MÃdia
Ora, direis, gozar com carros?
Publicado por Maria Rita Kehl - Blog da Boitempo
O casal jovem está sentado frente a frente na mesa de um restaurante
caro. A cena reproduz o tipo de encontro que já está configurado no
imaginário romântico de nossa época. É nas mesas de bares e
restaurantes, frente a frente, que as pessoas flertam, se declaram, se
encontram para conversar e namorar. Sabemos que o encontro amoroso,
assim como todas as relações humanas, é atravessado por alguns objetos: a
decoração da sala, a comida e as bebidas, as roupas e adereços dela e
dele. O encontro amoroso não acontece entre dois; ele é mediado pela
linguagem, que se faz presente também na forma de objetos que a cultura e
a classe social consideram adequados para a ocasião. Assim o vinho, os
talheres, a música ambiente, a comida e o preço da comida
participam do encontro, demarcando e ao mesmo tempo preenchendo um
intervalo entre os parceiros. Este intervalo, esta descontinuidade
entre um e outro é que permite a circulação do desejo, como se fosse –
mas não é – o puro desejo de um pelo outro.
Na cena que descrevo, o rapaz está tentando dizer algo à moça.
Começa timidamente, hesita – o espectador percebe que ele esboça um
pedido de casamento. Mas o olhar da moça é distante. Custamos a
interpretar seu sorriso de polida indiferença, até que a câmera faz um
giro e conduz nosso olhar para fora da janela, para onde o olhar da
moça se dirige. Lá está um carro novinho, de cuja marca não me lembro
(mas sei que é vermelho). Quando o noivo, cada vez mais embaraçado,
termina seu pedido, ela cai em si e pergunta: “desculpe, o que você
dizia…?” A ironia é confirmada pela voz do locutor que alerta os
espectadores para o objeto que realmente interessa às moças casadoiras.
Se o rapaz não puder oferecer a ela o carro x, desista da empreitada.
O carro introduz-se entre os dois namorados não como um objeto a
mais entre os outros – vinho, talheres, cardápio, preço – uma série
cujos elementos podem sempre ser substituído por outros. Nessa
propaganda, o carro não é um entre os muitos objetos mediadores do
desejo (sexual); é ele, este artefato mecânico revestido de lata e
tinta brilhante, que se instala no lugar de um dos parceiros
como se fosse o próprio objeto do desejo. Se os outros acessórios
fálicos recortam o lugar da falta a partir do qual o desejo circula, o
carro x, que desvia a atenção da mulher no momento em que o homem lhe
pede que seja sua esposa, está no lugar (imaginário) do objeto
(simbólico) do desejo. Agora, o homem é que ocupa o lugar acessório;
casar-se com ele seria, para ela, apenas um meio de acesso ao
gozo/carro. O homem tornou-se supérfluo diante do único bem que
interessa à moça de maneira absoluta. O carro é o objeto irrecusável do
desejo, tanto dela quanto do espectador, convocado a identificar-se
não com o olhar ingênuo do moço, que ignora o que sua noiva vê, mas com
o olhar indiferente e sonhador dela, focando o carro zero estacionado
do lado de fora. Ao contrário da mulher freudiana, esta personagem
publicitária sabe exatamente o que quer; diante disso o pretendente, que
lhe oferece o pobre substituto de um compromisso de amor, faz papel de
otário.
Como bem lembrou Eugênio Bucci em vários de seus artigos sobre
televisão para a Folha de São Paulo e o Jornal do Brasil, o apelo
psicológico comum a todas as formas de publicidade visa à dinâmica da
inclusão e da exclusão. A publicidade, escreve Bucci, vende sempre a
mesma coisa: a proposta de uma inclusão do sujeito às custas da
exclusão do outro. A identificação do espectador como consumidor do
produto que se apresenta como capaz de agregar valor à sua
personalidade promove sua inclusão imaginária no sistema de gosto, na
composição de estilos, que move a sociedade de consumo. Goza-se com
isso: não tanto da própria inclusão (que pode não passar de uma
fantasia), mas da exclusão do outro. O que a publicidade vende, portanto, é exclusão.
Não é imprescindível que a exclusão seja de classe, como ocorre em
outro anúncio em que os meninos de rua que pedem para tomar conta e
limpar os carros ao preço de um real brigam pelo privilégio de polir o
modelo top de linha de um feliz playboy que acabou de estacionar. A exclusão pode ser de estilo.
Durante a copa, um comercial de cerveja mostrava um torcedor que errou
ao oferecer uísque em vez de Skol aos amigos que foram assistir ao
jogo em sua casa. Diante da gafe imperdoável, foram todos tomar a
cerveja certa no bar ao lado, excluindo o anfitrião da alegria
coletiva. Não foi uma troca de produto – a cerveja pelo uísque – mas de
companhia. O uísque, bebida errada na hora errada, desqualificou o
anfitrião perante seus amigos. Este mostrou-se tão otário quanto o
pretendente da moça do primeiro comercial que não entendeu qual seria o
verdadeiro objeto da sua paixão. É óbvio que a relação que se
estabelece é entre as pessoas e as coisas. Ou entre as próprias coisas,
que se relacionam, se avaliam e se atribuem significações na medida em
que as pessoas (reduzidas a consumidores) se perfilam diante de suas
marcas.
Aquela mulher que sabe o que quer, no entanto, não é o mestre do
gozo na pequena peça publicitária que escolhi para abrir esse artigo.
Se ela sabe que quer é porque um outro, em posição de mestria, lhe
apresentou um objeto imperativo da satisfação garantida. Para
nós, espectadores, o mestre é o publicitário. É ele quem dirige nosso
olhar para o objeto que atrai o olhar dela. É ele quem promove a
iniciação dos sujeitos desejantes, convocados desde o lugar de
consumidores, em relação às possibilidades de gozo em circulação no
mercado. Mas para a personagem do filme de propaganda, no qual a autoria
do publicitário está elidida, o objeto do desejo se apresenta por
conta própria, como por obra dos deuses do acaso. Ele entra em cena
através de um giro da câmera que conduz, “naturalmente”, o nosso olhar;
está ali, na calçada fora do restaurante, para que a moça reconheça em
suas formas, em sua cor vermelha, mas acima de tudo na marca de
fabricação, o objeto inquestionável do desejo.
Os deuses do acaso dispõem as mercadorias em circulação no mundo
contemporâneo como o antigo Deus cristão dispunha das forças da natureza
para abençoar ou castigar seus fiéis. Uma nova versão imaginária do
Outro ocupa o lugar – lugar de um Ser onipresente, onisciente e
onipotente – deixado vazio quando parte da humanidade deixou de orientar
suas escolhas a partir da crença no Deus judaico-cristão. Um Outro que
enuncia o que deseja de nós e promete suas bênçãos para aqueles que
melhor se dispuserem a atender suas demandas. Este Outro pode ser,
simbolicamente, o Mercado, filho enviado à terra por seu Pai, o Capital –
abstrações sem nome e sem rosto que determinam nosso destino e, de um
lugar simbólico fora do nosso alcance, nos submetem às leis inflexíveis
do Seu gozo.
***
Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em
psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e ensaísta. É autora de vários
livros, entre os quais se destacam Videologias – Ensaios sobre televisão (Boitempo, 2004), escrito em parceria com Eugênio Bucci, e O tempo e o cão (Boitempo, 2009), ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Não-Ficção 2010. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, sempre na primeira segunda-feira do mês.
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