Hist�ria
Haiti – Primeira República Independente da América Latina
Publicado em 09.02.11 - Por José Levino*, publicado originalmente no jornal A Verdade Janeiro é um mês de duas comemorações para o povo haitiano. Uma de alegria, outra de tristeza. No dia primeiro de janeiro de 1804, foi proclamada a Independência do Haiti. No dia 12 de janeiro de 2010, um fatídico terremoto deixou sob escombros essa nação. Haiti, o país mais pobre das Américas, do tamanho do Estado de Alagoas, tem 10 milhões de habitantes. 80% da população vivem abaixo da linha da pobreza, mais de metade é indigente. “Não admito que o Haiti seja o país mais pobre do Continente. Ele é o mais empobrecido, mas ainda guarda muitas riquezas naturais, as praias, os lugares históricos, a coragem e determinação de um povo, sua alegria”, afirma o estudante hatiano Dudley Mocombe. É verdade. O Haiti já foi chamado de “Pérola do Caribe”, por suas riquezas naturais, por sua beleza, pela produção de café e cana-de-açúcar, que tanto contribuiu para o enriquecimento da França, país que sucedeu a Espanha no domínio da ilha. Tudo que acontece hoje não é conseqüência apenas de um terremoto, por mais intenso que tenha sido. É resultado de intervenções, massacres e ocupações que sempre tentaram calar a primeira República Negra do mundo. Os haitianos pagam até hoje por sua ousadia. A ilha Hispaniola foi onde o invasor pôs os pés primeiro na campanha genocida que desenvolveu por toda a América Latina. Cristóvão Colombo chegou em 1492. Depois, o território foi dividido em República Dominicana (parte leste) e Haiti (parte Oeste). Haiti significa montanha. Em menos de meio século, 300 mil indígenas haviam sido dizimados na guerra de resistência ou no trabalho escravo das minas de ouro. Como no resto do Continente, os dominadores escravizaram trabalhadores em solo africano. Esgotada a mineração, os espanhóis se deslocam para outros países da nossa América, e os franceses vão ocupando seu lugar. Em 1697, a Espanha aceita a soberania francesa sobre o território do Haiti. A França prioriza a produção de cana-de-açúcar, produto mais importante da época. O Haiti tornou-se a colônia mais rica e mais importante da França. Quando a Revolução burguesa triunfou na França (1789), havia em solo haitiano 500 mil escravos negros trabalhando de sol a sol, 32 mil brancos e 24 mil mestiços, além de um número insignificante de negros livres por terem conseguido comprar a carta de alforria. O espártaco negro A palavra de ordem de Liberdade, Igualdade e Fraternidade ecoou no território do Haiti. O mulato Vicente Ogé liderou a primeira revolta, mas logo foi preso e supliciado. A massa continuou em rebelião, abandonando os engenhos, e a liderança do movimento libertador foi assumida por Toussaint Louverture, um gênio militar capaz de derrotar o poderoso exército francês. Em 1794, o governo da França proclama a abolição da escravidão em suas colônias. O povo haitiano continuou a lutar pela independência e Louverture tornou-se praticamente unanimidade nacional. Ele prepara um projeto de declaração da independência e aprovação de uma Constituição que definia o Haiti como Estado soberano, com regime republicano e associado à França revolucionária. A Revolução francesa sofre, entretanto, uma guinada. Em 10 anos (1789/1799), os jacobinos haviam cumprido sua missão revolucionária. Mediante a violência, eles eliminaram qualquer resquício de dominação feudal, com o povo proclamando ao seu lado “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Agora, chega! Quem vai desfrutar desses três princípios é apenas a burguesia. A missão cabe ao general Napoleão Bonaparte, que já comprovara na luta sua capacidade de levá-la a cabo. É Marx quem ensina em Dezoito Brumário: “...Napoleão estabeleceu por toda a França as condições que tornaram possível o desenvolvimento da livre concorrência, a exploração das terras depois da divisão das grandes propriedades, e a plena utilização da capacidade de produção industrial do país...” Napoleão não queria saber de independência das colônias. Mandou um dos seus mais importantes generais, Leclerc, comandar uma expedição para retomar o domínio do Haiti. Sem êxito no terreno da guerra, o grande mito baixa o nível. Sequestra dois filhos de Toussaint que se encontram na França. Desesperado, o espártaco negro cedeu à chantagem e foi a Paris se entregar em troca da libertação dos jovens. Em vão. Foi preso e enviado para uma masmorra nas montanhas frias, sem roupa adequada, falecendo em pouco tempo. Seus filhos também foram mortos. Em vão também para Napoleão, pois a guerra de libertação seguiu firme sob o comando do negro Jean-Jacques Dessaline, ex-escravo e analfabeto. A vitória não tardou. Nenhum historiador burguês registra que um exército de negros, pobres, mal-armados, derrotou o todo-poderoso exército de Napoleão Bonaparte. No mesmo ano em que o general francês era proclamado imperador,o general negro Dessaline proclama a independência do Haiti. Derrotada no campo militar, a burguesia prepara a reação no campo econômico. Nenhum país reconhece a independência do Haiti. A França articula um bloqueio mundial à ilha caribenha, ao qual adere até o seu arqui-inimigo, a Inglaterra. Governo brasileiro ajuda França a subjugar o Haiti Como isolar o Haiti e substituir o próspero comércio de açúcar haitiano? Abrindo os portos brasileiros, eis a resposta. Daí, Napoleão invade Portugal com apoio da Espanha e da Inglaterra. Esta manda a família real se deslocar para o Brasil com o objetivo de controlar a massa escrava, para que não siga o exemplo haitiano, e determina que abra os portos para o comércio internacional, pondo termo ao monopólio português em 1808. O açúcar brasileiro permitiu à França matar a revolução haitiana sem dar mais um tiro sequer. Completamente isolado, o governo de Dessaline não conseguiu construir um novo modelo econômico soberano e autossuficiente. Economia sufocada, povo insatisfeito, liderança questionada, conflitos entre os próprios negros e entre estes e os brancos e mestiços que compunham a incipiente burguesia e classe média do país. O caos se instala, com sucessivas deposições de governos. Em 1838, o Haiti se submete à nova chantagem francesa: reconhecer a independência em troca de uma indenização de 90 milhões de francos. Tal reconhecimento de nada adiantou; melhor dizendo, agravou a situação, pois um país empobrecido assumindo uma dívida externa desse tamanho, aprofundou sua dependência e subordinação. A instabilidade se sucede. Os Estados Unidos invadiram e controlaram diretamente o país de 1915 a 1934. Quando saíram, deixaram uma elite política e militar preparada para servir aos seus interesses. A exemplo da ditadura de François Duvalier, o Papa Doc (1964-1971) e seu filho Jean Claude Duvalier (1971-1986). Repressão a qualquer manifestação oposicionista e desvio de dinheiro público foram características do governo dos Duvalier, que se utilizavam para aterrorizar o povo, de uma milícia secreta, os touton-macoutes (bichos-papões). Uma rebelião popular derruba o último Duvalier, que se exila na França. Até 1990, sucedem-se governos depostos por golpes de Estado. Até que em 1987, uma nova Constituição preconiza eleições livres e é escolhido para a Presidência o padre Jean-Bertrand Aristide, adepto da Teologia da Libertação. Um raio de esperança brilha sobre o Haiti, mas é apagado poucos meses depois, pois novo golpe de Estado restaura a ditadura. Aristide retorna ao governo em 1994, por pressão internacional, mas assume compromissos com os Estados Unidos de não mexer com a estrutura econômica do país. Sem condições de realizar mudanças em favor do povo, o desencanto popular gera manifestações lideradas pela oposição e apatia da maioria dos seus partidários, abrindo caminho para nova intervenção militar dos Estados Unidos, em 2003, desta vez sob o manto da ONU e com o apoio do governo brasileiro, que assume o comando formal das tropas de ocupação. Aristide foi forçado a exilar-se na África do Sul. René Preval, que havia sido seu vice-presidente, assume um governo fantoche, que não tem autonomia sequer para organizar a distribuição das doações internacionais feitas para as vítimas do terremoto de janeiro 2010. Seu mandato termina dia 7 de fevereiro. Já houve eleições, mas estão com andamento suspenso e o segundo turno não é convocado por suspeita de fraudes e outras irregularidades. Os EUA dominam a economia haitiana de forma quase absoluta. 80% das importações e 65% das exportações se realizam com os Estados Unidos. As exportações são de açúcar, café, rum e tabaco. Nos últimos anos, estão se firmando também maquiladoras, isto é, empresas montadoras de produtos fabricados nos “States”, que atuam com mão de obra semiescrava, como vem acontecendo também no México. Sua ajuda às vítimas do terremoto se daria mediante o aumento dessas maquiladoras para oferecer subemprego. Só que esta atitude nada tem de humanitária porque elas estarão de fato aumentando seu lucro. E as tropas de ocupação, inclusive a brasileira, as chamadas “Forças da Paz”, o que têm feito em benefício do povo haitiano? Bem, ajudaram a remover 5% (cinco por cento) dos escombros, pois como mostraram as redes de televisão, na passagem de um ano do acontecimento fatídico, a paisagem de desolação e destruição permanece praticamente a mesma. Apenas 42% da ajuda humanitária internacional chegaram às mãos das famílias pobres. Somente 30 mil pessoas foram realocadas para uma nova casa. Mais de um milhão permanecem perambulando nas ruas, inclusive crianças, com fome, doentes, sem segurança. Para completar o quadro, uma epidemia de cólera matou nos últimos meses 3.600 pessoas e infectou 170 mil. Os haitianos afirmam que a doença foi trazida por soldados do Nepal que compõe as Forças de intervenção. Exemplo de intervenção do bem é a promovida por Cuba. 1.200 médicos cubanos (isto a imprensa capitalista também não divulga) atuam no Haiti. Já realizaram 14 mil visitas, 200.000 cirurgias, 30.000 atendimentos de casos de cólera, entre outras. Embora modestamente, a Via Campesina Brasileira está compensando a intervenção militar. Enviou uma brigada que está trabalhando com comunidades rurais haitianas e já ajudou a implantar 1.200 cisternas, amenizando a falta de água potável. Colaboram também na produção de sementes para plantio de alimentos e na organização comunitária. É uma luta de Davi contra Golias, a Monsanto, que já enviou 475 toneladas de sementes transgênicas de milho. Seu interesse certamente não é humanitário e sim de gerar dependência dos agricultores em relação às suas sementes, cuja reprodução é proibida. Desse modo, 1º de janeiro não foi um dia de festa. Foi um dia de protesto pelo fato de o Haiti não viver sua verdadeira independência, conquistada ao custo de 200 mil mortos em 1804. No dia 12, os protestos continuaram com o povo gritando nas ruas por seu direito de decidir e comandar seu próprio destino, construir sua própria história. Com ajuda dos povos, sim, nunca com intervenção armada. Mas o povo do Haiti não desanimará. Inspirado na sua própria história, capaz de expulsar os exércitos coloniais, de sobreviver a tantos terremotos e maremotos e se levantar, o povo haitiano ouvirá sua irmã poetisa Emmelie Prophète: “Mas cuida-te, Haiti, e recusa ofertas por tua alma combalida/ Retira o pó da gente descolorida pela desgraça/e recria a Nova Fênix Caribe /que deverá surgir das cinzas”. *José Levino é historiador
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