Cinema
Tropa de Elite 2: o "inimigo" pode ser outro, mas as vítimas continuam invisíveis
Por Rede Contra a Violência
Tropa de Elite 2, a sequência do filme de 2007 de
José Padilha, tornou-se em poucas semanas o filme brasileiro que atingiu a
maior audiência de todos os tempos (quase 11 milhões de espectadores).
Entretanto, mais do que um fenômeno cultural, este é um fato social e político que
reflete graves processos que estão se desenvolvendo na sociedade.
A Rede Contra a Violência foi convidada pelo jornal Brasil de Fato a
contribuir com uma crítica ao filme, para ser publicada numa matéria mais
abrangente do jornal, com várias outras contribuições. O artigo que se
segue é fruto de nossa discussão coletiva feita a partir deste convite, e divulgamos
com autorização dos companheiros do jornal. ******
Muitas
críticas e avaliações têm considerado a seqüência do Filme “Tropa de Elite”
muito superior, em termos de suscitar uma reflexão questinadora, do que o
primeiro filme. Afinal, em TE2, os grupos paramilitares (incorretamente
chamados, no Rio, de “milícias”) e, mais geralmente, a corrupção política e
policial, aparecem como um problema (um “inimigo”, na terminologia militarizada
do filme) bem mais grave que o tráfico de drogas, e o movimento por direitos
humanos aparece de forma bem mais favorável que em TE1 (onde “defensores de
direitos humanos” eram “estudantes esquerdistas maconheiros amigos de
traficantes”), embora reduzido a apenas um indivíduo.
Contudo,
para nós da Rede contra a Violência, que entendemos que o foco da luta dos
direitos humanos não é o combate à corrupção (por mais que isso seja
importante), e sim a defesa intransigente da humanidade e dos direitos, sempre
desrespeitados, da população pobre das cidades e do campo, “Tropa de Elite 2”
continua com a grave lacuna também presente no primeiro filme: as principais
vítimas do sistema de violência e criminalidade, as moradoras e moradores das
comunidades pobres, estão literalmente ausentes do enredo, são no máximo
figurantes, e na maior parte das vezes apenas cenário. Os moradores das favelas
(não a minoria de traficantes, que também são em sua grande maioria pobres, mas
a grande maioria sem ligações com o crime) no filme não falam, não agem com
autonomia e nem mesmo morrem! É impressionante como, nos dois
filmes, não há nenhuma cena de abuso policial, ofensa, agressão ou assassinato
de moradores por policiais em serviço, embora esses fatos sejam
parte do cotidiano trágico das comunidades.
Mais
ainda, não existem personagens no filme que representem a importante
resistência popular, que apesar de tudo se constrói na luta das vítimas e
familiares de vítimas da violência, juventude favelada e periférica que se
organiza no movimento hip hop e outras expressões político-culturais, pré vestibulares
comunitários, etc. Sem esses personagens, e apresentando como os únicos pobres
que têm alguma fala e protagonismo, os traficantes de drogas, TE2, do mesmo
modo como o primeiro filme, contribui para reforçar o poderoso preconceito que
associa favela a crime e favelado a bandido, mesmo que não tenha sido essa a
intenção do diretor e dos roteiristas.
Essa
lacuna não é um aspecto secundário, mas um aspecto central no desenrolar do
enredo, que dessa maneira não tem como criar uma empatia do público com o sofrimento
e e resistência dos seres humanos envolvidos nos processos sociais de
fundo, portanto não tem como chegar a uma compreensão mais elaborada das
reais motivações disso que se chama “lutar pelos direitos humanos”. O próprio
Capitão Nascimento não evolui em sua crise pessoal devido ao arrependimento ou
remorso por seus métodos e pensamentos brutais, mas simplesmente por decepção
com a instituição policial em que confiava apesar de tudo. A reflexão de
caráter social bastante avançada presente nas palavras finais do desiludido
militar, aparece assim como um discurso fora do contexto, compreensível apenas
para “iniciados” (militantes populares ou intelectuais progressistas), mas que
para o público médio deve soar apenas como pessimismo total.
E
assim, surpreendentemente, verificamos que os “heróis” de TE2 continuam a ser
no fundo os mesmos do primeiro filme: os policiais brutais, fascistas, porém
“honestos”, do BOPE. De todos os personagens principais, somente
Nascimento e Matias são indivíduos plenamente “morais”, que não se preocupam
com cargos, carreira, dinheiro ou fama, mas somente com sua “missão”. A idéia
fascista da “limpeza” da sociedade por militares violentos porém incorruptíveis
não sofreu na verdade nenhuma crítica nos dois filmes. E contribuiu para isso
outra lacuna grave do enredo. Como se sabe, TE1 (e em menor parte TE2) foi
inspirado numa obra literária de valor informativo, o livro “A Elite da Tropa”,
que busca contar a história do BOPE e tem como uma das principais revelações
a existência de uma trama no interior do batalhão (na época chamado NuCOE,
depois COE, depois CIOE) para assassinar o governador Brizola, por
ser um esquerdista que impedia a aplicação dos métodos brutais no combate à
criminalidade nas favelas.
O
NuCOE surgiu em 1978, ainda sob ditadura militar, fruto de projeto elaborado
pelo tristemente célebre Paulo César Amêndola de Souza, oficial da PM
comprovadamente envolvido em órgãos onde se praticaram torturas nos anos 70.
Depois de ser o idealizador do BOPE, foi o criador e comandante da Guarda
Municipal do Rio (1993) e depois da unidade “anti-terrorismo” da Secretaria de
Segurança criada por Josias Quintal em 2001. Será que “Tropa de Elite 3” vai
finalmente abordar esse lado esquecido do BOPE, e as sinistras relações
entre repressão política e social e o suposto “combate à criminalidade”?
[Rede
de Comunidades e Movimentos contra a Violência]
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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