Por NPC
O mercado sobe o morro
Para Itamar Silva, morador atuante da comunidade de Santa Marta, favela é gente, é cultura, é história, e são as tensões. “Não é cidade cenográfica” Por: Ana Lúcia Vaz Coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e do grupo Eco, criado em 1976, Itamar Silva nasceu e mora na favela Santa Marta, na zona sul do Rio de Janeiro. Desde os anos 1970 participa dos movimentos sociais e chegou a ser presidente e diretor da Associação de Moradores ao longo da década de 80. De fala calma e comedida, só altera o tom ao comentar o Jeep Tour, que leva turistas para visitar a favela: “Coisa meio de zoológico, com a qual eu tenho uma implicância absoluta!” Nesta entrevista, ele observa que a discussão da UPP Social – de prever a elaboração sistemática de políticas públicas que satisfaçam as demandas das populações dos morros historicamente abandonados pelo Estado – é uma contribuição das comunidades. Por intermédio de sua pressão organizada, a política das Unidades de Polícia Pacificadoras deve evoluir para algo que efetivamente funcione na construção da paz nos ambientes dominados pela violência, dos bandidos e da polícia. Houve alguma mudança no perfil da mobilização comunitária com a chegada da UPP no morro Dona Marta? Quando você quer fazer um trabalho com autonomia, a tensão é permanente. Com o tráfico e com a polícia. Se você quer trabalhar a cidadania dos moradores de favela, o direito de expressão, você vai bater sempre nas regras estabelecidas. A mídia diz que a postura da comunidade mudou, está mais colaborativa com a polícia. Existe mesmo essa mudança? Eu acho que é uma perversidade com os moradores, nesse momento, você usar e maximizar isso. Eles pegam depoimentos de apoio à polícia e apresentam como um marco de apoio e colaboração absoluto com a polícia. Eu desconfio disso. O morador nunca teve rejeição à polícia. Ele convive com a dinâmica do tráfico, e percebe que a polícia, ao longo dos anos, fortaleceu essa dinâmica. O tráfico não é o grande mal. O mal é essa dinâmica, em que a polícia é parte dela. Mas houve mais colaboração, na invasão do Complexo do Alemão. Eu não tenho elementos para falar do que acontece no Alemão. Minha hipótese é que, dessa vez, convergiram para o Alemão muitos traficantes que não eram dali. Então o medo fica muito maior. E, ainda vendo pela televisão a construção de um cenário de carnificina, o morador ficou refém desse medo. Eu imagino que quem mora lá dentro não tinha certeza se ia sobreviver. Então, você diz “amém” para qualquer coisa que venha para estabelecer uma ordem, um cotidiano. Por isso esse apoio mais explícito à polícia. Isso não significa apoio incondicional. A história da polícia na favela, de desrespeito a direitos, é muito longa. Não existe mágica para, de uma hora para outra, os moradores acharem que a polícia é solução. Mas morador também quer segurança. Então, se a polícia promete essa segurança, e não houve a carnificina que se anunciava, o morador tem que apostar nisso. Se não, qual a alternativa? Mas há muitas denúncias de abuso da polícia por lá. No Santa Marta, vocês fizeram uma Cartilha sobre Abordagem Policial. Parece um problema comum. A Cartilha foi muito importante. Uma iniciativa do Fiell (rapper e cineasta), que o grupo Eco apoiou. Chamava a atenção dos moradores para o fato de que a gente tem direitos, como cidadãos, que devem ser respeitados pela polícia. Tinha a ver com a forma de o policial se dirigir ao cidadão, de fazer a revista, trazendo esse debate do direito para dentro da favela. Claro que a polícia ficou meio pau da vida com isso. Mas foi interessante porque jogou luz sobre a importância da forma de a polícia se comportar na favela. Não há como ter um policiamento constante na favela sem tensão. Porque a festa, a juventude, a vida não estão subordinados à lei do quartel. Essa tensão é parte do processo, mas diminuiu bastante. E a UPP Social? No Santa Marta, ainda não entrou. Como foi a primeira, tem uma enxurrada de projetos que chegaram lá. Eu acho que a UPP Social é uma resposta à crítica que a gente fez muito fortemente, no início da UPP. Junto com outras favelas, começamos a fazer uma discussão sobre qual é o papel da polícia, porque eles estavam juntando tudo no mesmo saco. Só que a polícia não é assistente social. A pressão foi pra tirar o social desse guarda-chuva. A UPP Social foi uma resposta a isso. E você concorda que onde não há UPP é difícil a atuação do Estado? É mentira. O Estado está presente nas favelas desde a década de 80. Só que está de forma fragmentada, desarticulada, clientelista e descontinuada. Pode ser que, agora, o Estado queira entrar sem negociação. Mas o Estado sempre entrou e negociou com o tráfico. Isso é duro de dizer, mas é isso. E, de certa forma, fortaleceu o poder do tráfico nesses territórios. Quantos candidatos aceitaram que o tráfico fechasse o morro pra eles? Em algumas favelas ocupadas, fala-se no risco de exclusão dos pobres desses territórios. Acho que é uma ameaça real. Qual é a política para as favelas? Controle e redução do território. O Santa Marta é um exemplo acabado dessa política: isolamento, controle, delimitação e redução do território. Se você junta isso ao que eles estão chamando de formalização da favela... Em dezembro de 2008, entra a UPP no Santa Marta e a primeira iniciativa é construir o muro “para a favela não invadir a mata”. Depois veem as câmeras de segurança. Agora, o projeto de urbanização prevê a remoção de parte dos barracos que estão na parte mais alta do morro para fazer um parque florestal. E, finalmente, a formalização. Acabaram com o gatonet e a Sky está vendendo a rodo, porque sem uma assinatura (de TV a cabo) o sinal é muito ruim. A Light aproveitou a carona. Em Janeiro de 2011, os moradores começam a pagar a energia elétrica, que é uma das tarifas que mais subiram nos últimos anos. Daqui a pouco chega o IPTU. Agora, está-se tentando tirar da informalidade o comércio local, as biroscas que estão lá há décadas. Eu não sei até que ponto moradores e comerciantes vão suportar a pressão. Entra a UPP e entra o mercado. É essa a lógica. A ideia é que “os pobres têm direito ao mercado”. Não sou contra a formalização, contanto que você crie mecanismo para manter o morador lá. Não existe essa discussão. Porque a lógica é jogar para o mercado: o mercado resolve. E as atividades culturais que estão entrando? Isso é um outro dado. Por exemplo, um bloco do Leblon chamado Espanta Neném aluga a quadra da escola de samba, uma vez por mês, para um evento chamado “Morro de Alegria”, patrocinado pela Ambev. Levam artistas de nome, como Martnália, Dicró... Vem gente de tudo que é lado. Só classe média! Não tem ninguém do Santa Marta. Mas o apelo é o Santa Marta. Aí eles dizem: “Não, a gente quer fazer trabalho social também”. Na verdade é um tipo de negócio, um uso da imagem da localidade para expandir a lógica do mercado. Isso é água de morro abaixo, você não segura. A minha preocupação é a favela cenográfica. A favela, pra mim, é gente, é cultura, é a história, são as tensões. De repente você vai ter um cenário, sem conteúdo. Você coloca qualquer coisa por cima.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
—
Voltar —
Topo
—
Imprimir
|