havia – um emprego no sindicato, educação barata e
de boa qualidade –, eles estão sendo descartados. Os cortes são um
sinal: dizem a todos os setores da sociedade que os pobres estão fixados
onde estão – como dizem também aos imigrantes e refugiados impedidos de
ultrapassar fronteiras nacionais cada dia mais militarizadas e
fechadas.
A resposta de David Cameron às agitações de rua é tornar literal e
completo o descarte dos mais pobres: fim dos abrigos públicos, ameaças
de censura e corte das ferramentas de comunicação social e penas de
prisão absolutamente inadmissíveis; uma mulher foi condenada a cinco
meses de cadeia, por ter recebido um short roubado [e hoje, 17/8/2011,
dois homens foram condenados a quatro anos de prisão, por incitarem
tumultos pela internet, apesar de não se ter provado que sua ‘incitação’
levou a alguma consequência (NTs, com informações de Guardian em http://www.guardian.co.uk/uk/2011/aug/17/facebook-cases-criticism-riot-sentences)]. Mais uma vez a mensagem é clara contra os pobres que incomodam: sumam. E sumam em silêncio.
Na reunião “de austeridade” do G-20 em Toronto, os protestos viraram
tumultos e vários carros da polícia foram incendiados. Nada que se
compare a Londres 2011, mas o suficiente para deixar-nos, os canadenses,
muito chocados. A grande discussão naquela ocasião era que o governo
havia consumido $675 milhões de dólares na “segurança” da reunião (e
ninguém conseguia sequer impedir o incêndio de carros da polícia).
Naquele momento, muitos dissemos que o novo e caríssimo novo armamento
que a polícia havia comprado – canhões de água, canhões de som, granadas
de gás lacrimogêneo e munição revestida de borracha – não havia sido
comprado para ser usado contra os manifestantes nas ruas; que, no longo
prazo, aquele equipamento seria usado para disciplinar os pobres que, na
nova era de ‘austeridade’, seriam empurrados para a perigosa posição de
pouco terem a perder.
Isso, precisamente, é o que David Cameron absolutamente não entende: é
impossível cortar orçamentos militares ou policiais, no mesmo momento
em que você corta todos os gastos públicos. Porque, se o estado rouba os
cidadãos, tirando deles o pouco que ainda têm, pensando em proteger os
interesses dos que acumulam muito mais do que qualquer ser humano
precisa para viver, é claro que deve esperar o troco ou, pelo menos,
deve esperar resistência – seja a resistência de protestos organizados,
seja a resistência das ondas de saques. Não é propriamente problema
político: é problema matemático, físico.
[1] Ver, sobre esse período, Memoria del Saqueo, filme de Fernando “Pino” Solanas, Argentina, 2004. Pode ser baixado de http://docverdade.blogspot.com/2009/03/memorias-do-saque-memoria-del-saqueo.html [NTs].
Fonte: http://www.thenation.com/article/162809/daylight-robbery-meet-nighttime-robbery?rel=emailNation
Tradução: Coletivo Vila Vudu
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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