Entrevistas
Antonio Candido: O socialismo é uma doutrina triunfante
Por Joana Tavares - Brasil de Fato
Crítico literário, professor, sociólogo, militante.
Um adjetivo sozinho não consegue definir a importância de Antonio
Candido para o Brasil. Considerado um dos principais intelectuais do
país, ele mantém a postura socialista, a cordialidade, a elegância, o
senso de humor, o otimismo. Antes de começar nossa entrevista, ele diz
que viveu praticamente todo o conturbado século 20. E participou
ativamente dele, escrevendo, debatendo, indo a manifestações, ajudando a
dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma geração de alunos,
militantes sociais, leitores e escritores. Tão
bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de análise
literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo da sua
militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no socialismo
como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do
capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.
Nos seus textos é perceptível a intenção de ser entendido.
Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por que esse esforço de
ser sempre claro? Antonio Candido –
Acho que a clareza é um respeito pelo próximo, um respeito pelo leitor.
Sempre achei, eu e alguns colegas, que, quando se trata de ciências
humanas, apesar de serem chamadas de ciências, são ligadas à nossa
humanidade, de maneira que não deve haver jargão científico. Posso dizer
o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem comum. Já no
estudo das ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer atividade que
não seja estritamente técnica, acho que a clareza é necessária inclusive
para pode divulgar a mensagem, a mensagem deixar de ser um privilégio e
se tornar um bem comum.
O seu método de análise da literatura parte
da cultura para a realidade social e volta para a cultura e para o
texto. Como o senhor explicaria esse método? Uma
coisa que sempre me preocupou muito é que os teóricos da literatura
dizem: é preciso fazer isso, mas não fazem. Tenho muita influência
marxista – não me considero marxista – mas tenho muita influência
marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola
sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas. Parti
do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento sociológico
para ver como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo de uma obra
literária. No começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco
demais minha atividade. Depois entrei em contato com um movimento
literário norte-americano, a nova crítica, conhecido como new criticism.
E aí foi um ovo de colombo: a obra de arte pode depender do que for, da
personalidade do autor, da classe social dele, da situação econômica,
do momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua
própria individualidade.
Então a primeira coisa que é preciso fazer é
estudar a própria obra. Isso ficou na minha cabeça. Mas eu também não
queria abrir mão, dada a minha formação, do social. Importante então é o
seguinte: reconhecer que a obra é autônoma, mas que foi formada por
coisas que vieram de fora dela, por influências da sociedade, da
ideologia do tempo, do autor. Não é dizer: a sociedade é assim, portanto
a obra é assim. O importante é: quais são os elementos da realidade
social que se transformaram em estrutura estética. Me dediquei muito a
isso, tenho um livro chamado “Literatura e sociedade” que analisa isso.
Fiz um esforço grande para respeitar a realidade estética da obra e sua
ligação com a realidade. Há certas obras em que não faz sentido
pesquisar o vínculo social porque ela é pura estrutura verbal. Há outras
em que o social é tão presente – como “O cortiço” [de Aluísio Azevedo] –
que é impossível analisar a obra sem a carga social. Depois de mais
maduro minha conclusão foi muito óbvia: o crítico tem que proceder
conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras que pedem um
método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do vocabulário, a classe
social do autor; uso. Talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam
muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso.
Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.
Teria um tipo de abordagem estética que seria melhor? Não
privilegio. Já privilegiei. Primeiro o social, cheguei a privilegiar
mesmo o político. Quando eu era um jovem crítico eu queria que meus
artigos demonstrassem que era um socialista escrevendo com posição
crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas, por exemplo, em
que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que passei a
priorizar a autonomia da obra, os valores estéticos. Depois vi que
depende da obra. Mas tenho muito interesse pelo estudo das obras que
permitem uma abordagem ao mesmo tempo interna e externa. A minha fórmula
é a seguinte: estou interessado em saber como o externo se transformou
em interno, como aquilo que é carne de vaca vira croquete. O croquete
não é vaca, mas sem a vaca o croquete não existe. Mas o croquete não tem
nada a ver com a vaca, só a carne. Mas o externo se transformou em algo
que é interno. Aí tenho que estudar o croquete, dizer de onde ele veio. O que é mais importante ler na literatura brasileira? Machado de Assis. Ele é um escritor completo.
É o que senhor mais gosta? Não, mas acho que é o que mais se aproveita. E de qual o senhor mais gosta? Gosto
muito do Eça de Queiroz, muitos estrangeiros. De brasileiros, gosto
muito de Graciliano Ramos... Acho que já li “São Bernardo” umas 20
vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano muito, sempre. Mas Machado
de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler com 9 anos livros de
adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis, só o Brasil e, mesmo
assim, nem todo mundo. Mas hoje ele está ficando um autor universal. Ele
tinha a prova do grande escritor. Quando se escreve um livro, ele é
traduzido, e uma crítica fala que a tradução estragou a obra, é porque
não era uma grande obra. Machado de Assis, mesmo mal traduzido, continua
grande. A prova de um bom escritor é que mesmo mal traduzido ele é
grande. Se dizem: “a tradução matou a obra”, então a obra era boa, mas
não era grande. Como levar a grande literatura para quem não está habituado com a leitura? É
perfeitamente possível, sobretudo Machado de Assis. A Maria Vitória
Benevides me contou de uma pesquisa que foi feita na Itália há uns 30
anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já avançada do
capitalismo, decidiram diminuir as horas de trabalho para que os trabalhadores pudessem ter
cursos, se dedicar à cultura. Então perguntaram: cursos de que vocês
querem? Pensaram que iam pedir cursos técnicos, e eles pediram curso de
italiano para poder ler bem os clássicos. “A divina comédia” é um livro
com 100 cantos, cada canto com dezenas de estrofes. Na Itália, não sou
capaz de repetir direito, mas algo como 200 mil pessoas sabem a primeira
parte inteira, 50 mil sabem a segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o
livro inteiro de cor. Quer dizer, o povo tem direito à literatura e
entende a literatura. O doutor Agostinho da Silva, um escritor português
anarquista que ficou muito tempo no Brasil, explicava para os operários
os diálogos de Platão, e eles adoravam. Tem que saber explicar, usar a
linguagem normal.
O senhor acha que o brasileiro gosta de ler? Não
sei. O Brasil pra mim é um mistério. Tem editora para toda parte, tem
livro para todo lado. Vi uma reportagem que dizia que a cidade de Buenos
Aires tem mais livrarias que em todo o Brasil. Lê-se muito pouco no
Brasil. Parece que o povo que lê mais é o finlandês, que lê 30 volumes
por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?
O senhor acha que vai? Não sei. Eu não tenho nem computador... as pessoas me perguntam: qual é o seu... como chama? E-mail? Isso!
Olha, eu parei no telefone e máquina de escrever. Não entendo dessas
coisas... Estou afastado de todas as novidades há cerca de 30 anos. Não
me interesso por literatura atual. Sou um velho caturra. Já doei quase
toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que tem aqui é livro para
visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu dou. Sempre fiz
escola pública, inclusive universidade pública, então é o que posso dar
para devolver um pouco. Tenho impressão que a literatura brasileira está
fraca, mas isso todo velho acha. Meus antigos alunos que me visitam
muito dizem que está fraca no Brasil, na Inglaterra, na França, na
Rússia, nos Estados Unidos... que a literatura está por baixo hoje em
dia. Mas eu não me interesso por novidades. E o que o senhor lê hoje em dia? Eu
releio. História, um pouco de política... mesmo meus livros de
socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo reler alguns mestres
socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os comunistas tinham
ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um defeito, achar
que a gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele partiu da ideia
do filósofo Immanuel Kant da finalidade sem fim. O socialismo é uma
finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse
possível chegar no paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa
luta, você cai no inferno.
O senhor é socialista? Ah,
claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina
totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É
o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial.
É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses
dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote
do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o
socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o
homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e
não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo,
solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso. Esse
pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois
para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais
que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os
trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que
hoje são banais.
Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz
rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo
tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O
capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx
definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o
capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia
Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando
você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália,
não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a
sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem
mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face
humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor,
lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter
férias... tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo
na Rússia.
Por quê? Virou
capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O
socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está
infiltrado em todo lugar.
O socialismo como luta dos trabalhadores? O
socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa da
luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do socialismo.
Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os países que passaram pela
etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do trabalhador que o
socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer que países como
França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de vida melhor para o
trabalhador. Para o senhor é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo? Estou
pensando mais na técnica de esponja. Se daqui a 50 anos no Brasil não
houver diferença maior que dez do maior ao menor salário, se todos
tiverem escola... não importa que seja com a monarquia, pode ser o
regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo que o
socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão
sendo cada vez mais adotadas.
Não tenho cabeça teórica, não sei como
resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a
distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente
fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro.
Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso
conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como
tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens
materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o
socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para
o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que
vai ser... o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por
exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e
ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um
trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o
trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o
banqueiro, está bom, é o socialismo. O que o socialismo conseguiu no mundo de avanços? O
socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os
rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em
Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa
formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o
Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o socialismo
democrático é moderado, é humano. E não há verdade final fora da
moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio. Quando eu
era militante do PT – deixei de ser militante em 2002, quando o Lula foi
eleito – era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda, para
cutucar o centro. É preciso ter esquerda e direita para formar a média.
Estou convencido disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não
foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano. Podem
dizer: a religião faz isso. Mas faz isso para o que são adeptos dela, o
socialismo faz isso para todos. O socialismo funciona como esponja: hoje
o capitalismo está embebido de socialismo. No tempo que meu irmão
Roberto – que era católico de esquerda – começou a trabalhar, eu era
moço, ele era tido como comunista, por dizer que no Brasil tinha
miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou falando em metáforas.
Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem que a miséria é
intolerável.
O socialismo está andando... não com o nome, mas aquilo
que o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não aquela igualdade
que alguns socialistas e os anarquistas pregavam, igualdade absoluta é
impossível. Os homens são muito diferentes, há uma certa justiça em
remunerar mais aquele que serve mais à comunidade. Mas a desigualdade
tem que ser mínima, não máxima. Sou muito otimista. (pausa). O Brasil é
um país pobre, mas há uma certa tendência igualitária no brasileiro –
apesar da escravidão - e isso é bom.
Tive uma sorte muito grande, fui
criado numa cidade pequena, em Minas Gerais, não tinha nem 5 mil
habitantes quando eu morava lá. Numa cidade assim, todo mundo é parente.
Meu bisavô era proprietário de terras, mas a terra foi sendo dividida
entre os filhos... então na minha cidade o barbeiro era meu parente, o
chofer de praça era meu parente, até uma prostituta, que foi uma moça
deflorada expulsa de casa, era minha prima. Então me acostumei a ser
igual a todo mundo. Fui criado com os antigos escravos do meu avô.
Quando eu tinha 10 anos de idade, toda pessoa com mais de 40 anos tinha
sido escrava. Conheci inclusive uma escrava, tia Vitória, que liderou
uma rebelião contra o senhor. Não tenho senso de desigualdade social.
Digo sempre, tenho temperamento conservador. Tenho temperamento
conservador, atitudes liberais e ideias socialistas. Minha grande sorte
foi não ter nascido em família nem importante nem rica, senão ia ser um
reacionário. (risos).
A Teresina, que inspirou um livro com seu nome, o senhor conheceu depois? Conheci
em Poços de Caldas... essa era uma mulher extraordinária, uma
anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho um livrinho sobre ela. Uma
mulher formidável. Mas eu me politizei muito tarde, com 23, 24 anos de
idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser fascista do que não
ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele dizia com razão:
cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político. E o dever da atual geração? Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.
No
seu livro “Os parceiros do Rio Bonito” o senhor diz que é importante
defender a reforma agrária não apenas por motivos econômicos, mas
culturalmente. O que o senhor acha disso hoje? Isso
é uma coisa muito bonita do MST. No movimento das Ligas Camponesas não
havia essa preocupação cultural, era mais econômica. Acho bonito isso
que o MST faz: formar em curso superior quem trabalha na enxada. Essa
preocupação cultural do MST já é um avanço extraordinário no caminho do
socialismo. É preciso cultura. Não é só o livro, é conhecimento,
informação, notícia... Minha tese de doutorado em ciências sociais foi
sobre o camponês pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra,
o parceiro. Em 1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha um
informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que
tinha mais de 90 anos, mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou:
“ô seu Antonio, o imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba
branca, né?”. Eu disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico
Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele está fora da cultura, para ele o
imperador existe. Ele não sabe ler, não sabe escrever, não lê jornal.
A
humanização moderna depende da comunicação em grande parte. No dia em
que o trabalhador tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O problema é
que os meios modernos de comunicação são muito venenosos. A televisão é
uma praga. Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou viúvo e assisto
televisão. Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do capitalismo – por
causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo.
Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um
inculcamento sublimar de dez em dez minutos, na cabeça de todos – na
sua, na minha, do Sílvio Santos, do dono do Bradesco, do pobre diabo que
não tem o que comer – imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem
à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para
concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades
artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga,
miséria...
Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo
descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da
granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos
inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De
repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os
economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o
carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto
artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser
feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford
entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime
que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não
falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa
loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é
feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto
a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar
infinito.
Quem é
Antonio Candido de Mello e Souza nasceu
no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918, concluiu seus estudos
secundários em Poços de Caldas (MG) e ingressou na recém-fundada
Universidade de São Paulo em 1937, no curso de Ciências Sociais. Com os
amigos Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e outros fundou
a revista Clima. Com Gilda de Mello e Souza, colega de revista
e do intenso ambiente de debates sobre a cultura, foi casado por 60
anos. Defendeu sua tese de doutorado, publicada depois como o livro “Os
Parceiros do Rio Bonito”, em 1954. De 1958 a 1960 foi professor de
literatura na Faculdade de Filosofia de Assis. Em 1961, passou a dar
aulas de teoria literária e literatura comparada na USP, onde foi
professor e orientou trabalhos até se aposentar, em 1992. Na década de
1940, militou no Partido Socialista Brasileiro, fazendo oposição à
ditadura Vargas. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido dos
Trabalhadores. Colaborou nos jornais Folha da Manhã e Diário de São Paulo,
resenhando obras literárias. É autor de inúmeros livros, atualmente
reeditados pela editora Ouro sobre Azul, coordenada por sua filha, Ana
Luisa Escorel. Publicado originalmente na edição 435 do Brasil de Fato.
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