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MÃdia
América Latina: mídia versus democracia
Por Luiz Marques - Publicado pela Agência Carta Maior:
Sexo não é mais tema tabu, embora José Serra na última campanha tenha
procurado englobar em um obscurantismo pautas correlatas: a livre
orientação sexual, uma opção individual, e a prática do aborto, um
problema de saúde pública. A picardia funcionou para associar a direita
nativa às correntes internacionais extremistas do conservadorismo e
catalizar o apoio de alas ultra-retrógradas, como a católica Opus Dei.
Com o que, a candidatura do “bolinha de papel” atingiu o preocupante
patamar de 43% dos votos no segundo turno, tendo por pano de fundo a
herança cultural excludente e elitista do país.
Hoje, a censura da mídia patronal não recai sobre “a moral e os bons
costumes”, mas sobre os esforços de democratização da América Latina. O
bloqueio contumaz esconde os avanços no combate às desigualdades
sociais. Os noticiários manipulam o imaginário social e ferem o direito
à informação. À indagação do nacional-desenvolvimentista Celso Furtado,
“saber se temos um futuro como nação no devir humano”, respondem
buscando “interromper o nosso processo histórico de formação de um
Estado-Nação”. A tática que adotam é a da omissão altista sobre as
conquistas que distanciam-nos do passado colonial e escravagista, em
combinação diuturna com as acusações histriônicas e gratuitas à suposta
falta de moralidade nos atos das lideranças. A disco toca sempre a
mesmíssima faixa.
As classes médias altas, por não sentirem o impacto imediato gerado com
as políticas de qualificação dos serviços públicos, distribuição de
renda, valorização do salário mínimo e expansão do crédito, mostram-se
mais suscetíveis à sabotagem. As camadas empobrecidas, usufruindo no
cotidiano os benefícios da inversão de prioridades, possuem uma
consciência com maior imunidade ao mal humor dos donos da opinião
pública. A situação é agravada pela ausência de uma legislação que
proíba a propriedade cruzada, o que implica uma ameaça à veiculação de
idéias plurais e uma limitação à capacidade de formulação de juízos
independentes pelos indivíduos. Paradoxo que mina as bases da própria
democracia liberal!
A midiatização oposicionista, encenada com sensacionalismo e
virulência, tem um preço. O jornal argentino de maior circulação,
Clarin, perdeu 30 mil leitores diários no ano passado, o que é
bastante. Nem assim arrefeceu as baterias contra a Lei dos Meios de
Comunicação, a qual estabeleceu que as licenças outorgadas serão
divididas alocando 33% de emissoras de rádio e televisão para o Estado,
33% para as emissoras comunitárias e 33% para as empresas privadas.
A medida, que tem repercussão econômica e política, visa desconstituir
os monopólios na área, alguns de posse de 60 frequências televisivas
regionais. A Agência de Notícias Reuters (Inglaterra) divulgou a
informação como um atentado à “liberdade de expressão” (leia-se:
“acumulação”), tecendo um juízo de valor. Adicionava que “a aprovação
da lei polêmica no Senado deve enfraquecer as grandes empresas
jornalísticas críticas ao governo de Cristina Kirchner” (10/10/2009). A
nota foi reproduzida em tom de lamento pela imprensa comercial. Seria
risível, se não fosse melancólico.
Projetos em disputa
Dois projetos políticos seguem em disputa na AL, o neoliberal e o
democrático-participativo. O primeiro detém-se em um conceito de
democracia apenas procedimental, com vértice nas eleições, sendo
culpado pela decepção espraiada com o rendimento societal pífio dos
governos civis nos anos 90. O segundo amplifica a esfera pública,
reabre possibilidades para o exercício da cidadania, reconfigura a
relação entre os governados e os governantes. A este deve-se: a) a
extensão de instâncias decisórias, que socializam o poder político e
interferem de maneira propositiva na elaboração de programas e leis
abrangentes; b) o reconhecimento das diferenças, que garante o
aparecimento de novos sujeitos e; c) a universalização de direitos, que
alicerça o incipiente edifício da igualdade republicana.
No discurso, ambos os projetos enaltecem as ações participativas. No
governo FHC, por intermédio da “Comunidade Solidária” que tratava os
pobres como objeto de filantropia e retirava da administração central
qualquer obrigação no combate à pobreza. A questão social apelava à
caridade, ao invés de clamar alto e bom som por justiça. O estratagema
demotucano, decorrente dos ajustes fiscais inspirados no Consenso de
Washington, serviu de paradigma para o Fondo de Solidariedad e
Inversión Social (Chile) e a Red de Solidariedad (Colômbia).
As palavras mágicas ouvidas então eram “responsabilidade social”,
“terceiro setor” e “voluntariado”, com os cidadãos reduzidos à condição
de “consumidores” e a sociedade civil dissolvida nas “fundações
empresariais”. Nada a ver com a noção de participação ilustrada nas
“Conferências Nacionais” realizadas pelo governo Lula: mais de 70,
abrangendo da pesca à saúde, passando pelos serviços de
telecomunicações e radiodifusão. Todas atentas aos ideais simbólicos de
um Estado de bem-estar social que aumente consideravelmente o PIF, isto
é, o Produto Interno de Felicidade.
A utilização de um mesmo conceito para designar conteúdos distintos é o
que certos autores classificam de confluência perversa de significados.
“A perversidade se localizaria no fato de que, apontando em direções
opostas e até antagônicas, os dois conjuntos de projetos utilizam um
discurso comum” (Evelina Danigno, Alberto Olvera, Aldo Panfichi, A
disputa pela construção democrática na AL, 2006). Os neoliberais
embaralham os sentidos para apropriarem-se da demanda de participação
dos movimentos sociais, sobretudo em conjunturas de refluxo das lutas
populares. No lusco-fusco, ocultam as intenções privatistas para
reverberar a semântica pega de empréstimo de outra ideologia. Pura
malandragem.
A participação social, que os peregrinos do caminho da servidão querem
privatizar, reatualiza a inserção dos trabalhadores nos processos
políticos, organizando os coletivos para intervirem nas estruturas (que
não são homogêneas) do Estado. A democracia participativa designa um
“modo de vida” voltado para o desfrute pleno dos direitos civis,
políticos e sociais. A democracia representativa, assentada na
formalidade das regras do jogo, resume-se a um regime político. A
coabitação, no caso, aperfeiçoa as engrenagens da representação
política e relativiza o peso do clientelismo e do personalismo. “O
legado de Lula é ter tornado a participação no governo federal efetiva.
O desafio agora é transformar as decisões das conferências em
políticas, e articular melhor as formas de participação com a produção
legislativa no Congresso Nacional”, resumiu em entrevista o professor
Leonardo Avritzer. Dessa articulação resultará um sistema político
híbrido mais adequado.
Novos atores políticos
Assiste-se na AL à erupção de novos atores políticos e temáticas no
espaço público, que deixa de ser uma trincheira de resistência ao
despotismo estatal, como no ciclo ditatorial, para se converter em um
laboratório de práticas associativas capazes de levantar propostas
vinculantes à ordem estabelecida. “O Brasil não falava de
extrativistas, de varzeteiros, de ribeirinhos, de pescadores ou de
quilombolas”, declarou o ex-ministro Guilherme Cassel no balanço de sua
gestão no Ministério do Desenvolvimento Agrário. Esse contingente
estava excluído dos arranjos políticos. O fenômeno repete-se por toda
parte, onde os grupos étnicos e as mobilizações indígenas ganham
visibilidade social. Impossível desconsiderar tais segmentos ao
prospectar o futuro da democracia.
A complexidade do real opõe-se aos esquemas reducionistas das
vanguardas dogmáticas, que importavam fórmulas redentoras do hemisfério
Norte ao invés de debruçarem-se sobre as circunstâncias do Sul. Nunca
foi tão atual a observação do intelectual peruano José Carlos
Mariátegui (1894-1930) para “evitar a imitação européia e situar a ação
revolucionária em uma apreciação exata de nossa própria realidade”. A
onda democrática pós-neoliberal não teria acontecido com a esquerda
ainda submetida a um eurocentrismo, o que experiências como o Foro de
São Paulo ajudaram a corrigir. Mas há muito por fazer para a elaboração
de um pensamento anticapitalista autóctone, que se nutra da perspectiva
internacionalista conquanto sem submissão ou obediência.
A geração de militantes formada sob os governos eleitos pelo voto
direto aprendeu a dizer “não” às imposições, pois cresceu com autonomia
para fazer escolhas. Pela formação societária, rejeita os ditames
burocráticos. Ao contrário dos velhos comunistas diante das cúpulas
dirigentes de antanho, substitui o argumento da autoridade pela
autoridade do argumento. Ou seja, à heterogeneidade dos atores
políticos, soma-se uma juventude crítica que cultua o empenho
dialógico, recusa os sistemas organizacionais verticais, está
familiarizada com as modernas tecnologias e ciente do direito a ter
direitos. A tradição se reinventa. E, em um contexto de
institucionalização das divergências, traduz uma vocação democrática e
participativa que pode ser condensada na expressão “reformismo
revolucionário”. A luta armada quedou na memória, à espera de
esclarecimentos, a menos que surjam graves crises não equacionáveis
dentro do Estado democrático de Direito.
A longa noite do autoritarismo provocou o surgimento de uma sociedade
civil conservadora que, na sequência, conferiu uma sustentação política
ao neoliberalismo. Contudo, o que se observa no período recente é o
amanhecer de um tempo progressista com apoio nas maiorias, em especial
nas camadas de baixa renda. O individualismo cede a vez ao solidarismo
institucional por via da recuperação das funções clássicas do Estado.
“No plano social, a inclusão só será plenamente alcançada com a
universalização e a qualificação dos serviços essenciais. Este é um
passo, decisivo e irrevogável, para consolidar e ampliar as grandes
conquistas obtidas pelo nosso povo... E este é o sonho que vou
perseguir”, reiterou com determinação a presidenta Dilma Rousseff
durante a posse em 1° de janeiro.
Politizar os conflitos
A hostilidade aos protagonistas dessas mudanças alvissareiras não se
coaduna com a razão e a vontade geral. A mídia dos patrões que
comportam-se como senhores de escravos, ao vociferar para a metamorfose
sócio-econômica que percorre as nações latino-americanas, faz-se
auto-referente, ladra em frente ao espelho. Lembrando o poeta João
Cabral de Melo Neto, é como se recitasse: “Falo somente com o que falo:
/ com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol”. Aquela
vocaliza o ódio, a intolerância, as calúnias da reação em face da
emancipação da senzala, sintetizada nos grotões brasileiros de sotaque
nordestino. Sua credibilidade desce a ladeira. Sua cólera sobe em igual
proporção, celeremente.
O projeto encarnado pelos mass (em inglês, massa) media (em latim,
meios) move-se por uma intencionalidade. Desqualificar o trabalho dos
que defendem a coisa pública para, no lugar, pôr em relevo a iniciativa
privada e a lógica do mercado, entendida como o eixo primaz da economia
e das relações sociais. Escaldados, receiam que os países que promovem
reformas exerçam um efeito demonstrativo sobre os demais. Acostumados
aos privilégios, apostam na despolitização dos conflitos e na restrição
da arena política, sem hesitar em criminalizar os movimentos sociais
por exprimirem um “viés político”. Não espanta. “Na AL, a história dos
meios de comunicação é a história de como se constituíram as
oligarquias locais e regionais... é essencialmente uma história
política, de favorecimentos a classes ou setores de classes em
detrimento de outras”, escreveu o jornalista Gilberto Maringoni no
Panorama das Comunicações e das Telecomunicações no Brasil (Ipea,
2011).
Na contramão, desenvolvem-se orçamentos participativos, conselhos
gestores de políticas públicas, mesas de concertação, mecanismos de
prestação de contas para os quais reserva-se o termo accountability.
Formas alternativas e criativas de política irrompem no palco da luta
de classes, a sociedade civil, acompanhadas de princípios éticos que
travam um embate com a gramática da mercantilização. A discussão
pública transcende a preocupação gerencial com a governabilidade e a
eficácia administrativa, trazendo a incerteza para o horizonte das
elites convencionais e, a civilização, para o presente da população. A
democracia contém uma definição de “boa sociedade” que, se generaliza
oportunidades e resultados, potencializa o controle público sobre o
Estado e aponta para o autogoverno, finaliza no socialismo. Com nuances
e ritmos diferenciados, as transformações estruturais dinamizadas pelo
projeto democrático-participativo têm como tarefa concluir duas
revoluções inacabadas, a burguesa e a socialista: haciendo camino al
andar.
É preciso inserir na agenda das organizações sociais (sindicatos,
associações, redes, etc) a denúncia contra o papel deletério cumprido
pelos veículos informativos. O boicote e o vilipêndio são momentos
táticos de uma estratégia mais ampla para barrar a democratização em
curso no território demarcado pela utopia de Simon Bolívar e João
Cândido. Trata-se de uma convocação permanente ao golpismo, frustrado
na Venezuela (2002) e no Equador (2010), bem sucedido em Honduras
(2009). Para esconjurar as tendências golpistas há que introduzir a
democracia participativa também nos mass media: “Um sistema de
comunicação social de fato democrático envolveria a participação do
povo em larga escala, refletindo tanto os interesses públicos como
valores autênticos – a verdade, a integridade, a descoberta” (Noam
Chomsky, Segredos, mentiras e democracia, 1999). Outro mundo é
possível. Outra comunicação, idem. Com a condição de que os conflitos
sejam politizados.
* Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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