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Entrevistas
A face do cinema argentino

Publicado por Maria do Rosário Caetano - Brasil de Fato

Ricardo Darín, o mais famoso dos atores argentinos contemporâneos, chega às locadoras brasileiras com Abutres, sólido drama social dirigido por Pablo Trapero, e aguarda a hora de atuar em novo filme de Walter Salles. “Nunca me empenhei em fazer carreira internacional”, diz ele. “Não sou dos que sonham protagonizar um filme de Woody Allen ou Pedro Almodóvar”. Mas “trabalhar com Walter Salles é projeto que estamos amadurecemos juntos, há um par de anos”.

O astro latino-americano, uma espécie de “Humphrey Bogart portenho”, vem construindo carreira das mais sólidas. Aos 54 anos, soma quase 30 longas-metragens, muitos dos quais alcançaram enorme sucesso na Argentina e Espanha. E até no Brasil, cujo mercado exibidor é arredio a filmes hispano-americanos, ele vem alcançando boa projeção. Filmes protagonizados por ele, como Nove Rainhas, Kamchatka, O Filho da Noiva e O Segredo dos Seus Olhos, Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010, tiveram carreiras signifi cativas em cinemas e locadoras nacionais. O Segredo dos Seus Olhos, dirigido por Juan Jose Campanella, que vendeu mais de 2 milhões de ingressos na Argentina, se aproximou dos 500 mil bilhetes no Brasil. Feito extraordinário, registre-se, para um filme hispano-americano.

Abutres, lançado nos cinemas e locadoras brasileiros pela Paris Filmes, alcançou o que poucos filmes conseguem: motivar (e pautar) o parlamento argentino, em moldes semelhantes ao que antes fi zera o belga Rosetta, dos irmãos Dardenne. Depois de ver o filme e acompanhar a polêmica que ele provocou, o parlamento argentino discutiu mecanismos para coibir e disciplinar a ação dos Abutres. E quem são os caranchos (abutres) no filme? São advogados que atraem vítimas de acidentes automobilísticos nas periferias de Buenos Aires, com intenção de obter altas indenizações. A parte substantiva do dinheiro fica em poder de verdadeira “máfi a”, enquanto parentes dos mortos no trânsito fi cam com parcela ínfi ma.

O filme de Pablo Trapero soma drama social e história de amor. É neste tipo de “híbrido” que Darín gosta de trabalhar. Sem nenhum preconceito contra o melodrama, ele cultiva o prazer de protagonizar narrativas amorosas enriquecidas com ingredientes da vida social ou política de seu país.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Darín fala de Abutres, de sua imagem junto ao público, de sua relação com a TV e da recorrência temática, em filmes latinoamericanos, das ditaduras implantadas em muitos de nossos países nos anos de 1970 e 1980.

 

Brasil de Fato – Você ama o cinema noir e é dono de uma beleza rude. Há quem o veja como uma espécie de “Humphrey Bogart portenho”. Você se identifica com Bogart (1899-1957)?
Ricardo Darín –
Primeiro, é preciso dizer que não sou possuidor de beleza, mesmo que rústica. Com este nariz e esses dentes, sou obrigado a definir-me como um afortunado. Só um ator favorecido pela sorte teria conseguido protagonizar filmes como os que me coube protagonizar. Alguns deles, creiam, são típicas comédias românticas (risos) e conseguiram sensibilizar algumas espectadoras, levando-as a ver beleza em mim. Mesmo que rústica. Será que são meus olhos que me salvam? Não creio. O que me salva é meu senso de humor. Quanto a Bogart, não sei. Ele não abria a boca para falar [um acidente cortou nervo de seu lábio superior]. Falava assim: ... [Darín enuncia algumas frases com os lábios cerrados, sussurrantes, à moda Bogart].

 

Abutres é fruto de seu primeiro trabalho com Trapero, nome dos mais festejados da nova geração argentina. Ele gosta de investigar temas sociais fortes. Agora, são os “abutres” que exploram vítimas do trânsito.
Foi um privilégio receber o convite de Trapero. Aceitei trabalhar com ele porque gostei muito do roteiro. Gosto de filmes que enfrentam temas difíceis e não fogem das fragilidades humanas. Foi bom para mim trabalhar com um tema praticamente desconhecido em nossa cinematografia. Trapero é, realmente, muito interessado por ofícios quase imperceptíveis, por ambientes que não são comuns na maioria de nossos filmes. E ao abordar um tema, ele o pesquisa muito, faz questão de pisar o terreno que ambientará a história, obriga-se a conhecer todos os caminhos e desvios possíveis. Literalmente, ele mete os pés na lama. Não conta suas histórias a partir de seu escritório. Eu me envolvi no processo de trabalho proposto por ele com a mesma gana. Me dispus a segui-lo no que fosse necessário. Abutres ambienta-se na periferia de Buenos Aires. Toda periferia de uma grande metrópole é problemática, tem seus próprios códigos, seus desafios. Como Trapero é um “bonaerense”, ele tocou em Abutres uma música que conhecia.

 

Você poderia explicar o que significa ser um “bonaerense”? Por que Trapero deu este nome a seu filme sobre policiais subalternos de Buenos Aires?
Bonaerense, depois do filme do Trapero, virou quase um sinônimo daquele tipo de policial mostrado em El Bonaerense [que foi veiculado no Brasil como O Outro Lado da Lei]. Mas o sentido geral da palavra designa os habitantes da província de Buenos Aires, os que não são os portenhos (estes são os “capitalinos”, os que habitam a região histórica da cidade de Buenos Aires, desenvolvida em torno do porto). Quando digo que Trapero é bonaerense, digo que ele nasceu e cresceu na grande Buenos Aires, na província. E conhece bem a periferia que ambienta nosso filme. Dito isto, quero lembrar que Abutres é, no fundo, uma grande história de amor, um grande romance. Um romance que se desenvolve em território áspero.

 

Para nós, Abutres revela um mundo novo. Pouco ou nada sabemos destes advogados que exploram familiares humildes de acidentados de trânsito.
Nós também sabíamos pouquíssimo do assunto. Daí o impacto que o filme causou na sociedade argentina. Foi tal a magnitude do impacto, que nossos parlamentares, reunidos no Congresso Nacional, colocaram o tema em debate e estão buscando soluções para estabelecer limites às instituições privadas. Até a estreia de Abutres, estas instituições privadas cuidavam, da forma que lhes convinha, da busca de solução para as indenizações dos acidentados. O contato se dava entre os advogados e os familiares das vítimas dos acidentes automobilísticos, sem nenhuma intermediação. Verdadeiras máfias foram solidificando-se no setor. Alguns profissionais da área de saúde se tornavam cúmplices destes “abutres” e os maiores prejudicados eram sempre os familiares das vítimas. Agora, novas posturas estão sendo debatidas e haverá intermediação do Judiciário e de um fiscal para ajudar a parte fraca no caso.

 

Por que as ditaduras militares foram, e ainda são, tema recorrente na maioria das cinematografias da América Latina?
Porque era necessário falar destes períodos terríveis que nossos países viveram em décadas recentes. Mas, e isto é consenso hoje, o tema parece em fase agônica. Chegaram novos cineastas, integrantes de uma geração que não viveu a ditadura. Se viveu, foi como criança ou adolescente. Então estes realizadores buscam novas narrativas, novas soluções, novos ângulos para arejar o tema. Tive a alegria de atuar num destes filmes que buscaram um novo olhar sobre o período ditatorial argentino: Kamchatka (Marcelo Piñeyro/2002). O realizador mostrou a ditadura pelo olhar das crianças. Ao invés de lamentar um tempo de muitas dificuldades, de sinalizar culpas, ele propôs uma bela refl exão sobre o período.

 

Você vê algo que identifique as cinematografias latinoamericanas? Algo que as particularize?
Este tema é muito complexo. Mas creio que é o humor que nos singulariza. Não me refiro à comicidade, ao histrionismo, mas sim à ironia, ao não nos levarmos muito a sério. Tenho para mim que o triunfo de O Segredo dos Seus Olhos, no Oscar, se deve ao humor. Havia quatro concorrentes muito fortes. A Teta Assustada, do Peru, tinha fotografia e direção de arte maravilhosos, A Fita Branca é um filme de fatura impecável. Todos os concorrentes eram muito sólidos. Mas creio que o detalhe que fez O Segredo de Seus Olhos se destacar no conjunto e ganhar o Oscar foi o humor. O filme se nutre no social, conta uma história de amor ao longo de 25 anos, discute a Justiça. Mas faz isto com a utilização de um tom adequado e contido de humor.

Os norte-americanos estão interessados em fazer um remake de Abutres. O que você acha desta possibilidade?
Creio que há uma crise de ideias no cinema norte-americano. Ou eles têm dinheiro demais e não sabem o que fazer com ele. Você compraria Taxi Driver para refazê-lo? Compraria uma tela de Picasso para refazê-la? Sei que foram interesses comerciais que moveram os que compraram Nove Rainhas e o refilmaram nos EUA. Lamento o resultado. Parece que eles não leram o roteiro original direito. Há erros imperdoáveis na trama recriada. Resta o consolo para quem detém os direitos, pois coloca dinheiro no bolso.

 

Você é hoje o rosto mais conhecido do cinema argentino. E faz enorme sucesso na Espanha...
Há uma razão para meu sucesso na Espanha (risos). Eu fiz uma série de filmes na Argentina, ao longo de cinco ou seis anos. Eles estrearam na Espanha, tempos depois, numa periodicidade semestral. A cada seis meses, um novo filme. Os espanhóis passaram a achar que eu não descansava, só filmava, fi lmava, fi lmava (risos). Que era um louco, que não fazia uma pausa entre um trabalho e outro. Foi assim com Nove Rainhas, O Filho da Noiva, Kamtchaka, Clube da Lua, etc.

 

Participando de tantos filmes, sobra tempo para fazer TV? Como você vê a televisão na Argentina contemporânea?
Trabalhei muito em televisão. Como sou fi lho de profissionais de TV, praticamente nasci em um estúdio. Sinto que não tenho nenhuma dívida com este veículo. Por conhecê-lo por dentro, posso dizer que a TV, hoje, é manejada por empresas. Os profissionais pioneiros, aqueles que conheciam profundamente seu ofício e lutavam por uma TV de qualidade, foram alijados. Na Argentina e em dezenas de países, são empresários, excessivamente preocupados com o lucro que definem a programação. Minha intenção, frente a este quadro, é não regressar à TV. Prefiro manter-me, enquanto for possível, no cinema e no teatro, áreas que me permitem trabalho mais calmo e sereno.

 

Com que diretores internacionais você gostaria de trabalhar?
Hoje, muitos atores de língua espanhola querem trabalhar com Pedro Almodóvar. Eu o respeito muito como cineasta, mas tenho minhas prevenções com ele. Sou “discutidor” e ele também. Tenho projeto, em fase de desenvolvimento, de trabalhar com Walter Salles. Já um amigo que trabalhou com Woody Allen me disse que ele não é amável com os atores, que não os dirige, embora confie muito neles. Allen acredita que 50% do trabalho dele se resolve quando escolhe este ou aquele ator. Se o ator escolhido é bom, e ele escolhe sempre os que considera os melhores, não precisa dirigir. Mesmo assim, me dá certo medo pensar em trabalhar com ele, pois gosto de ser dirigido. Lembro que não sou um ator que fica atrás de grandes nomes. Gosto muito de trabalhar com diretores de operas primas...

 

Você sabe que, em português, opera prima corresponde ao que, vocês, de fala espanhola, chamam de opera maestra? Nós usamos o sentido quantitativo (primeira obra) e vocês o sentido qualificativo (a melhor obra)...
É mesmo? Então, me desculpem se passei impressão errada. Que fi que claro que me refiro aos diretores estreantes, de primeira obra. Quem entender “obra prima” como “obra mestra” pensará que estou insinuando que trabalhei com Bergman, Kurosawa... (risos)


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 NPC - Núcleo Piratininga de Comunicação * Arte: Cris Fernandes * Automação: Micro P@ge