Entrevistas
Em entrevista, Slavoj Zizek reafirma necessidade do comunismo e defende a ideia de revolução
Publicado no Globo.com - Prosa Online
Sentado num hotel em
Copacabana, um dia após fazer uma palestra sobre os impasses da
democracia liberal para um Odeon lotado (a convite da PUC-Rio, Uerj,
Boitempo e Flacso), o filósofo esloveno Slavoj Zizek parece tomado por
um excedente de energia que o deixa num estado próximo à convulsão:
durante uma hora de entrevista sobre seus livros Em defesa das causas
perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa (Boitempo), seus braços se lançam em todas
direções possíveis pontuando as respostas aceleradas, cheias de
parênteses, diálogos encenados e exclamações. Ao mesmo tempo enfática e
digressiva, a fala é fiel aos textos que fizeram de Zizek uma referência
para a esquerda mundial, nos quais uma aproximação original dos
pensamentos de Marx e Lacan serve de ferramenta para um ímpeto
aparentemente inesgotável de interpretação crítica da cultura moderna e
contemporânea, dos filmes de Hollywood aos pressupostos da democracia
representativa até o pensamento de Deleuze ou Antonio Negri. Nessa
entrevista, Zizek explica o que significa
hoje ser comunista, e por que é preciso recuperar a ideia de revolução.
Seu livro Em defesa das causas perdidas começa pela constatação de que a ideia
de revolução está hoje desacreditada no debate político. Esse
descrédito, o senhor argumenta, não se explica simplesmente pelo fim da
União Soviética ou pela queda do Muro de Berlim, como muitas vezes se
diz. Ele estaria ligado a diversas críticas feitas no século 20 às
noções de verdade e totalidade. Quais são os principais argumentos
dessas críticas, e como o senhor pretende contestá-los?
SLAVOJ
ZIZEK: Há uma certa moda na filosofia pós-moderna de se tomar a verdade
como algo opressivo, que deve ser subvertido. Questiona-se: “quem tem o
direito de dizer que algo é verdade?” Em vez da verdade, existiriam
apenas opiniões. Até as ciências naturais são tomadas como um fenômeno
discursivo, que não teria nenhuma diferença de princípio em relação a
superstições e formas de conhecimento baseadas na tradição. Discordo
disso. Penso que existe a verdade, que existe a verdade universal, e que
ela pode mesmo ser vista politicamente. Por exemplo, o que aconteceu
recentemente no Egito foi a universalidade em sua forma mais pura. Não
precisamos de nenhuma teoria multiculturalista para entender o que se
passava nas ruas do Egito. Quando você tem uma rebelião pela liberdade,
pode se identificar com ela de maneira imediata. Quanto à totalidade,
esse é um grande mal entendido. A noção hegeliana de totalidade não
significa que todos fenômenos particulares sejam no fundo parte de um
mesmo todo orgânico. Não! Se você lê Hegel, vê que totalidade é quase o
oposto disso. A totalidade é uma categoria crítica, que implica perceber
as maneiras pelas quais um certo fenômeno dá errado como sendo parte da
essência desse fenômeno. Detesto os marxistas que dizem: “Stalin traiu o
verdadeiro espírito do marxismo”. Não, não se pode permitir que isso
seja dito. Se as coisas deram tão terrivelmente errado com Stalin, isso
significa que havia uma falha estrutural no próprio edifício de Marx.
Não acredito nessa baboseira do tipo “a ideia era boa mas infelizmente
foi mal realizada”. Aqui eu sou freudiano. O resultado da ideia é como
um sintoma, que aponta para algo errado na ideia. Não acho que os
liberais de hoje consigam admitir isso. Por exemplo, tive um debate na
França com Guy Sorman, um defensor radical do capitalismo e ele dizia:
“capitalismo significa justiça e democracia”. Então eu perguntei, “mas e
a China hoje?”, e ele respondeu “Ah, mas isso não é capitalismo”. Isso é
um pouco fácil demais. Quando você tem um capitalismo que não se
encaixa no seu ideal, você diz “não, não, não é disso que se trata”. É
como a piada contada por Lacan, “meu noivo nunca está atrasado pois no
momento em que se atrasa ele deixa de ser meu noivo”. Claro que você
pode dizer, “o comunismo é sempre democrático pois no momento em que não
é democrático ele deixa de ser comunismo”. Ok, mas isso é fácil demais.
O senhor no
entanto sugere em seu livro que as revoluções são violentas apenas
quando não são de fato revolucionárias. Ou seja: quanto mais
revolucionária for uma revolução, menos violenta ela será num sentido
estrito. Poderia falar sobre isso?
ZIZEK: Escrevi num
outro livro algo que me deu muitos problemas: eu disse, “o problema de
Hitler é que ele não foi violento o bastante”. E as pessoas ficaram
“ai, você queria que ele tivesse matado todos os judeus?!” Não! Ele
não foi violento o bastante nesse sentido autêntico, revolucionário, em
que a violência significa transformação das relações sociais, e não
tortura ou assassinato. Hitler matou milhões de judeus em nome da
manutenção do sistema. O que estou dizendo é que não quero dar a Hitler
sequer esse crédito, na linha “ele foi um criminoso, mas era um líder
corajoso”. Não, ele não era. Nesse sentido, Mahatma Gandhi foi mais
violento do que Hitler. Gandhi é sem dúvida um modelo de paz, mas nesse
sentido básico ele foi violento, organizou protestos de massa com o
objetivo de impedir o funcionamento do Estado colonial inglês na Índia.
Isso é algo que Hitler nunca ousou fazer.
Os críticos
da totalidade apontam um outro tipo de violência, que é a violência das
ideias. Toda revolução tem pelo menos dois momentos. Um de suspensão
total daquilo que é dado, o que o senhor chama de “evento”, citando o
termo usado por Alain Badiou. E um segundo momento de estabelecimento de
uma nova ordem. É este segundo momento que é percebido como
inerentemente violento, na medida em que a nova ordem é estabelecida a
partir de abstrações totalizantes que são impostas à sociedade.
ZIZEK: Sim, essa é a
crítica padrão, iniciada por Edmund Burke e Joseph de Maistre. Mas,
escute. A violência emerge, admito, como uma limitação desses modelos
abstratos. Mas acho que essa análise é muito simplista. Há revoluções,
afinal, que são bem sucedidas. Veja o milagre da democracia. Sou um
crítico das democracias atuais, mas a ideia de democracia é um exemplo
maravilhoso de como algo que era percebido na sociedade pré-moderna como
o maior momento de perigo e instabilidade pode se tornar parte da
estabilidade do novo sistema. Na época das monarquias, ou mesmo nos
regimes totalitários, o momento de maior perigo se dá quando o líder
morre e o trono fica vazio. Na União Soviética, quando Stalin morreu,
mantiveram a morte em segredo por três dias. A ideia da democracia, no
entanto, é muito engenhosa. Ela diz: “e se, em vez de tratar o fato de
que o trono está vazio como um problema, nós o considerarmos uma
solução? O trono está originariamente vazio, e apenas algumas pessoas
eleitas democraticamente podem ocupá-lo por um certo período de tempo,
de forma limitada. Ninguém tem um direito natural a ocupar o espaço do
poder”. Esse é para mim um ótimo exemplo de algo que parecia violento e
se torna o próprio fundamento da estabilidade. Então concordo que há um
perigo das ideias, mas acho que o dia seguinte é a parte mais importante
das revoluções. Não me sinto fascinado por esses momentos de grande
mobilização onde todos estão nas ruas, juntos, pedindo mudança. Isso
sempre me lembra da França, onde todo conservador hoje, a começa por
Sarzoky, diz: “claro, em 1968 eu estive nas barricadas”. O que me
interessa é o dia seguinte. A violência do dia seguinte é sinal de uma
falha, mas não há sempre necessariamente violência. Se aqueles no poder
resistem, é claro que deve haver alguma violência, mas apenas como forma
de defesa.
O senhor argumenta, porém, que no interior do horizonte da democracia só é possível pensar em mudanças parciais, reformas...
ZIZEK: Não, aqui
serei bem específico. Falo do horizonte da democracia atual. O problema é
como revitalizar a democracia. Mesmo Badiou, que às vezes disse coisas
malucas, como “o nome do inimigo hoje é democracia”, já especificou essa
declaração, explicando que o que ele critica é o modelo atual de
democracia representativa. Vou dar um exemplo. Estive na Inglaterra anos
atrás, nas últimas eleições vencidas pelos Trabalhistas, quando Blair
ainda era o líder do partido. Duas semanas antes da votação, houve na
BBC uma grande eleição pública para se escolher a pessoa mais odiada da
Inglaterra. Sabe quem ganhou? Tony Blair. E duas semanas depois, Tony
Blair foi eleito. O que isso mostra? Mesmo críticos conservadores
admitem isso: há uma disfunção da democracia, uma certa quantidade de
energia de protesto, frustração, insatisfação, que não pode ser
capturada por esses modelos tradicionais puramente partidários e
representativos. E então há reações distintas a isso. Desde os
“movimentos de uma questão só”, como um movimento pela redução de certos
impostos, até essas revoltas aparentemente irracionais, como a queima
de carros nos subúrbios de Paris. Isso deveria preocupar qualquer
democrata sincero hoje. Como tornar o sistema democrático mais
eficiente, de modo que não se tenha explosões de descontentamento que
dão expressão a uma energia não capturada pela representação política?
Mas a
criação de novos canais de expressão ou atuação política pode ser
defendida dentro de uma agenda democrática puramente reformista. Por que
seria necessário então recuperar, como o senhor propõe, a noção de
revolução?
ZIZEK: Mas espere um
minuto, por revolução não quero dizer estado de emergência, polícia
revolucionária etc. Por revolução quero dizer apenas, num sentido
puramente formal, mudança radical. Talvez nem mesmo uma mudança radical
veloz. A revolução seria, simplesmente, por exemplo, que as pessoas no
Japão ameaçadas pela radiação nuclear se unissem e exigissem algum tipo
de regulação internacional eficiente... Revolução para mim é mudança nas
relações sociais de poder.
Um lento processo de transformação não seria o oposto do “evento”, do qual fala Badiou?
ZIZEK: Badiou é
muito preciso: para ele, um evento é algo que só pode ser reconhecido
retroativamente. E aqui entra o que ele chama de fidelidade ao evento.
Não é o grande evento, mas esse trabalho paciente de busca por novas
formas, a reinscrição do evento na forma do ser, da vida cotidiana. Para
mim, foda-se a revolução, o que me interessa é aquilo que permanece.
Não ligo para o que aconteceu na Praça Tahrir. O que me importa é o que
vai permanecer daquilo daqui a cinco anos. Nesse sentido, o evento é
apenas um ponto de início mítico que abre um certo horizonte de
atividade política, e esse é o verdadeiro trabalho, lento e duro. Badiou
faz uma referência maravilhosa na qual ele lê esse processo
revolucionário segundo as qualidades cristãs definidas por São Paulo:
fé, esperança e amor, das quais o amor é a mais importante. Badiou diz:
fé é a fé no evento, no sentido de que algo novo é possível; esperança é
a esperança de que chegaremos ao objetivo; e amor é para Badiou, como
disse São Paulo, o trabalho do amor. O que significa trabalho paciente. É
disso que precisamos hoje. Deixe-me dar um exemplo: Obama. Gostei de
Obama no começo, e mesmo agora ainda gosto dele em alguma medida, mas
sabe por quê? John McCain falava uma língua que para mim era
revolucionária de modo apenas superficial. Ele dizia “temos inimigos,
como a burocracia, devemos combatê-los e tudo vai dar certo”. Obama, por
sua vez, dizia: “nós temos problemas sérios e o que precisamos é de
trabalho paciente”. Essa reabilitação do trabalho cinzento diário,
talvez a esquerda precise de um pouco disso, não?
O comunismo vai vencer, como o senhor disse ao jornal inglês “The Guardian”?
ZIZEK: Ah, isso é
uma provocação. Quis dizer: o comunismo vai vencer ou então estaremos
todos na merda. Você tem que dizer algo assim de vez em quando para
fazer as pessoas pensarem. Ainda sou um comunista, mas não um
continuísta. O século XX acabou. O resultado geral do comunismo foi um
fiasco. A social-democracia foi boa enquanto funcionou, mas está hoje em
crise. E a lição do sucesso econômico da China e de Cingapura é que o
casamento aparentemente eterno entre capitalismo e democracia está se
desfazendo. Temos aqui uma forma de capitalismo ainda mais dinâmica do
que o capitalismo ocidental, e que funciona perfeitamente em condições
autoritárias. Isso deveria nos preocupar. A razão por que me considero
ainda um comunista é que vejo uma série de problemas para os quais não
há solução possível dentro do modelo do capitalismo liberal global.
Entre eles, a questão ambiental, a biogenética, a propriedade
intelectual. Para enfrentá-los vamos precisar de um esforço coordenado
de larga escala, algo de que nem o mercado nem o Estado tradicional são
capazes. Quando as pessoas me dizem “você é um utópico”, eu digo: “a
única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir
indefinidamente seu curso atual”. É claro por exemplo que se a China
continuar se desenvolvendo na escala atual haverá uma demanda
materialmente impossível de se atender. Para mim, comunismo é o nome de
um problema. Todos esses problemas são problemas de algo comum
(“problems of commons”), de algo que deveria ser compartilhado por todos
nós. É uma alegação muito modesta.
Núcleo
Piratininga
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