Após
mais uma onda de violência na cidade do Rio, o Brasil se
deparou com um espetáculo deprimente de suas mazelas sociais e humanas.
Após traficantes desceram ao asfalto, promovendo assaltos e queima de
veículos, por razões ainda pouco esclarecidas, novamente a cidade se
viu em pânico. Situação inflada pela cobertura espetacularizada da
grande mídia, que por sua vez endossa sem parar as políticas
fracassadas de mera repressão à ponta pobre do tráfico, isto é, nos
morros.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, a socióloga Vera Malaguti, secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC),
criticou duramente os governos estadual e federal, especialmente em
relação à entrada das forças armadas na questão, de legalidade
questionável. "Tudo é ilegal aqui. Estamos vivendo em regime de
exceção", afirmou, referindo-se também às violências cometidas contra
moradores inocentes das áreas invadidas pelas forças oficiais.
Para
ela, tal processo é parte de uma política de ocupação de áreas pobres,
idealizada pelos EUA há décadas, que visa também garantir um controle
militarizado da vida das pessoas, além de abrir caminho para "os
negócios transnacionais e olímpicos".
Malaguti
questiona firmemente a política de segurança do governo Cabral, por
considerar as UPPs - Unidades de Polícia Pacificadora - e toda a recente
operação mais uma ação de marketing, baseada nas mesmas políticas de
repressão sem investimento social, amplamente fracassadas. "Estão
ocupando a cidade. Para que fluam os grandes negócios transnacionais e
esportivos. Para que as pessoas possam fruir sem serem incomodadas pela
nossa pobreza".
A
entrevista completa, na qual Vera não poupa nem o ex-secretário Luiz
Eduardo Soares ("ele é um pouco responsável pela glorificação do BOPE
como solução"), cujas análises foram elogiadas por setores
progressistas, pode ser conferida a seguir.
Correio
da Cidadania: O apaziguamento do clima de guerra que se instalou no
Rio, a partir da colaboração do Exército e da Força Nacional de
Segurança na expulsão dos traficantes do Morro do Alemão, levou a um
clima de euforia entre a população, seguido pela maior parte da mídia.
Como encara, nesse sentido, as ações imediatas que foram tomadas pelo
governo nos últimos dias para controlar a crise? Vera Malaguti: Estranhei
muito. Eu penso que a euforia foi fruto de uma campanha midiática.
Gosto de falar com base em evidências, mas desde o início considerei
muito estranhos os acontecimentos. Comparando com aquela vez em São
Paulo, em 2006, quando a cidade parou, na hora em que o governo decidiu
mobilizar as forças armadas, ainda se teve uma meia dúzia de carros
queimados, mas nenhuma vítima.
Tudo
foi engatilhado de um jeito que pareceu muito estranho. Se formos ver a
análise da mídia, como a da Folha, que dessa vez foi mais crítica,
vê-se que existia uma combinação com a Rede Globo, tanto que na véspera
eles anunciavam o ‘Tropa de Elite 3’, e no dia seguinte transmitiram
aquilo o dia inteiro.
Diante
do que acontecia, creio que a reação foi desproporcional em relação ao
ocorrido, e aí não entendemos de fato como foram as coisas. Seriam 600
homens, ou não? As apreensões mostradas também não fazem muito sentido,
porque o envolvimento das forças armadas em tais situações é muito
questionado no mundo inteiro.
Os
EUA, por exemplo, proíbem suas forças armadas de trabalharem como
polícia. No entanto, estimulam muito que as forças armadas latinas
entrem nesta guerra perdida, como no caso do México, grande exemplo
disso.
Desde
94, quando da operação Rio 1, as conversas com o Comando Militar do
Leste sempre receberam a recusa das forças armadas brasileiras, por ser
algo perigoso. Da mesma forma que a polícia se desmantela nessa guerra
sem fim, as forças armadas, que na verdade são responsáveis pela nossa
soberania, poderiam passar pelo mesmo. Atirá-las nessa guerra perdida é
uma aventura. As forças armadas norte-americanas não entrariam nessa
jamais.
Portanto,
creio que foi um ato midiático, como tudo que é feito pelo governo do
estado do Rio de Janeiro. Só que desta vez o governo federal embarcou na
aventura, a meu ver de forma muito irresponsável, correndo o risco de
colocar as forças armadas brasileiras num impasse geopolítico.
Correio
da Cidadania: Mas no momento específico, e diante da dificuldade da
polícia carioca no enfrentamento frontal ao tráfico dos morros, a
presença do Exército, assim como da Marinha e Aeronáutica, não seria
necessária como medida emergencial? Vera Malaguti: Em
2006, em São Paulo, aconteceu algo muito mais grave, muito mais
profundo, e as forças armadas nem foram cogitadas. Quando entraram,
tinha-se meia dúzia de carros queimados e nenhuma vítima. Na França, é
normal queimarem 300 carros num protesto, e o exército francês nunca
entrou pra interferir. E nunca considerou esses atos terrorismo, e sim
manifestação.
Acho
que tudo faz parte de uma escalada do modelo norte-americano de
ocupação. Inclusive saiu uma entrevista do ministro (da Justiça, e
futuro governador do Rio Grande do Sul) Tarso Genro no Página 12, da
Argentina, na qual os jornalistas se assustaram com as declarações
dele, pois tinham um jargão bélico constante.
Ao mesmo tempo, é um modelo fracassado, pois os EUA estão perdendo a guerra no Iraque nessa acepção.
Correio da Cidadania: Fracasso da guerra às drogas também. Vera Malaguti: Exatamente.
A guerra às drogas já virou um mico mundial. Portanto, essa escalada
do Rio de Janeiro me parece fazer parte do processo que mencionei. Já
tivemos a chacina do Pan, também no Alemão (em 2007). É algo muito midiático, e
também perigoso, por ser uma escalada bélica.
E
agora, miraculosamente, acabou tudo, está tudo calmo. O que acontece no
Rio de Janeiro de verdade? Acho que ainda faltam elementos para
afirmarmos algo com responsabilidade, mas me pareceu tudo muito rápido e
alinhado à Globo. Parecia tudo parte dos efeitos Tropa de Elite. Tanto
que na véspera do ‘Dia D’, a manchete do O Globo era ‘Tropa de Elite
3’. E depois houve aquela cobertura toda, enquanto do lado de lá se
viam escombros, tanto que houve várias comparações com Canudos.
E o day after é aquilo que a gente conhece sempre, a história de invasões da polícia às comunidades faveladas.
Correio
da Cidadania: Na invasão do Alemão, em 2007, durante o Pan, foi a
mesma coisa, e nem o tráfico de drogas, nem o controle armado do
território por criminosos foram, no entanto, até hoje eliminados. Pelo
contrário, estamos novamente diante do mesmo morro, agora com uma
ocupação ainda mais extensa, a partir da participação direta da Força
Nacional de Segurança, da Polícia Federal, do Exército, Marinha e
Aeronáutica. Trata-se da persistência inócua e equivocada de uma
política de ocupação, não? Vera Malaguti: Sim.
Os moradores sendo humilhados, torturados, tendo suas casas roubadas,
reviradas, aquilo que a gente conhece. Agora com o agravante da
glorificação de uma polícia militarizada, um efeito perverso que
enxerguei nos filmes Tropa de Elite, e que me parece formar esse todo,
de glorificação da força militar.
O
saudoso coronel Carlos Magno Nazaré Teixeira, assassinado em 99,
policial militar com formação humana, profunda, crítica, escreveu um
artigo intitulado ‘A remilitarização da segurança pública’. É, de fato,
um processo. O Brasil aderiu agora; e, surpreendentemente, a partir do
governo federal.
Correio
da Cidadania: Esse cenário não tem sido construído, com a ajuda da
mídia, como forma de criar uma legitimação para a Copa e as Olimpíadas? A
força militarizada não serve pra sufocar os gritos contrários? Vera Malaguti: Com
certeza. Além disso, abrir caminho também para os grandes negócios
transnacionais. Crime organizado é isso aí. Esses negócios olímpicos e
transnacionais fazem parte da estratégia de ocupação das áreas pobres. É
mais um capítulo dos ‘muros ecológicos’, ‘paredes acústicas’, que vão
murando e isolando as áreas pobres. Depois, as pessoas falam que é uma
alternativa. Não, não é uma alternativa ao modelo, e sim seu
aprofundamento, chegando agora na ocupação militarizada das favelas.
Eu
chamo de gestão policial da vida. Pra fazer uma festa tem que pedir
autorização. Por isso, creio estarmos diante de um projeto de ocupação
militarizada nas áreas de pobreza do Rio de Janeiro, com uma cobertura
vergonhosa da grande mídia.
O
Loïc Wacquan escreveu artigos como ‘Punir os Pobres’, ‘A Penalização da
Miséria’, mas um em especial chama a atenção: ‘Da Penalização à
Militarização’. Durante esses dias, ele me mandou uma mensagem
perguntando isso: "Vera, estou vendo tudo pela TV. É aquilo mesmo, da
penalização à militarização?". Acho que é exatamente isso. Demonizam-se
algumas atividades em certas regiões, depois se criminaliza e se entra
com tudo no lugar em questão. É o que também chamamos de indústria do
controle do crime, é uma modalidade de economia. As próprias forças
armadas, em parte, resistem a isso.
Mas
como parece que nosso ministro da Defesa gosta de trocar inconfidências
com ministros americanos, como vazou o Wikileaks, vimos que os EUA
queriam saber se o Rio de Janeiro poderia sofrer terrorismo e que lhes
interessava vender-nos tecnologia para tal combate.
Correio da Cidadania: Não só vender equipamentos, como até editar uma lei antiterrorismo, como também foi vazado. Vera Malaguti: Tudo
o que acontece são tecnologias de guerra sendo vendidas. Os jornais
mostravam os blindados, a polícia dizia que gostava... Enfim, estamos
comprando as sucatas das derrotas dos EUA no Iraque e no Afeganistão.
Correio
da Cidadania: De Israel também, haja vista que o Brasil, e
especialmente o Rio, é um grande cliente dos israelenses no mercado de
armas, não? Vera Malaguti: Certamente.
Israel é o grande parceiro das vendas de serviços e tecnologia nessa
área. Mas antes é preciso construir o discurso do inimigo, o que o
grande jurista argentino Zaffaroni chama de ‘direito penal do inimigo’.
As garantias vão sendo suspensas, prendem-se os familiares, advogados.
Ou seja, estamos vivendo no Rio um Estado de Exceção. Não vi nenhum
morador dessas áreas aplaudindo. Como também nunca vi morador elogiar
UPP, apenas vejo a mídia dizer que eles aprovam. Na cobertura do day after, só vi morador se sentindo humilhado, violentado, esculachado, roubado... A história de sempre, desde Canudos. Não sei se o nome adequado é fascismo ou farsismo.
Correio
da Cidadania: Já vêm soando rumores de que o Exército poderia
permanecer nas áreas conflagradas por tempo maior que os cerca de 8
meses inicialmente cogitados, fincando suas bandeiras nessas áreas até a
Copa do Mundo. Ao lado do comentado risco de contaminação do Exército
pelo tráfico, uma permanência tão estendida é a prova cabal da política
de militarização imposta pelos EUA, não? Vera Malaguti: Eu
acho um perigo para a soberania nacional colocar as forças armadas
nessa guerra perdida. E digo mais: não me parece que a situação do
Haiti seja bonita, onde nossas forças armadas comandam uma ocupação.
Como está lá? Nossas forças armadas vão se transformar em polícia de
contenção de pobreza absoluta? Eu acho uma tristeza, além de um
precedente perigoso.
E
tem ainda o circo das ONGs: a Viva Rio, que aqui no Rio é chamada de
‘Viva Rico’, esteve lá no Haiti. Vai participar aqui também? Tirar
as forças armadas de seu papel, de garantir a soberania nacional, é o
sonho dourado dos EUA. As forças armadas deles não entram jamais numa
empreitada dessas, mas eles recomendam a todos os outros que o façam. O governo Lula aderir a isso é uma vergonha.
Correio da Cidadania: Sem contar a sensível questão acerca da legalidade de tal atuação, muito questionável. Vera Malaguti: Tudo
é ilegal aqui. Estamos vivendo em regime de exceção, tudo é ilegal.
Desde a inviolabilidade do lar até a gravação das prisões de advogados,
fora outras coisas que já citamos. E a
OAB do Rio já apoiou a operação desde o começo. Em vez de ficar na
trincheira de luta, observando se as garantias constitucionais estão
sendo levadas em conta, já entrou apoiando, como também o fez na
operação de 2007 no Alemão. E a atuação da grande mídia...
Correio da Cidadania: Parece que estão transmitindo mais uma atração dominical. Vera Malaguti: Exatamente. E com a glorificação da truculência, da militarização. É de fato a glorificação da figura do Capitão Nascimento.
Correio
da Cidadania: Fora o massacre ideológico, com as mesmas figuras
defendendo por horas e horas todas as ações, com as mesmas idéias de
sempre, que, como você já disse, só acumularam fracassos. Vera Malaguti: É
uma cobertura que serve muito mais para as pessoas não entenderem o
que acontece. E, no final, os resultados são pífios. Cadê os 600
homens, cadê as armas? Aparece uma bazuca aqui, outra ali... Sinceramente,
acho que, se olharmos bem, vamos ver que as forças armadas, polícias
civil, militar, fizeram um fiasco, prendendo um monte de pé rapado. Não
há novidades no front.
Correio
da Cidadania: Qual a sua avaliação quanto à política das UPPs no Rio
de Janeiro, tanto no que se refere ao conceito e objetivos que lhes dão
sustentação, como à forma pela qual vêm sendo conduzidas? Vera Malaguti: É
parte de todo esse jogo. É uma obra de arte midiática, uma peça de
marketing. O governador do Rio é expert nisso. O Rio tem o maior
investimento em segurança pública e está em penúltimo no ranking da
educação de todo o país.
Se
pegarmos o que o governo do estado investe em marketing... As UPPs são
mais uma peça publicitária, parte dessa militarização da segurança
pública, por se tratar de uma ocupação militar, na qual os moradores
são obrigados a se submeter a tudo, até a pedir permissão pra fazer uma
festa. Além de significar a glorificação da gestão policial da vida -
dos pobres, é claro.
E a
prefeitura, cujos integrantes participam do mesmo projeto político,
entra com o Choque de Ordem, que busca tirar todas as estratégias de
sobrevivência dos pobres na rua. Mas, ao mesmo tempo, as ruas do Rio
são invadidas por empresas transnacionais. Portanto,
o camelozinho pobre não pode botar suas bugigangas na Vieira Souto.
Mas no fim de semana retrasado um laboratório francês, enorme, estava lá
com container, fazendo exames de câncer de pele e distribuindo filtro
solar.
Correio da Cidadania: Fazendo exames e, claro, uma belíssima ação de marketing. Vera Malaguti: É.
A empresa pode. Mas as estratégias de sobrevivência dos pobres,
criadas pelo povo, não. Essas são demonizadas e criminalizadas. Agora, a
ocupação militar. Uma vergonha. Mesmo com todas as críticas que tenho,
nunca esperava um papelão desses do governo federal, que entrou na
jogada.
Correio
da Cidadania: O sociólogo Luiz Eduardo Soares adverte que sem ir à
raiz da relação promíscua entre policiais e traficantes as UPPs não têm
chance alguma de sucesso, visto que seriam contaminadas pelo mesmo
esquema de corrupção. Vera Malaguti: É, pode ser, mas o Luiz Eduardo Soares é um pouco responsável, é o criador do Capitão Nascimento, o novo herói nacional. Tenho
uma posição muito crítica em relação à produção do Luiz Eduardo Soares.
Ele é um pouco responsável pela glorificação do BOPE como solução. Mas
ele alterna também. Está esperando a polícia ficar limpa no
capitalismo... Vai ter que esperar um bocado.
Ninguém
está limpo no capitalismo, mas quem está menos limpo é a sociologia
fluminense, que está toda inserida no mercado, nossa! Na cobertura,
apareciam todos apoiando a operação. Inclusive ele, na última
entrevista, disse: "sou a favor da repressão, mas...". Portanto,
tenho uma visão muito crítica a ele especificamente, pois acho que os
Tropas de Elite 1 e 2 tiveram esse efeito perverso. Tanto que o ápice do
2 é a tortura do político corrupto. E a tortura é a estrela dos dois
filmes. Por isso, acho-o muito responsável pelo que culminou com o
Globo chamando toda a história de ‘Tropa de Elite 3’.
Correio da Cidadania: Mas o que pensa dessa relação promíscua
entre policiais e traficantes, assim com de seu impacto sobre as UPPs? Vera Malaguti: Acho
que o proibicionismo, a política criminal de drogas dos EUA, à qual
aderimos desde a ditadura, produz esse resultado, razão pela qual as
forças armadas não podem entrar, pois vão se desmantelar. Não
é um problema moral, e sim de escolha política que se faz. Quanto mais
repressão, maior custo. E políticas que não legalizam o segundo emprego
do policial, jogando-o na ilegalidade, só contribuem ainda mais. Não é uma questão moral das polícias, mas uma questão econômica, dentro de um capitalismo selvagem.
Correio
da Cidadania: O mesmo sociólogo há algum tempo tem ressaltado que o
tráfico armado, tal qual se apresenta hoje, é um modelo em processo de
extinção - não devido à existência das UPPs, mas em função de sua
estrutura pesada e custosa, tendente, portanto, a caminhar para formas
mais sofisticadas de crime organizado. As milícias tão preponderantes
hoje no Rio, cujos membros são em grande parte policiais, seriam uma
dessas modalidades mais ‘atualizadas’ do crime organizado. Diante do
que se viu no Rio, você comunga dessa avaliação, de que o tráfico
armado nos moldes atuais esteja realmente em extinção no Rio? Vera Malaguti: Acho que ainda não tenho, nem ele, elementos para afirmar isso. Pierre Bourdier criticava muito o que chamava de fast thinker.
Aqueles caras que a grande mídia sempre procura. Pode ver que a grande
mídia procura sempre os mesmos. É uma penca, não vou citar nomes. Pra
você dizer algo assim, tem que se fazer uma pesquisa, se aprofundar, mas
para a Globo News eles sempre sabem tudo já na hora dos
acontecimentos.
Eu sou uma slow-thinker. Não tenho elementos para confirmar essa teoria ainda.
Correio
da Cidadania: Mas, de toda forma, as milícias têm sido um braço
fortíssimo do crime organizado, até com mais tentáculos, e sem
combatê-las não vai adiantar absolutamente nada, no final das contas,
eliminar somente os comandos tradicionais. Vera Malaguti: Claro.
Estranhamente, o governo estadual resolveu combater somente uma das
empresas do comércio varejista de drogas. Qualquer pessoa com o mínimo
de inteligência, conhecendo o mercado, sabe que em caso de se partir
pra cima de alguém em seu espaço, retirando-o de lá, tal espaço será
ocupado por outra empresa. Mais uma vez, todo esse aparato foi pra cima
de uma das empresas. Estranhamente, as outras (milícias) têm uma
relação maior com a polícia. Natural.
Houve
um momento em que todo mundo dizia que as milícias eram autodefesa ao
narcotráfico. Deu no que deu. As milícias cresceram, primeiro sendo
glorificadas, e agora fica tudo meio embolado.
Correio
da Cidadania: O que pensa sobre o modelo de polícia hoje existente?
Quais seriam, a seu ver, as políticas públicas e medidas que, a médio e
longo prazos, realmente incidiram sobre este modelo de modo a enfrentar
o tráfico e a violência em uma cidade como o Rio de Janeiro? Vera Malaguti: Primeiramente,
acabar com o proibicionismo, ou seja, a política proibicionista
norte-americana. E, claro, as velhas políticas públicas: escola pública
de tempo integral, saúde, enfim, todo o universo da agenda que
perdemos, porque agora nossa agenda é só segurança pública, ela vem na
frente de tudo. Em
terceiro lugar, o protagonismo da juventude popular, pois uma das coisas
que a criminalização das estratégias de sobrevivência faz é também
criminalizar a potência juvenil, popular, transformando-a em
bandidagem.
Precisamos
recuperar os movimentos políticos que dão potência e protagonismo à
juventude popular. E não demonizá-los, criminalizá-los e agora
aniquilá-los.
Correio da Cidadania: E o que pensa sobre o atual modelo de polícia? Vera Malaguti: É
o mesmo de sempre. É a história da polícia do Brasil. Começou para
erradicar quilombos e assim continua. Erradicando e ‘pacificando’
quilombos. Não mudou nada.
Correio
da Cidadania: Para evitar questionamentos quanto à política salarial e
ao orçamento público, o governo faz a citada vista grossa para várias
‘ilegalidades’, como os bicos feitos por policiais de modo a incrementar
seus ganhos - bicos que, em função do mencionado ‘proibicionismo’,
estão na raiz do tráfico e da formação de milícias. Diante desse
cenário todo, seria possível lidar com a situação atual, de modo a que a
raiz da degringolada fosse de fato enfrentada, sem um novo enfoque
para as políticas públicas, e sem, ademais, um novo olhar para a
cidade? Vera Malaguti: O
Luiz Eduardo, por exemplo, gosta de vender modelos de segurança. Acho
que o modelo de segurança é algo que precisa ser construído
coletivamente. E utopicamente também. Toda
cidade que precisa de muita organização policial tem algo de muito
errado. As cidades seguras são aquelas que precisam de pouca polícia. A
desigualdade social, a brutalização da pobreza, essas medidas
compensatórias, que aprofundam os nexos da desigualdade... Precisamos
construir um modelo de felicidade para a cidade, no qual a segurança
seria a última prioridade. Porém, não acredito nisso.
Estamos
voltando à República Velha, época em que, quando se pensava na questão
social, pegava-se um revólver. Estou me sentindo na República Velha,
quando as questões sociais eram resolvidas pela polícia. Precisamos
de menos polícia, menos prisão, mais beleza, mais cultura, mais
alegria, mais potência juvenil e popular, protagonizando as coisas.
Correio
da Cidadania: Finalmente, como vislumbra que o futuro governador do
Rio, assim como a futura presidenta do Brasil, vão lidar com o tema da
Segurança Pública? Vera Malaguti: Olha,
estou morrendo de medo dos dois. A perspectiva é sombria. E como o
ministro da Defesa será mantido... Parece que estaremos bem com as
embaixadas americana e israelense.
Correio da Cidadania: Podemos, dessa forma, imaginar uma intensificação desse modelo militarista de mediação social? Vera Malaguti: Estão
ocupando a minha cidade. A linda, insubmissa e rebelde cidade do Rio
de Janeiro. Para que fluam os grandes negócios transnacionais e
esportivos. Para que as pessoas possam fruir sem serem incomodadas pela
nossa pobreza. Essa é a minha triste impressão dos acontecimentos.
Como eu disse, não sei se é fascismo ou farsismo.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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