Entrevistas
É urgente que o poder sobre os meios de comunicação seja democratizado, diz a jornalista Ana Veloso
Por Bia Barbosa - Agência Patrícia Galvão
Ultrapassada
e pouco democrática, a legislação que hoje rege o setor das
comunicações tem se mostrado um entrave não apenas para o
desenvolvimento da própria mídia no país como também um obstáculo
considerável para a consolidação da democracia brasileira. Em 2009, mais
de 30 mil pessoas participaram da 1ª Conferência Nacional de Comunicação
(Confecom), que teve entre suas principais resoluções a necessidade da
construção de um novo marco regulatório para o país. A tarefa está a
cargo do Ministério das Comunicações, comandado por Paulo Bernardo, que
no início de seu mandato afirmou que esta seria uma de suas prioridades.
Ao
final do governo Lula, um anteprojeto de lei, coordenado pelo então
ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República,
Franklin Martins, foi encaminhado à equipe da presidenta eleita Dilma
Rousseff. Até agora o texto não foi tornado público. Organizações da
sociedade civil e movimentos sociais têm cobrado do governo a abertura
do debate com a população.
Na
última semana, no seminário "Marco Regulatório: propostas para uma
comunicação democrática", organizado pelo Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação (FNDC) no Rio de Janeiro, dezenas de
entidades afirmaram que esta deve ser a principal tarefa posta para o
Ministério das Comunicações, juntamente com políticas que garantam a
universalização do acesso à banda larga. "Este novo marco regulatório
deve abranger todo o setor de comunicações, dando conta do processo de
convergência e estabelecendo regras que afirmem a liberdade de expressão
e o direito à comunicação de toda a população, buscando garantir a
pluralidade e a diversidade informativa e cultural", disseram em nota.
Nesta
entrevista, a jornalista Ana Veloso, professora da Universidade
Católica de Pernambuco, colaboradora do Centro das Mulheres do Cabo (PE)
e representante da sociedade civil no Conselho Curador da EBC (Empresa
Brasil de Comunicação), levanta os principais pontos que um novo marco
regulatório deveria tratar. E fala da importância desta pauta para a
conquista dos direitos das mulheres.
Por Bia Barbosa
1
- Desde a I Conferência Nacional de Comunicação, cresceu na sociedade
brasileira a demanda por um novo marco regulatório nas comunicações. Por
que, na sua avalição, esta pauta se mostra urgente?
Ana Veloso - A
pauta é urgente, uma vez que a sociedade brasileira espera que o poder
sobre os meios de comunicação possa ser compartilhado, democratizado. É
urgente para que outras vozes possam circular nos meios de comunicação
no país. A sociedade brasileira demonstrou, na I Confecom, que quer
participar do processo. É absolutamente contraditória, em um país que
quer ser democrático, a permanência de poucas famílias no controle da
produção e distribuição de conteúdos na mídia privada. Está ficando cada
vez mais insustentável, politicamente e socialmente, que poucos
senhores continuem ditando as regras do que pode ou não ser pautado na
esfera pública do rádio e da televisão. Poderíamos começar
regulamentando os artigos que tratam da comunicação na Constituição de
1988. É escandalosa a relação entre muitos parlamentares e as concessões
de rádio e televisão no Brasil. A regulação dos meios de comunicação no
Brasil poderá, inclusive, evitar que alguns programas e veículos,
imersos em uma situação de quase absoluta falta de regras, utilizem o
argumento do exercício da liberdade de expressão para violar os direitos
humanos das mulheres.
2 - Que pontos centrais precisariam ser mudados no novo marco?
Ana Veloso - Considero que o novo marco deve ser incisivo com relação a algumas questões: 1)
Programas/veículos/emissoras que violem direitos humanos devem ser
imediatamente retirados do ar e as emissoras precisam sofrer
penalidades, como aconteceu com as violações praticadas pelo programa Tarde Quente (RedeTV!), do apresentador João Kleber, que resultou no caso "Direitos de Resposta"; 2)
As regras para as concessões não devem privilegiar os critérios
econômicos, como estudos comprovam. A definição dos critérios para
obtenção de uma outorga deve ser feita em grupos de trabalho, com
representantes escolhidos/eleitos/indicados pela sociedade, veículos e
Estado, refletindo a diversidade da sociedade brasileira; 3) Toda
renovação das concessões deve passar por uma análise de como aquela
emissora prestou o serviço de radiodifusão naquele período; esta análise
deve ser feita pelo Estado e ouvir também representantes
escolhidos/eleitos/indicados pela sociedade brasileira; 4) Regulamentar o direito de resposta, que foi desregulado com a queda da Lei de Imprensa; 5)
A questão da publicidade também é um ponto central: a legislação afirma
que só podemos ter 25% do tempo da grade de programação ocupado por
propaganda, mas estudos comprovam que o percentual veiculado é bem
maior; 6) Outra questão que tem que ser enfrentada é a sublocação da
grade de programação para veiculação de programas religiosos, um dos
problemas mais graves da ausência de uma regulação consistente no setor;
7) O papel dos órgãos fiscalizadores deve ser revisto, uma vez que a
Anatel, por exemplo, demonstra alto rigor com as rádios comunitárias
enquanto as emissoras comerciais desrespeitam impunemente a legislação; 8)
O marco legal deve indicar ainda formas de financiamento para as mídias
comunitárias, educativas e públicas, como fundos públicos constituídos
com percentuais dos altos lucros e/ou impostos que as empresas privadas
deveriam recolher; 9) Por fim, é preciso regulamentar o Artigo 221
da Constituição e garantir a veiculação de produção independente e
regional na TV, com a implementação do percentual de 40% de programação
regional nas emissoras, como propõe o projeto da deputada Jandira
Feghali (PCdoB-RJ), há cerca de 20 anos em tramitação no Congresso
Nacional.
3 - Como conselheira da EBC, você acredita
que as emissoras públicas de rádio e televisão também precisam de uma
nova regulamentação para se fortalecerem?
Ana Veloso - Considero
que sim. Não sei se haveria possibilidade de uma uniformização na
legislação, uma vez que as emissoras estaduais têm ordenamento próprio.
Todavia, é preciso uma revisão no marco das emissoras públicas para que a
sociedade possa participar muito mais da definição de sua programação e
de suas decisões em geral, como acontece agora com o Conselho Curador
da EBC. A revisão do marco regulatório no setor público também poderá
dotar essas emissoras de maior autonomia político-financeira em relação
aos governos. Além disso, poderia indicar mais alternativas de
financiamento público para as mesmas, e regras explícitas para que sua
sustentabilidade não estivesse sob constante ameaça.
4 - Como um novo marco regulatório das comunicações poderia contribuir para o avanço da luta das mulheres?
Ana Veloso - No
Brasil, assim como em outros países, as mulheres ainda são tratadas
prioritariamente de duas formas pela mídia: ou como consumidoras, ou
como objeto sexual. Precisamos ter elementos palpáveis e instrumentos
legais para enfrentar questões como a mercantilização de nossos corpos e
a reprodução de estereótipos, que nos colocam em situação de submissão e
desvantagem, veiculados diariamente nos meios de comunicação de massa. A
regulação poderá oferecer, para o movimento de mulheres, as ferramentas
necessárias ao exercício da análise e da crítica da mídia com a efetiva
ação no sentido de garantir que os meios de comunicação não permaneçam
reeditando preconceitos e o sexismo. Também poderá ser importante para a
limitação do acesso/sublocação do espaço pelas correntes religiosas
que, com seu proselitismo, acabam por atentar contra os direitos
conquistados pela população feminina e por favorecer a perpetuação dos
fundamentalismos. Por fim, as mulheres também necessitam de incentivos
para atuar, ainda mais, no campo da produção de conteúdos, de forma que
também estejam representadas na mídia em toda a sua diversidade.
5
- Apesar de ser estratégica, regular as comunicações é uma agenda que
ainda encontra resistência na maior parte da sociedade, sobretudo nos
proprietários dos meios de comunicação. Como superar este obstáculo?
Ana Veloso - Realmente,
esta não é uma discussão fácil. É preciso que o Estado brasileiro tenha
capacidade de dialogar e de implementar para os concessionários de
rádio e TV regras discutidas e aprovadas junto com a sociedade,
incluindo o setor empresarial. As propostas aprovadas pela I Confecom
devem, inclusive, nortear este processo de regulação dos meios.
Trata-se, também, de um investimento, que precisa ser feito, em uma ação
educativa junto à população com relação ao problema gigante que
precisamos enfrentar no campo da comunicação brasileira. Temos um
histórico de privatização de bens públicos. A sociedade desconhece que
tem direito à comunicação. Só agora ensaiamos a construção de um sistema
público de mídia. Portanto, foram muitos anos de favorecimento a uma
elite branca, masculina e heterossexual que comanda hoje este setor.
Contudo, principalmente nos últimos dez anos, percebemos que a sociedade
está cada vez mais atenta, vigilante e que exige democracia e
pluralidade neste espaço.
6
- O ministro Paulo Bernardo anunciou, no início de sua gestão, que o
debate sobre o novo marco regulatório estava entre as prioridades do
governo Dilma. Agora, o governo parece recuar em colocar o tema em
discussão pública. O que o ministro pode temer?
Ana Veloso - Teme
ataques da chamada velha mídia. Teme oposição dos grandes veículos de
comunicação, como se isso não tivesse ocorrido desde a campanha
eleitoral da presidenta Dilma. Compreendo que há um forte receio de que o
governo possa ser considerado contrário à liberdade de imprensa, como
ocorreu quando vários países na América Latina implementaram regras mais
duras para evitar a concentração da propriedade dos meios, os
monopólios e os privilégios das empresas privadas do setor. Todavia, o
que o governo brasileiro, que quer manter sua imagem de democrático
perante o mundo, parece não enxergar é que o desequilíbrio entre os
sistemas público, privado e estatal de comunicação e a histórica
primazia do empresariado no setor limitam as possibilidades do exercício
da democracia para o conjunto da população brasileira. A privatização
da produção dos bens simbólicos e a prevalência de interesses
particulares em detrimento do interesse público podem se configurar como
um dos maiores ataques à democracia em nosso país.
Apesar
desta limitação, em vários momentos, a presidenta Dilma foi enfática na
defesa da pluralidade no setor e no respeito à liberdade de expressão e
de imprensa. A quebra de um ciclo histórico de ministros ligados à
mídia ocupando a pasta das Comunicações também pode ser considerado um
avanço. Mas um dos problemas para o governo é a alta articulação entre
políticos e empresas de comunicação. Temos cerca de 30% dos
parlamentares do Congresso Nacional com negócios na área. O governo
precisa se fortalecer junto à sociedade civil e ter habilidade em
construir propostas consistentes que possam responder às questões
levantadas pela 1ª Confecom.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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