Cidades
A invenção das “ex-favelas”
Publicado em 09.06.11 - Por Thiago Ansel, do Observatório de Favelas
Na última semana de maio, o Rio de Janeiro passou a ter menos 44 favelas. Esta parece ter sido a última de uma série de subtrações no número de favelas da cidade - que cai vertiginosamente desde agosto passado, de acordo com as contas oficiais. Para se ter idéia do tamanho da queda, em todo o município, a quantidade de favelas despencou de 1.020 para 582, em apenas dez meses. Os dados são do Instituto Pereira Passos (IPP).
Apesar da diferença na contagem e mesmo diante da recente febre de remoções de comunidades populares por conta dos megaeventos esportivos de 2014 e 2016, as 438 favelas a menos não sumiram da noite para o dia. Tudo indica que parte delas tenha apenas deixado de fazer parte dos cálculos oficiais, pelo menos, daqueles que se referem à categoria favela.
Os últimos 44 locais que deixaram de ser assim classificados, passaram a ser oficialmente chamados de “comunidades urbanizadas”. A mudança foi feita a partir de dados fornecidos pelo IPP e a Secretaria Municipal de Habitação (SMH). O critério básico adotado para a troca no nome foi a quantidade de serviços urbanos disponíveis nestes locais - que seria similar àquela fornecida em outros bairros da cidade, segundo o IPP e a SMH. A nova classificação rendeu diversas manchetes nas editorias de cidade dos grandes jornais cariocas, que trataram de batizar as mais novas 44 “comunidades urbanizadas” de “ex-favelas”. Nas redes sociais, o termo “ex-favelado” - derivado da polêmica - pegou e foi motivo de piadas.
Morador do conjunto de favelas da Maré há 16 anos, o fotógrafo Francisco Valdean, foi um dos que protestou com humor contra a nova classificação oficial. Valdean lançou em seu blog O Cotidiano, uma série de posts que chamou de “O diário de um ex-favelado”. Nela o morador e convidados narram, dia após dia, o que não mudou em algumas das agora “ex-favelas”. Para Valdean a nova classificação oficial, além de não ter razão de ser, não apresenta impactos práticos na vida dos moradores. “Favela é uma categoria cheia de estigmas. Então, alguns pensam que ao mudar o nome, também haverá a atribuição de valores positivos ao lugar. Mas não é simplesmente mudando a categoria que se vai mudar a realidade”, diz.
A Baixa do Sapateiro, onde mora Valdean, foi uma das cinco comunidades da Maré, escolhidas para deixarem de ser favelas. O morador afirma não compreender o critério utilizado para declarar o local uma “comunidade urbanizada”. “Aqui, pelo que eu conheço, as comunidades incluídas nessa nova definição não são necessariamente aquelas que têm mais serviços. Vila do João e Vila dos Pinheiros, que também são da Maré, têm as mesmas condições que as demais comunidades daqui e, nem por isso, foram definidas como ex-favelas”, questiona o “ex-favelado”.
Ex-favelas e megaeventos Para o historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcos Alvito, um decreto não pode apagar a história. O estudioso atribui a nova classificação a uma estratégia empreendida pelo poder público para apresentar uma cidade compatível com expectativas internacionais, que só fazem aumentar com a proximidade dos megaeventos. “A palavra favela representa as lutas de seus moradores. Lutas pela permanência nos locais, por melhores condições de vida. Estamos diante de uma vontade de positivar a cidade para o mundo com a chegada da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Um processo utilizado também como pretexto para remoção de comunidades, favorecendo a especulação imobiliária e algumas das grandes empresas envolvidas”, analisa.
Para a estudante de Jornalismo Gizele Martins, moradora da Maré, a mudança de “favela” para “comunidade urbanizada” também tem relação com a chegada dos megaeventos esportivos. “O motivo da troca de nome tem a ver com interesses do Estado em mostrar que o Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa - esta que vai ser sede das Olimpíadas, da Copa do Mundo - está tranqüila, que não tem problemas estruturais e políticos. Tudo isto é para tranqüilizar quem vem de fora, mostrar que todos os recursos que o Estado tem recebido para investir na cidade estão sendo bem gastos”, afirma.
Gizele diz ainda não compreender o critério adotado para justificar a nova classificação, já que a quantidade de serviços não influi necessariamente na qualidade. “Quero pagar luz sim, quero pagar impostos sim, mas preciso primeiro ter direito a uma iluminação de qualidade, ter segurança de qualidade, hospitais, mais escolas para atender a todos os moradores. Quero ter habitação de qualidade aqui. E não é mudando apenas o nome que passo a me sentir cidadã. Quero todos os outros direitos”, reivindica a estudante.
Oficialmente, o que é favela? A pergunta foi feita para o próprio IPP, realizador da recontagem que deu origem às novas 44 “comunidades urbanizadas”. A assessoria de comunicação do instituto informou que, na verdade, o estudo com a nova classificação não foi divulgado para o grande público e que as informações dadas pela grande imprensa foram obtidas a partir de entrevistas com representantes do órgão. Ainda de acordo com a assessoria, a divulgação oficial da nova configuração das favelas será feita após a atualização do Sistema de Assentamentos de Baixa Renda, o SABREN, [http://portalgeo.rio.rj.gov.br/sabren/index.htm], que deve ocorrer nas próximas semanas.
No ano passado, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) publicou a pesquisa “Desigualdade e Favelas Cariocas: a cidade partida está se integrando?”. O estudo, que recebe a chancela do IPP, oferece uma delimitação do que é favela, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e do Censo Demográfico. Foram analisadas as situações de renda, trabalho e condições gerais de vida em locais como o Complexo do Alemão, Jacarezinho, Rocinha, Cidade de Deus e Maré. O coordenador da pesquisa, o economista do Centro de Políticas Sociais da FGV, Marcelo Cortes Neri, afirma que a grande diferença entre favela e asfalto, é a presença do Estado, na educação, saúde, além de outros aspectos marcantes como a desigualdade na transferência de renda.
Neri, entretanto, faz um alerta quanto a insuficiência do conceito utilizado para definir as favelas. “Os conceitos são problemáticos, por isso não temos um ‘retrato’ colorido e em alta definição desta realidade. O máximo que temos é uma ‘foto em preto e branco’. Mas, existe algo mais preciso que isso? Na pesquisa, usei o conceito de aglomerado subnormal que, evidentemente, é problemático. Os trabalhos sobre favela costumam estar centrados em questões específicas e em dados que já estão defasados, como aqueles do Senso 2000. Estas pesquisas fazem o contraste entre asfalto e favela”, explica o economista.
Neri também chama atenção para como o instrumento oficial de identificação dos espaços da cidade pode influir diretamente na quantidade favelas existentes numa determinada região. “Em São Gonçalo, por exemplo, quase não há favelas, de acordo com as classificações oficiais. Isso não quer dizer necessariamente que lá haja poucas favelas, mas pode indicar que no município do Rio o instrumento utilizado encontra muito mais favelas do que em São Gonçalo”, esclarece.
Desta vez o critério oficial utilizado pelo IPP para dizer o que é ou não favela também passa pela presença dos serviços públicos e pelo grau de urbanização em cada local. De acordo com Francisco Valdean, esse critério não se sustenta quando confrontado com a realidade das comunidades. “Segundo o critério atual, quase todas as favelas deixariam de ser favelas. Na minha rua o esgoto entope e quem desentope são os moradores. Então, serviço de esgoto tem, mas não é o ideal. Se considerássemos situações como essa para avaliar o que é favela, muitas delas poderiam deixar de existir de uma cajadada só, já que várias contam com serviços públicos”, diz o morador da Baixa.
Na opinião do historiador Marcos Alvito, este critério pouco tem a acrescentar. “Por mais que o Estado implemente serviços na favela, ela continuará a ser diferente. Melhor do que tentar tapar o sol com a peneira, seria positivar o termo favela, mostrando a história de luta de seus moradores, que é uma história de superação. Daqui há 100 ou 200 anos eu acharia interessante que estes espaços continuassem a ser chamados de favelas. O nome carrega uma história”, sugere.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
—
Voltar —
Topo
—
Imprimir
|