Entrevistas
István Mészáros: as contradições dos nossos tempos
Era uma manhã fria de junho quando o filósofo
húngaro István Mészáros, 81 anos, apareceu à porta da casa no bairro de
Sumarezinho, zona oeste de São Paulo, onde se hospeda quando vem ao
Brasil. Desta vez, a viagem tinha como escala, além da capital paulista,
as cidades de Salvador, Fortaleza e Rio de Janeiro. A ideia era
participar de encontros e divulgar o livro István Mészáros e os Desafios do Tempo Histórico (Boitempo, 280 pág., R$ 43), uma coletânea de artigos sobre sua obra – inclusive com um artigo de sua autoria.
Alto, os olhos enormes e azuis, Mészáros não parece, à primeira vista, a
metralhadora giratória que se apresenta logo no início da entrevista,
quando faz um relato de quase 40 minutos sobre a situação políticas na
Europa e nos EUA. “Berlusconi é um palhaço criminoso”; “Obama diz que vê
a luz no fim do túnel, mas não vê que é a luz de um trem que vem em
nossa direção”; “A Alemanha se engana quando pensa que vive um milagre
econômico”; “O partido socialista agiu contra os trabalhadores na
Espanha”; “Os políticos na Inglaterra parecem uma avestruz que insistem
em esconder sua cabeça debaixo da terra”…
Em cada resposta, o professor emérito de Filosofia da Universidade de
Sussex e um dos mais destacados marxistas da atualidade deixa sempre
explícita a necessidade de se entender o processo histórico da formação
da sociedade atual para que se possa compreender, de fato, qualquer
questão dos nossos tempos. Crítico da social-democracia européia, que ao
longo do século assumiu um tom reformista dentro do sistema dominante,
Mészáros, que foi discípulo de György Lukács (de História e Consciência de Classe),
vê com desencanto as opções que hoje se apresentam à esquerda, e também
as manifestações populares que estouraram pelo mundo desde o início do
ano. O motivo é simples: o discurso funciona, mas a realidade é que o
sistema capitalista é cada vez mais inviável, com líderes das nações
buscando mais dívidas para cobrir rombos colossais e a necessidade de se
produzir cada vez mais num momento de esgotamento de recursos. A
chamada crise financeira internacional, portanto, não é cíclica, mas
estrutural, conforme pontua.
Mesmo assim, em duas horas e meia de entrevista, Mészáros deixa escapar
um certo tom de otimismo em relação ao futuro – “que, infelizmente, não
será no meu tempo” – quando fala sobre tomadas de consciência e mudanças
que observa na América Latina.
Por Matheus Pichonelli e Ricardo Carvalho/ Carta Capital
As contradições do capitalismo
“E assim as questões imediatas serão priorizadas em
detrimento dos reais problemas que assolam a sociedade americana, que
nunca serão confrontados. Então por um lado temos a perspectiva de tempo
de 50 anos e, por outro, uma trágica realidade de pressões em termos de
três, quatro, cinco anos”.
As contradições terão de ser enfrentadas por esses movimentos que
emergiram no mundo árabe e na Europa. Terá de ser um movimento das
massas, sem pequenos grupos de intelectuais se reunindo e tomando as
decisões. E sim as massas, que devem estar dispostas a assumir o fardo e
as consequencias de realmente fazer alguma coisa. E, ao mesmo tempo,
elas devem aceitar as responsabilidades das escolhas que forem feitas.
Isso é importante porque, no nosso círculo de decisões políticas
existente hoje, ninguém nunca é responsável. Eu lembro que nos Estados
Unidos houve uma investigação sobre o “Iran–Contra Affair”, a
cumplicidade de algumas figuras políticas do alto escalão
norte-americano com o regime iraniano. Isso foi durante o governo de
Ronald Reagan.
O Congresso chegou a produzir uma resolução em que afirmava que Reagan
havia subvertido a Constituição dos Estados Unidos. Ele subverteu a
Constituição do seu país e deveria assumir total responsabilidade por
isso! Mas o que aconteceu? A resolução tornou-se um punhado de palavras
vazias e Reagan quase foi beatificado como um dos grandes estadistas dos
Estados Unidos. Isso representa a total subversão dos nossos valores.
Porque até mesmo valores sérios do pensamento liberal, como os
defendidos por John Stuart Mill no século XIX, que confrontou de maneira
inadequada, mas confrontou, a contradição do crescimento ininterrupto
da nossa economia, está fora de questão. Ninguém nunca é responsável.
O que acontece nas eleições? Um novo partido continuará a culpar seu
antecessor exaustivamente. Isso acontece hoje na Grã Bretanha, onde
existe uma coalizão entre o partido conservador e o partido liberal. E
eles não fazem mais do que afirmar que tudo o que produzem de negativo é
consequência da administração anterior, do Partido Trabalhista. Isso é
característico de um avestruz que insiste em esconder sua cabeça debaixo
da terra.
Existe uma outra característica que precisamos observar, a dimensão de
tempo. É completamente absurdo o discurso dos políticos quando afirmam
que em 2050 os níveis de carbono estarão reduzidos e nossos problemas
ambientais resolvidos. Nós estamos caminhando exatamente na direção
contrária. Então por um lado temos uma projeção de tempo que engloba os
próximos 30, 40 e 50 anos enquanto nossa cultura defende que encontremos
soluções para os próximos quatro ou cinco anos, porque um ciclo
político não vai muito além desse tempo. Nos Estados Unidos teremos
eleições em breve, quando Obama provavelmente será reeleito. E assim as
questões imediatas serão priorizadas em detrimento dos reais problemas
que assolam a sociedade americana, que nunca serão confrontados. Então
por um lado temos a perspectiva de tempo de 50 anos e, por outro, uma
trágica realidade de pressões em termos de três, quatro, cinco anos.
O sistema capitalista não só foi válido por um tempo considerável como
foi, de longe, mais poderoso e dinâmico do que qualquer outro sistema.
Mas existe um limite para isso e esse sistema está se tornando cada vez
mais destrutivo. E esse é o grande problema que os movimentos políticos e
sociais terão de enfrentar, a separação da política das dimensões
sociais e econômicas. Isso é parte do capitalismo, agrupar essas três
dimensões. Se, no passado, o agrupamento dessas dimensões funcionou e
possibilitou transformações econômicas violentas, além de transformações
políticas, hoje já não surte efeito. E é por isso que quando as
demandas desses movimentos sociais chegam aos parlamentos nada ocorre,
no círculo de decisões políticas já existe uma inércia e as limitações
herdadas do passado.
Pense nisso, o sistema capitalista, no auge da
sua produtividade, é incapaz de satisfazer plenamente as necessidades da
população mundial por comida. É calculado que em 20 anos ou menos o
preço dos alimentos será absurdamente mais caro do que é hoje.
Atualmente ainda existem revoltas promovidas por populações famintas.
Nada poderia atestar mais graficamente a falência desse sistema. No
Norte da África, essas pessoas que se rebelaram recentemente gastam em
média 80% da sua renda apenas para assegurar comida. Com o aumento do
preço dos alimentos, como eles vão ficar? E, com esse aumento, algumas
pessoas, que se dizem especialistas, já começaram a culpar os chineses e
indianos pela alta dos preços. Com o fortalecimento das suas economias,
eles começaram a comer. Que ultraje! Populações inteiras que sempre
trabalharam como escravos, em jornadas de até 14 horas ao dia, começaram
a comer como gostariam? Isso não é um absurdo? E é com desculpas como
essa que nossa sociedade se acomodou para afrontar seus problemas. Eu
insisto, fechando os olhos e varrendo tudo para baixo do carpete.
O grande dinamismo por trás do sistema capitalista ocorreu no momento em
que o valor de troca substituiu o valor de uso. O uso primário de um
produto capitalista é a venda, uma vez que você tenha vendido o seu
produto, ele cumpriu com o seu objetivo. Não importa para onde ele vá,
não importa se ele será utilizado uma, duas ou dez vezes. Isso é
totalmente irrelevante.
O sistema capitalista, que possui essa dinâmica, atingiu o limite de
suas contradições. O principal ponto do capitalismo é ignorar a
necessidade real das pessoas. Prova disso é que ainda hoje as pessoas
sofrem enormemente. Elementos da necessidade humana não podem ser
considerados porque a natureza do nosso sistema é um crescimento sem
limites e sem fim. E nesse sentido o céu é o limite. Não é bem assim.
Dizer isso é enganar-se a si mesmo. Existe um limite para os
seres-humanos e a maneira como nos relacionamos com a natureza. Nossa
existência depende da manutenção de uma relação aceitável com a
natureza.
A crise econômica mundial
“Engana-se quem acha que esse excedente chinês salvará o sistema,
porque são três trilhões de dólares em comparação a 30 trilhões do
restante do mundo. Não significa nada.”
A crise não caiu do céu, ela foi gerada. Quais são as razões dessa
crise? A dívida dos Estados Unidos é hoje algo em torno de 14 trilhões
de dólares. E essa é uma das dimensões que foi varrida para debaixo do
carpete, 14 trilhões da dívida norte-americana varridos para debaixo do
tapete. E ela cresce cada vez mais. Agora eu pergunto, por quanto tempo
isso pode seguir adiante? Nos EUA, no último mês, o desemprego aumentou
depois que trilhões de dólares foram injetados na economia.
O presidente Obama disse certa vez que já podia ver a luz no final do
túnel da crise. Eu concordo com ele, também vejo uma luz. Mas é a luz de
um trem vindo em nossa direção. Na ocasião, ele disse que o déficit dos
EUA seria reduzido pela metade, e eu afirmei que era mais provável que o
déficit dobrasse, exatamente o que aconteceu. Agora o Congresso
norte-americano é incapaz de estender o próprio limite do endividamento
do país. E essa conjuntura é global, está conectada com todos os outros
países. Não é um problema da Espanha, ou dos Estados Unidos, ou de
Portugal. Pegue a Itália como exemplo, onde um palhaço criminoso governa
o país, Silvio Berlusconi.
Eu prefiro chamá-lo de Burlesconi, que é especialista em inventar
soluções artificiais e provisórias para os problemas da economia
italiana. Ele sofreu importantes perdas eleitorais nos pleitos
municipais, mas eu ainda insisto, o que mudará com essas eleições? Muito
pouco. Na Grécia, por exemplo, um governo de centro-direita foi
substituído pelo Partido Social-Democrata. A única coisa que mudou foi a
revelação de uma dívida catastrófica que causou um pedido de resgate de
100 bilhões de dólares para uma economia relativamente pequena. E, para
piorar, eles precisam de um novo resgate. Por quanto tempo isso
continuará a sufocar o sistema?
Os países encontraram um termo muito bonito para se referir a esse
constante endividamento, “endividamento soberano”. Soberano é uma
palavra que parece boa, mas estamos falando de algo em torno de 30
trilhões de dólares, que está aumentando inexoravelmente. Os economistas
dizem que o único país que não enfrenta isso é a China, que está
sentada em um excedente de três trilhões de dólares. Mesmo assim,
engana-se quem acha que esse excedente chinês salvará o sistema, porque
são três trilhões de dólares em comparação a 30 trilhões do restante do
mundo. Não significa nada.
Agora, nenhuma das soluções para a crise virá do liberalismo. Os
próprios limites do capitalismo precisam ser considerados, essa
necessidade intempestiva por crescimento ilimitado. Isso significa
exaurir nossos recursos estratégico-naturais. A própria questão da água,
há muitas regiões no globo que a água não é mais apropriada para a
produção e para o próprio consumo. Mesmo diante da exaustão gradual dos
nossos recursos naturais, um imenso perigo, nós continuamos caminhando
para a mesma direção do crescimento incontrolável. A própria solução
para a crise financeira é crescer e crescer até superá-la.
As possíveis soluções para essa contradição assumem um caráter caricato.
Karl Marx usou uma expressão interessante: “primeiro temos a tragédia,
que depois transformamos numa farsa”. Isso se aplica ao capitalismo
hoje, porque os especialistas dizem que nós vamos resolver os problemas
da nossa relação com a natureza simplesmente reduzindo os níveis de
emissão de carbono. Então é assim que vamos resolver o problema
catastrófico do meio ambiente? Existe um limite para absolutamente tudo.
É uma farsa porque todos os países, embora admitam que existe um grave
problema a ser resolvido, continua a consumir energia
irresponsavelmente. A população dos Estados Unidos representa 4% do
total mundial e consome 20% dos recursos, um absurdo. Essa “solução
fácil” é uma farsa, porque a não ser que a humanidade enfrente esse
problema de maneira contundente – e aceite as consequencias dessa
escolha – nós nos encontraremos em um cenário devastador.
Programas de distribuição de renda e classe média ressentida
“Talvez os críticos não sejam conscientes o suficiente sobre
como a estrutura social é dolorosa para os mais pobres. O sofrimento é
geralmente parte de um sistema imposto. A conscientização leva as
pessoas a se perguntarem como resolver problemas como a fome. É com
repressão?”
Todos esses programas estão ajudando as pessoas que vivem na miséria a
saírem dessa situação. Isso é positivo e necessário, mas, sozinhos, não
vão resolver os problemas. O Brasil não está imune aos problemas
estruturais dos quais falamos. Sempre que programas como esses são
criados, a classe média e alta tende a ficar enciumada e ressentida
porque acham que estão apenas gastando dinheiro com a população mais
pobre. Eu ouvia isso de um jeito muito intenso sobre as reformas
promovidas pelo presidente Hugo Chávez, da Venezuela. “Vejam só como
estamos gastando com isso”, diziam. Mas vejamos por outro lado: houve
uma enchente colossal na Venezuela no ano passado e Chávez mandou os
governadores com salas vazias nos prédios oficiais a abrigar pessoas que
tinham sido afetadas pelos desastres. Isso é temporário, não resolve os
problemas.
Então fizeram um programa para construir 200 mil casas para as pessoas
atingidas. E as pessoas diziam: “É uma injustiça ter que ajudar essas
pessoas”. Mas o oposto também é verdadeiro, porque muitos dos que
reclamavam tinham recebido todo tipo de ajuda e facilidades durante a
crise econômica. Agora, quando pensamos nos trilhões de dólares usados
para salvar os bancos, quem recebeu esse dinheiro? Não foram essas
pessoas que recebem benefícios do governo para sobreviver. Eles talvez
tenham alguns milhares de dólares se acumularem por anos. Mas os bancos,
as corporações, as grandes empresas receberam trilhões.
Quem salvou a General Motors? O governo dos Estados Unidos. Isso com
Bush e com Obama. Colocaram trilhões de dólares em corporações corruptas
e irresponsáveis.
Na Inglaterra, logo depois da Segunda Guerra, o governo trabalhista
promoveu uma grande nacionalização e muitas pessoas viram aquilo como
medidas socialistas. Mas o que eles nacionalizaram?
Todas as áreas falidas da economia. Eletricidade, minas de carvão,
empresas de aço, e tudo mais. Todos os setores da economia capitalista
que, sem essas medidas, não seriam salvas nem funcionariam. E ninguém
fez rejeições. Diziam que eram ações para a garantia da economia.
E agora, recentemente, lemos nas manchetes de jornais as frases
“salvando o sistema”, quando se referiam as medidas anti-crise adotadas.
As pessoas realmente acreditam que não estão dando dinheiro para essas
empresas, mas salvando o sistema. É aí que está o problema. Como você
salva um sistema cavando mais buracos? Para fechar um buraco, você
constrói outro maior e maior.
Tempos atrás, a Venezuela viveu uma rebelião que ficou conhecida como
“Caracazo” (1989). Esse movimento aconteceu quando uma multidão de
pessoas foi até a cidade de Caracas protestar contra as políticas
econômicas do governo anterior. E o governo mandou suas tropas às ruas e
assassinou pelo menos três mil pessoas. Chávez é o resultado das ações
contra esse tipo de governo. O mesmo aconteceu durante a Comuna de
Paris.
Então, sempre que alguém faz algo em benefício da população, como
construir 200 mil casas para desabrigados, é acusado de gastar dinheiro.
Não acho que no Brasil alguém deva levar a sério as críticas aos
programas sociais. Talvez os críticos não estão sendo conscientes o
suficiente sobre como a estrutura social é dolorosa para os mais pobres.
O sofrimento é geralmente parte de um sistema imposto.
A conscientização leva as pessoas a se perguntarem como resolver
problemas como a fome. É com repressão? No “Caracazo” houve uma resposta
militar. Isso hoje mudou. Não estou dizendo que não haja mais violência
no mundo, mas isso hoje é algo inaceitável. No Egito, muitas pessoas
foram reprimidas. Mas chegou uma hora que Mubarak, mandante da
repressão, viu todos se voltarem contra ele, porque para fazer aquelas
pessoas voltarem para casa seria necessário mandar matar todo mundo.
Ao mesmo tempo, ainda existem forças militares que defendem as políticas
de ocupação de partes do mundo. E existem até teóricos militares nos
Estados Unidos que dizem que não é mais possível para as tropas
americanas saírem do Iraque nem do Afeganistão, onde a guerra dura quase
dez anos.
A solução seria fazer com que os 40 mil combatentes fiquem por lá.
Outros recomendam o uso de armas nucleares no Irã. Olha o grau da
irracionalidade! Enquanto isso, os Estados Unidos têm uma dívida
colossal. E estão cobrindo esses déficits tomando mais dinheiro
emprestado. Outra dimensão do problema é que todo cidadão americano está
endividado. Uma hora ou outra vai acontecer com os Estados Unidos o que
acontece na Espanha, na Irlanda, em Portugal, na Grécia.
A Espanha está virtualmente falida, a Itália também. A Inglaterra
também. E o que eles estão tentando fazer é justificar os altos a custos
que estão submetendo as pessoas, cortando serviços de saúde e educação.
Por trás de tudo isso estão as pressões históricas de um sistema
anacrônico.
As pessoas ainda criticam os gastos com as pessoas que mais precisam.
Depois da Segunda Guerra, surgiu a ideia do Estado de Bem Estar Social,
que agora está sendo destruída. A ideia era que os ricos pagassem mais
tributos, e a renda fosse distribuída. Agora, o que está acontecendo é o
contrário. Nas regiões ricas, o que vemos é a isenção de taxas.
No Brasil a elevação do salário mínimo, por exemplo, foi uma iniciativa
importante. Mas é um pequeno passo. Isso não vai mudar as estruturas
econômicas que o Brasil terá que enfrentar, como qualquer país do mundo.
A onda conservadora europeia
“O que são esses partidos da social-democracia hoje na Europa? São
herdeiros de anos de reformas que os trouxeram cada vez mais para a
direita. O que aconteceu com as legendas mais radicais, como o Partido
Comunista Italiano, de Gramsci? Suas propostas fundamentais foram
completamente diluídas”.
Essa é a questão central. Todas as nossas instituições políticas atuais
são frutos de um processo histórico. E o horizonte das soluções que
podemos adotar por meio dessas instituições está condicionada a esse
processo histórico. Os parlamentos dos países que tentam enfrentar essas
questões também têm atuação limitada. As pessoas pensam que podem virar
as costas para a história. Isso não é possível. Para qualquer
compreensão da realidade, é preciso ter uma perspectiva histórica. O que
são esses partidos da social-democracia hoje na Europa? São herdeiros
de anos de reformas que os trouxeram cada vez mais para a direita.
O que aconteceu com as legendas mais radicais, como o Partido Comunista
Italiano, de Gramsci? Suas propostas fundamentais foram completamente
diluídas e o PCI se fragmentou. Os verdadeiros partidos de esquerda hoje
na Europa são muito pequenos, sem representação. Outro exemplo: na
Alemanha, antes da Primeira Guerra Mundial, a esquerda defendia que
chegaríamos ao socialismo por meio de pequenos avanços sociais, sem
realizar grandes mudanças estruturais. Mas, durante a Guerra, os
social-democratas aliaram-se entusiasticamente ao governo imperial.
O que veio depois não foi um lindo governo a promover pequenos avanços
rumo ao socialismo, mas sim o surgimento de Hitler e um cenário muito
mais catastrófico. As propostas dessas legendas de esquerda foram
diluídas historicamente. O próprio partido dito socialista espanhol foi o
responsável por adotar, diante da crise de 2008, medidas que puniram os
trabalhadores.
As revoltas do mundo árabe
“Autoridades inglesas declararam que a saída do ditador do
Iêmen seria muito perigosa porque poderia significar o controle do país
pela Al Qaeda e, portanto, um risco à segurança na Inglaterra. Dá para
imaginar isso?”.
Esses movimentos estão surgindo lentamente. As pessoas estão começando a
ficar extremamente desencantadas com a realidade da situação. No mundo
Árabe, as revoltas aconteceram porque a situação simplesmente explodiu.
Em alguns casos, os ditadores foram depostos, mas quem atuava por trás
deles? Nós falamos de democracia na imprensa ocidental, mas aqueles
ditadores eram fantoches que atuavam na lógica norte-americana de
governar o mundo. Por isso que eu digo que essa realidade é uma
contradição imensa. No Iêmen, também há um ditador assassinando o seu
povo, mas os Estados Unidos não quiseram dizer algumas palavras sobre
democracia, eles não disseram que esse ditador deveria deixar o país e
seu povo em paz. Simultaneamente, autoridades inglesas declararam que a
saída do ditador do Iêmen seria muito perigosa porque poderia significar
o controle do país pela Al Qaeda e, portanto, um risco à segurança na
Inglaterra. Dá para imaginar isso? A Al Qaeda no Iêmen sendo um perigo
para a segurança inglesa? É um absurdo e os políticos se atrevem a
dizê-lo em público, mesmo que não acreditem sinceramente numa palavra.
Na Arábia Saudita, existe um regime brutal, praticamente feudal. Mas
tudo bem, porque ela é uma aliada fiel das nossas democracias e
liberdades. Esse tipo de contradição não pode seguir adiante.
E essas contradições causam a emergência de iniciativas diretas
lideradas por pessoas sem ligações com partidos políticos. E isso é um
dos sinais mais esperançosos. Há pouco tempo as reuniões políticas
estavam repletas de pessoas mais velhas, e agora esses encontros estão
repletos de pessoas mais novas.
As manifestações pela Europa
“Nós criamos o hábito de varrer nossos problemas para debaixo
do carpete. Só que o nosso carpete histórico se parece cada vez mais a
uma montanha, está cada vez mais difícil de caminhar sobre ele. Não há
solução imediata” .
Em uma economia capitalista mais estruturada, como a Inglaterra, onde
por anos a juventude foi extremamente alienada, houve uma verdadeira
rebelião contra o apoio do Partido Liberal ao aumento das taxas para a
educação superior. Os liberais opunham-se a esse aumento durante a
campanha e a juventude inglesa realizou protestos massivos nas ruas e
certamente os punirá nas futuras votações. E então vemos tanto o lado
positivo quanto o negativo das nossas estruturas institucionais. O lado
bom é que as pessoas revoltadas com a traição de um partido se
manifestam e pressionam os partidos. Porém, o que mais podem fazer?
Esperar anos pelo próximo pleito e colocar um pequeno pedaço de papel
numa urna de votação. E o que um partido diferente pode trazer de novo?
Muito pouco, quase nada. Uma vez eu citei a frase do escritor
norte-americano Gore Vidal, sobre a situação política nos EUA. Ele
afirmou que no seu país havia apenas um partido político com duas alas
direitistas. Bem, na Inglaterra, na Itália e na Alemanha ocorre a mesma
coisa. Não importa para onde você olhe as opções são limitadas porque a
margem para a ação política é muito estreita.
Eu não esperaria grandes mudanças imediatas nas manifestações na Europa.
Os problemas do nosso sistema capitalista são tão grandes que levará um
grande tempo para que qualquer movimento surta efeito. Mas eu acredito
que veremos ainda algumas mudanças fundamentais. Não significa que
acontecerá nos próximos dois ou três anos, porque nós criamos o hábito
de varrer nossos problemas para debaixo do carpete.
Só que o nosso carpete histórico se parece cada vez mais a uma montanha,
está cada vez mais difícil de caminhar sobre ele. Isso ocorreu porque,
diante de um problema, temos essa necessidade de encontrar uma solução a
curto prazo, para um período de dois ou três anos. Basta se lembrar de
quantos milagres econômicos ouvimos falar. Eu me lembro o milagre
alemão, o milagre japonês e até o milagre brasileiro. Todos evaporaram,
porque milagres não resolvem os problemas da nossa sociedade.
Nossa sociedade deverá se confrontar com problemas estruturais e
fundamentais, será uma grande mudança de uma ordem social para a outra.
Tente projetar isso para o passado. Do sistema feudal para o sistema
capitalista essa transformação levou séculos. Séculos de grandes crises.
Imaginar que mudar de uma ordem social que foi dominante por três ou
quatro séculos para outro pode levar apenas algumas décadas é
ingenuidade.
América Latina, terra de esperança
“Eu também tenho ressalvas à expressão “capitalismo avançado”. Os países
capitalistas avançados são os mais destrutivos. Você chamaria isso de
avançado? Não é avançado e em muitos aspectos nos traz de volta à
condição da barbárie”.
Quando você pensa na totalidade da América Latina, é impossível negar
que houve tremendos avanços políticos. Houve mudanças significativas
também em outros aspectos. A primeira vez que eu vim ao Brasil foi em
1983. Após uma conferência em João Pessoa, eu dava uma entrevista numa
rádio local quando vi pela janela uma grande aglomeração de pessoas.
Durante a pausa para os comerciais, fiquei sabendo que a razão daquela
movimentação toda era que em algum lugar perto de João Pessoa havia
protestos de pessoas famintas, que não tinham o que comer.
O programa de Lula de combate à fome foi uma resposta a situações como a
que eu vi. Hoje, pelo o que sei, não existem mais protestos por comida
no Brasil. O aumento do salário mínimo também foi uma contribuição
importante. E mudanças também ocorreram na Venezuela, Bolívia, Paraguai e
Argentina. A Argentina, por exemplo, deveria ser um daqueles milagres
econômicos. Mas o milagre argentino terminou na total falência do País.
Eles chegaram até a dolarizar sua economia, abandonaram sua moeda e
foram sufocados por isso. Os protestos populares levaram à mudanças
significativas na Argentina. Então, a América Latina é um continente
onde várias experiências interessantes ocorreram e ainda estão em curso.
Agora, eu não afirmo com isso que a América Latina, assim como o
restante do mundo, poderá se isentar de enfrentar esses problemas
estruturais que eu já mencionei. E esse é o grande desafio para o
futuro. A dimensão muito positiva é que na América Latina existem
movimentos extremamente importantes como o campesinos e o Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST). São movimentos sociais que não tem a
perspectiva de implorar por favores políticos, mas que tomam a
iniciativa e tentam controlar as coisas por si mesmo. Uma das
características mais importantes desses movimentos é que eles tentem
controlar a situação.
Na América Latina, as soluções também precisam levar em conta um esforço
para remediar nossa relação com a natureza. Em um futuro próximo, por
exemplo, nós teremos de considerar como colocar energia nos nossos
carros. Se você produz carros, eles precisam de energia de alguma
maneira. Ao mesmo tempo, nós multiplicamos cada vez mais o número de
carros porque a produção não pode parar. Mas, o que precisamos fazer é
perceber que a real necessidade das pessoas é o transporte, não os
carros. Nós precisamos pensar em meios de transportes adequados, não
carros individuais que agridem a natureza.
Eu a considero a América Latina, de longe, o continente mais esperançoso
do mundo. Aqui, coisas interessantes vêm acontecendo desde os anos 70. A
primeira reação aos movimentos que eclodiam, naquela época, foram as
ditaduras. Ao menor sinal de problema, os norte-americanos encontravam
um ditador. Eles enviavam os fuzileiros ou achavam algum general que
pudesse fazer o trabalho por eles. Hoje os Estados Unidos não podem mais
fazer isso, essa fase histórica passou, mas ainda carrega consequencias
e repercussões.
Eu acredito que as reais transformações estruturais, que levaram séculos
para acontecer do feudalismo para o capitalismo, não demorarão tanto
para ocorrer. Por quê? Porque nós não temos séculos. Nosso tempo está se
esgotando. E essas mudanças não podem ser pensadas como algo isolado ao
“mundo subdesenvolvido”. Nós vivemos em um único mundo. Existem alguns
conceitos mistificadores como “terceiro mundo”. Eu sempre rejeitei essa
expressão. O que é o terceiro mundo? Eu apenas conheço um. Não é o
“terceiro mundo”, mas uma parte integrada do mundo na qual os países são
explorados. E a América Latina é o continente mais esperançoso onde as
mudanças serão iniciadas, mas não poderão ser concluídas.
Globalização é um conceito utilizado apologeticamente. A realidade da
globalização é que existe, na verdade, uma tendência para a integração
econômica. Mas, politicamente, nada é resolvido. E hoje ainda prevalece a
lógica de confrontar problemas políticos por meio da guerra, violência e
destruição. É o que fazem os Estados Unidos. Isso é um grande absurdo
porque nada na história da humanidade foi resolvido pela guerra.
Eu também tenho ressalvas à expressão “capitalismo avançado”. Os países
capitalistas avançados são os mais destrutivos. Você chamaria isso de
avançado? Não é avançado e em muitos aspectos nos traz de volta à
condição da barbárie. Rosa Luxemburgo uma vez disse “socialismo ou
barbárie”. Eu acrescentaria algo à frase de Rosa Luxemburgo: “barbárie,
se tivermos sorte”. Porque a destruição total da humanidade é o que está
em nosso horizonte. A tendência é sempre resolver os problemas com
guerras e destruições. Na Primeira Guerra, os aliados saíram vitoriosos.
Mas o que eles resolveram? Eles criaram Hitler. Por isso eu digo que as
decisões estão sendo tomadas às costas das pessoas. Elas nunca
antecipam as coisas. Elas nunca imaginam que depois da vitória vem a
destruição.
Em 1871, na Comuna de Paris, o que aconteceu foi uma brutal destruição.
Bismark, o chanceler alemão, que venceu as tropas francesas anos antes,
quando viu as comunas tomando o poder em Paris, ordenou a libertação dos
prisioneiros de guerra franceses para destruir a organização. O que
aconteceu depois? Três impérios fizeram um pacto para lutar juntos
contra esses tipos de distúrbios feitos pela população, caso acontecesse
de novo. Isso não é mais possível. Um dos maiores estrategistas de
guerra de todos os tempos, general Klausevits, disse uma vez: “a guerra é
a continuação da política, só que por outros meios”. Hoje isso é
inconcebível. Uma nova guerra mundial acabaria com a humanidade. Essa é a
diferença histórica fundamental.
A América Latina é hoje uma das regiões onde se tem mais esperanças,
porque as pessoas estão tomando o controle das decisões, assumindo
responsabilidades, depois de terem eliminado ditadores.
E como vamos fazer essa transformação? Transformando as pessoas. A
exploração da esmagadora maioria das pessoas por poucos não é mais
aceito como era antes. No socialismo você não pode fazer isso. Você não
aceita uma minoria que controla a política e a economia tomando todas as
decisões. Seria um absurdo. Por isso temos que criar uma sociedade da
igualdade substancial. A produção de mercadorias e o mercado devem ser
as bases dessa equalização. Precisamos ir em direção a um sistema de
igualdade substancial, com reorientação, com participação nos processos
de decisão, com nossas decisões sobre o que queremos fazer para tornar
nossas realizações mais justas, mais igualitárias. Ninguém precisa
decidir isso por você.
Em “The Critique of The Gotha Program”, Marx fez a definição do que
seriam os estágios inicial e final do socialismo. No primeiro, a
distribuição seria feita a cada um de acordo com a sua contribuição para
o total do produto social. Na fase avançada, seria de acordo com a sua
capacidade ou necessidade. Agora, quem determina o que a gente precisa?
Apenas uma pessoa, você mesmo. Hoje, 1% ou 2% da população controla de
40% a 60% dos recursos e riquezas da sociedade. Para mudar isso, será
preciso uma cooperação das pessoas pelo mundo. Para produzir e
distribuir conforme as necessidades, será preciso criar empresas
cooperativas. Isso vai ser a base da sociedade do futuro. E não podemos
ter certeza de que essas transformações vão ser feitas apenas dentro da
lei. Não estamos enfrentando apenas leis humanas, mas as leis da
natureza. A natureza está nos impondo seus limites. Por isso precisamos
nos adaptar ao melhor uso dos recursos. Isso vai acontecer em pouco
tempo – mas não no meu tempo, infelizmente. As pessoas estão começando a
confrontar essa realidade, sobretudo na América Latina.
Núcleo
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