MÃdia
Comunicação e cultura em Paulo Freire: 30 anos depois
Hoje, a contribuição de Paulo Freire
para o campo da comunicação é fonte de inspiração e referência. A
situação, certamente, não era a mesma no final da década de 70. Embora
reconhecido internacionalmente e estudado em várias disciplinas, seu
pensamento era quase que totalmente ignorado nos estudos de comunicação,
inclusive no Brasil.
Por Venício Lima - Publicado na Agência Carta Maior
Visitando a trabalho o sul da Índia, estado
de Tamilnadu, no início de 2010, o professor de física da Universidade
de Brasília, Amílcar Rabelo de Queiroz, deparou-se com uma situação
reveladora. Em viagem para a região de Thanjavur conheceu um vilarejo
pobre – Pattukkotta – que vive basicamente da pequena agricultura. Lá
visitou uma escola de educação fundamental. Para facilitar sua
apresentação e criar um clima amistoso, os colegas do Institute of
Mathematical Sciences (IMSC), que com ele viajavam, informam aos
professores da escola que Amílcar era brasileiro, da terra de Pelé.
“Brasil? Pelé?”. Repetem várias vezes. De repente, um deles sorri e
exclama: “ah, ah, Brasil, claro, terra de Freire, Paulo Freire!” E
alcança na estante vários livros de um dos nossos maiores educadores,
traduzido, estudado e reconhecido em todo o mundo.
Paulo Freire
faleceu há quase 14 anos, em maio de 1997. Se estivesse vivo,
completaria noventa anos em setembro. Sua obra, seu pensamento e sua
ação deixaram marcas profundas em vários campos do conhecimento. Seu
único ensaio especificamente sobre comunicação – Extensão ou
Comunicação? – foi escrito no exílio chileno, em 1968, e publicado pela
Editora Paz e Terra, no Brasil, em 1971.
Tenho afirmado recorrentemente que as reflexões de Freire sobre comunicação nunca estiveram tão atuais. [cf. nesta Carta Maior “Paulo Freire, direito à comunicação e PNDH3”].
Direito à comunicação A
necessidade de construção e positivação de um direito à comunicação foi
identificada há mais de 40 anos pelo francês Jean D’Arcy, quando
diretor de serviços audiovisuais e de rádio do Departamento de
Informações Públicas das Nações Unidas, em 1969. Naquela época ele
afirmava:
Virá o tempo em que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos terá de abarcar um direito mais amplo que o direito
humano à informação, estabelecido pela primeira vez 21 anos atrás no
Artigo 19. Trata-se do direito do homem de se comunicar.
A
proposta de D’Arcy, na verdade, assumia e consagrava uma perspectiva
“dialógica” da comunicação que já havia sido elaborada, do ponto de
vista conceitual, por Paulo Freire no ensaio "Extensão ou comunicação"?
Freire
recorre à raiz semântica da palavra comunicação e nela inclui a
dimensão política da igualdade, a ausência de dominação. Para ele,
comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de
conhecimento que por sua vez decorre da experiência e do trabalho
cotidiano. Ao restringir a comunicação a uma relação entre sujeitos,
necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. O próprio
conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e
autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social. A
comunicação passa a ser, portanto, por definição, dialógica, vale dizer,
de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de ser
informado e o direito de acesso aos meios necessários à plena liberdade
de expressão.
Como se vê, Freire teoriza a comunicação interativa
antes da revolução digital, vale dizer, antes da internet e de suas
redes sociais. No nosso tempo, quando as novas tecnologias [TICs] rompem
com a unidirecionalidade da comunicação “de massa” tradicional, o
conceito de comunicação relacional e transformadora oferece uma
referencia normativa revitalizada e desafiadora.
História das idéias Ao
reafirmar a atualidade do pensamento de Paulo Freire, especificamente
para o campo da comunicação, tomo a liberdade de registrar os trinta
anos de "Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire", publicado
pela Paz e Terra, em março de 1981 (2ª. edição 1984). O livro é uma
adaptação de tese de doutorado defendida em agosto de 1979.
Na
verdade, o argumento central sobre a importância de Freire para o estudo
da comunicação já havia aparecido em artigo anterior que publiquei, com
Clifford Christians, na revista inglesa Communication (vol. 4, n. 1,
1979) sob o título “Paulo Freire: the political dimension of dialogic communication”, traduzido e publicado em português pela revista Síntese (vol. VI, n. 16, maio/agosto de 1979).
A
história das idéias nos diferentes campos do conhecimento – inclusive
na Comunicação – muitas vezes contém omissões, deliberadas ou não, ao
deixar de registrar contribuições feitas por autores que, por diferentes
razões, não se situam no seu “mainstream” ou não se alinham aos grupos
dominantes na academia. Daí, às vezes, a necessidade de auto-registros
isolados como esse.
Hoje, a contribuição de Paulo Freire para o
campo da comunicação é fonte de inspiração e referência. A situação,
certamente, não era a mesma no final da década de 70 do século passado.
Embora reconhecido internacionalmente e estudado em várias disciplinas –
filosofia, sociologia, serviço social, religião, história – seu
pensamento era quase que totalmente ignorado nos estudos de comunicação,
inclusive na sua terra, o Brasil.
A incrível história do prof.
Amílcar na Índia, de que só agora tomei conhecimento, serviu de mote
para que fizesse, então, esse duplo registro: a permanente atualidade do
pensamento do educador brasileiro e os trinta anos do Comunicação e
Cultura: as idéias de Paulo Freire.
* Venício A. de Lima é professor titular
de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre
outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à
Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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