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Segurança no Rio: dilemas
Publicado em 03.01.2011 - Por: Ana Lúcia Vaz, Claudia Santiago, Gizele Martins e Sheila Jacob, na Revista do Brasil Comunidades, autoridades e especialistas analisam os efeitos das ações nas favelas e o longo caminho para superar uma história de corrupção e violência policial, de capitulação para o crime e de omissão do estado No final de novembro, o Brasil inteiro assistiu pela TV à ocupação do conjunto de favelas da Vila Cruzeiro e do conjunto do Alemão, formado por 14 comunidades e cerca de 400 mil pessoas. A ação reuniu três esferas da polícia – Militar, Civil e Federal – e Forças Armadas. O motivo alegado foi a sequência de assaltos e veículos incendiados, principalmente na Avenida Brasil e Linha Vermelha. A transformação do episódio em “guerra do Rio”, em espetáculo, é criticada por especialistas. “Guerra pressupõe dois lados com poderio parecido, o que não existe”, afirma a defensora pública Maria Lúcia Pontes. Para ela, sob o rótulo de guerra se perdem limites. “Vira regime de exceção e permite-se violar qualquer coisa. Como esse espaço de exceção está localizado nas favelas, nas comunidades, os moradores desses locais não têm mais direito. Policiais podem subir atirando, arrombar casas sem pedir permissão, decretar horário para entrar e sair”, afirma. Embora a operação tenha sido aclamada como “vitoriosa” pelo governo do estado e pela mídia – e até tenha sido aplaudida por muita gente das comunidades envolvidas, parte dos moradores denunciaram abusos, agressividade e humilhações por integrantes da polícia. O número oficial de 37 pessoas mortas durante os confrontos também não bate com denúncias de moradores, que não quiseram se identificar, segundo as quais ainda havia corpos no alto do morro da Vila Cruzeiro em dezembro. Não seria de estranhar. De 2003 a 2009 foram mortas 7.854 pessoas por ação policial no Rio de Janeiro. Mais de 65% dessas mortes se caracterizam como execuções extrajudiciais, a maioria negros, jovens e favelados. Em nota, a Secretaria de Segurança relaciona o início da ação policial no Alemão com a queima de ônibus na cidade nos dias que a precederam: “Após os ataques a veículos no estado, a Inteligência da Secretaria identificou que as ordens saíam da região da Penha e do Alemão e, em tempo recorde, uma grande operação foi montada, desarticulando a quadrilha com apoio efetivo das Forças Armadas, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal”. Para o governo, os atentados são resultado da insatisfação das organizações criminosas que controlavam territórios hoje ocupados pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP): “Seria ingênuo acreditar que os traficantes não reagiriam e esta reação é a prova que o projeto vem dando certo”, dizia a nota. O antropólogo Luís Eduardo Soares, em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura, afirmou não acreditar na versão. "Não faz sentido jogar a população nos braços do governo viabilizando uma grande união”. Luís Eduardo contou que está em curso uma investigação sigilosa sobre a origem dos atentados aos ônibus e que de lá podem sair surpresas. Não é impossível que a origem esteja em disputa entre traficantes de drogas e policiais pelo valor do “arrego”, a quantia volumosa paga à polícia para que ela viabilize o tráfico. Para o cientista social Alexandre Magalhães, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, o governo aproveitou a para fazer o que queria há tempo no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro: convocar o reforço das Forças Armadas para o que chamou de guerra nas favelas. “A partir da metáfora da guerra articula-se a prática: primeiro você precisa identificar o inimigo, os traficante de drogas e, por tabela, as comunidades. Depois, um segmento da sociedade e os meios de comunicação exigem a resposta rápida. As favelas, então, se transformaram na fonte de todos os medos da cidade”, analisa. Não há mocinho A estudante de Letras Bianca Sampaio vê como positiva a ação policial. “As medidas deviam ter sido tomadas há muito tempo, pois evitaria a guerra que houve no Rio de Janeiro”. Lindomar Ribeiro, morador de São Cristóvão e porteiro num prédio da zona sul, também aprovou. “Foi uma boa resposta, eles nunca pensavam que ia acontecer. A polícia deve fazer isso em mais favelas”, opina. Ele acha que os moradores hoje estão vivendo melhor, pois é isso que vê na TV. "Dizem que agora está uma maravilha.” O economista Vinícius Marques de Oliveira, morador da zona sul, pondera: “O governo demorou. Mas ao mesmo tempo, a gente sabe que tem muito policial corrupto, então o problema não está só no morro". Mesmo assim ele acha que é possível esperar coisas boas do futuro com as UPPs. Sandra Vergete, secretária da Federação dos Professores do Rio de Janeiro, diz que a ação mostrou que "quando eles querem, eles podem", mas que houve muitas fugas e "só os pequenos foram presos”. Gabriela Gomes, mestranda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), questiona o êxito da operação policial. “A mídia diz que a violência no Rio é consequência do tráfico, e o poder público tem de dar uma resposta.” Para Gabriela, a violência no Rio e no Brasil tem relação com direitos não garantidos, como educação, saúde, moradia, lazer. “As drogas têm que ser tratadas como questão de saúde, e não apenas de segurança. Os moradores do Alemão são os que podem ter seus direitos desrespeitados pelo estado. Mas como seria se a invasão das casas em busca de drogas fosse nos apartamentos da zona sul?”, questiona. Outro ponto que tem mais de uma versão no episódio é a fuga de alguns traficantes dentro de carros da frota policial. Há os que acham que foi uma tática para evitar a carnificina que se avizinhava e começava a ser criticada na internet por militantes em defesa dos direitos humanos. Outros, simplesmente, que eles pagaram aos policiais para sair da área e se refugiar em locais como a Maré. A existência de uma associação entre polícia e tráfico é uma quase unanimidade entre os especialistas. E da insatisfação com a dividisão do butim teriam surgido as milícias, que dominam a vida de comunidades de forma mais violenta e rigorosa. Formadas por policiais, agentes penitenciários, bombeiros e até por guardas municipais, elas controlam o transporte, o comércio, a venda ilegal de terra – e até o tráfico de drogas – na maioria das favelas do Rio. “As milícias se articulam muito mais efetivamente e eficazmente do que os traficantes”, afirma o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, José Cláudio Souza Alves. “São grupos paramilitares que se articulam com o estado, estão dentro dele, são servidores da área de segurança e por isso são muito mais perigosos.” José Claudio é estudioso da ação de grupos de extermínio na Baixada Fluminense e autor do livro Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense. O professor teme a possibilidade de as milícias crescerem em áreas hoje ocupadas pelas UPPs. A entrada inicial seria através da venda de serviços como a internet. “O custo do tráfico de drogas nas favelas é muito alto. Para mantê-lo, gasta-se muito com o armamento pesado, a entrada da droga e o ‘arrego’ que é pago aos policiais.” As milícias operam com mais facilidade por fazer parte da estrutura do estado, então os traficantes perdem terreno, explica o pesquisador. Para ele, a mídia tenta passar a ideia de que há uma luta entre o bem e o mal. “O bem é a segurança pública e a polícia do Rio de Janeiro e o mal são os traficantes que estão sendo combatidos. Na verdade, isso é uma falácia. Não existe essa realidade. O que existe é essa reorganização da estrutura do crime.” UPP em debate Com a implantação gradual das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP), o governo conseguiu o apoio de especialistas respeitados na área de segurança. Para o professor da Uerj Ignácio Cano a UPP não muda a relação entre polícia e comunidades pobres de um dia para o outro "É uma relação muito conflitiva há séculos. Mas abriu a possibilidade de denúncias. Antes as pessoas eram torturadas, exterminadas, jogadas na vala. As pessoas morriam de medo de denunciar”, disse o professor em recente entrevista. Ele lembra que as polícias foram criadas no Brasil no século 19 com a função de controlar escravos e trabalhadores pobres. O rapper e cineasta MC Fiell, do morro Santa Marta, onde foi instalada a primeira UPP, chegou a ser preso por 12 policiais da unidade na madrugada do dia 22 de maio de 2010. Autor de uma cartilha sobre a abordagem policial nas favelas, Fiell realizava um evento no bar de seu sogro quando os policiais invadiram o espaço, desligaram o equipamento de som e o prenderam. “O policial tem que ir à favela para coagir o tráfico e nada mais. É preciso fiscalização civil para vigiar esses policias”, afirma o MC. Tendo esse papel fiscalizador como parte de sua missão, o grupo Visão da Favela Brasil, do qual Fiell é fundador, criou com outros grupos da comunidade a Rádio Comunitária do Santa Marta. Muitos moradores reconhecem as melhorias, mas a solução não é definitiva. “Alguns serviços passaram a ser realizados à noite. Agora, por exemplo, quando a energia acaba à noite a companhia sobe, o que antes não acontecia”, afirma André Luiz, do Morro da Babilônia, na zona Sul. “Para mim a ideia a UPP tira o poderio bélico dos traficantes, mas não acaba com o tráfico”, avalia André, o Che, para quem faltou ao programa estar acompanhado de um braço social. Valdinei Medina, da Associação de Moradores do Chapéu Mangueira, concorda. “Hoje a UPP faz um trabalho importante, mas não precisamos só de polícia. O que mais precisamos é de investimento social, como creches, hospitais etc. Temos que aguardar o que vem pela frente, e batalhar por essas melhorias”. “A UPP Social vem para consolidar o processo de pacificação, que é iniciado com a retomada do território dominado por grupos armados ilegais”, diz Silvia Ramos, subsecretária estadual de Integração de Projetos Sociais da Secretaria de Ação Social. Para Silvia há o risco de as UPP se limitarem a uma pequena região da cidade. Para a subsecretária, enquanto a UPP não se consolidar em escala razoável será é um projeto em risco, porque o policial que está lá pode acabar se degradando sob a pressão do crime. “Os grupos armados ilegais ou milicianos saem dessas áreas e ficam pressionando as comunidades, tanto na lógica das armas como da venda das drogas”, afirma. A meta da Secretaria de Segurança é chegar a 40 Unidades de Polícia Pacificadoras até 2016. “Com 40 UPP você dá conta”, acredita Silvia. “O objetivo é mudar um aspecto específico da violência no Rio. Chama-se controle armado de território.” Também não é política de combate ao tráfico. “A lógica de que pra vender drogas tem que controlar território é carioca, fluminense agora. Você não vê isso em Recife. Não vê isso na Bahia, onde estão as piores taxas de violência do país”, explica Silvia. Ou seja, segundo ela “a UPP é um projeto que tem foco territorial” e vem para “quebrar a cultura de que se vendem drogas controlando território”. É neste aspecto, da mudança de cultura, que as UPP Sociais pretendem atuar. “Não é um projeto de combate à pobreza ou de desenvolvimento social, apenas. Se fosse, não estaria focado nas favelas, porque há regiões mais pobres no estado", argumenta. As UPP Sociais atuam organizando fóruns para estabelecer canais de diálogo entre os moradores da favela e o estado, a iniciativa privada e a sociedade civil. “A ideia é consolidar essa lógica de que a favela é continuação da cidade. Não é outra cidade.” Esse é um grande desafio para comunidades acostumadas, por décadas, a uma relação com o poder público que oscilou entre o conflito e o clientelismo. Silvia reconhece a dificuldade. “O poder público e os moradores não estão acostumados a ter uma relação de igual para igual. Por isso, os dois lados têm que mudar. A gente está criando fóruns onde a interlocução é entre os moradores e líderes locais com os gestores públicos”, explica. Também há um esforço de qualificar as demandas da favela através da produção de diagnósticos e mapeamentos que contem com a participação efetiva dos moradores. A expectativa dos idealistas da UPP social é que a própria comunidade conquiste autonomia e poder para se defender do assédio dos grupos armados. Enquanto ela não for capaz de “se comunicar direto com a cidade, com os meios de comunicação, com os poderes públicos, vai precisar ter polícia lá.” Mas essa integração passa diretamente pelo mercado. O que torna real o risco de uma “remoção branca”, nas palavras da própria subsecretária. “Estamos atentos a isso!”, garante. As medidas incluem formação empreendedora para os donos das biroscas e outras formas de apoiar a integração dos atuais moradores à economia formal. A tese de que os grupos armados atuam na ausência do Estado é simplista, na visão da subsecretária. Para ele, ao contrário, é a presença de grupos armados que torna ineficiente ou inviável a presença do poder público. “Você pode ter o melhor trabalho social, enquanto tiver garoto armado de fuzil tomando conta da favela, vai haver altas taxas de homicídio, injustiça e crueldade. E uma regulação da vida privada extremamente perturbada por aquela presença”, avalia Silvia. “Como pesquisadora, eu sempre fui muito crítica à polícia, mas eu estou tendo que reconhecer: quando entra a polícia e tira essa garotada armada – ou esses homens de arma que são os milicianos – dá um alívio, cria outra ambiência pra chegada dos serviços públicos.” Silvia oferece exemplos: se o marido bate na mulher, ela não pode nem dar queixa, porque o tráfico não admite. Para ela, no estado de guerra em que essas comunidades viviam efetivamente, a ação do poder público só podia ser deficiente, parcial ou inexistente. Leia mais: Segurança no Rio: três dias no Alemão e Vila Cruzeiro Segurança no Rio: moradores querem influir nas decisões do NPC Segurança no Rio: entrevista com Itamar Silva, morador atuante da comunidade de Santa Marta
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