Pol�tica
Eleições presidenciais de 2010 no Brasil: as três faces de um mesmo campo político
Por Valério Arcary, professor do IFSP
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), e doutor em História
pela USP.
Quem a si próprio elogia, não merece
crédito.
Sabedoria popular chinesa
A verdade é como o azeite: Vem sempre ao
de cima. Sabedoria popular portuguesa
Não
se deve elogiar o dia antes da noite. Sabedoria
popular alemã
Historiadores se dedicam a narrativas
que pretendem atribuir sentido ao que já aconteceu. Estas linhas são uma
análise de um processo ainda em curso, portanto, um pouco inusitadas. Quem
escreve a história do tempo presente sabe que, se o passado recente pode ser
tantas vezes quase inexpugnável, o futuro pode ser inesperado. Mas, somente em
ocasiões muitas raras o que será se revela, realmente, imprevisível. Existem
tendências inscritas na realidade, e que expressam as relações de forças sociais
e políticas que estão em disputa. Estas tendências são forças de pressão que
restringem, em condições normais, as alternativas em disputa a poucas
possibilidades.
A
surpresa das eleições presidenciais de 2010 no Brasil é que, pela primeira vez
desde 1989, elas não deverão ter nada de surpreendente. O Brasil passou a ser
previsível. Não serão surpreendentes por duas razões: porque é improvável que
Marina possa disputar de igual para igual contra Dilma e Serra (e seria motivo
de estupefação o crescimento de uma das candidaturas da esquerda socialista), e
porque é improvável que aquele que vier a ser eleito surpreenda a nação como
Collor surpreendeu em 1990 (o choque do congelamento da dívida interna), FHC
surpreendeu em janeiro de 1999 (o choque da desvalorização cambial), e Lula
surpreendeu em 2002 (o choque do mega ajuste fiscal).
Seja eleita Dilma ou Serra não haverá
nem surpresa nem choque algum, mas apenas “business as usual”, ou seja, a
estabilidade para os negócios. Existe um grande consenso entre o mundo
empresarial-burguês e os três candidatos eleitoralmente favoritos. Dilma como
herdeira dos oito anos lulistas de concessões às grandes corporações, e
políticas sociais focadas; Serra e os dezesseis anos paulistas de privatizações
e choque de gestão dos serviços públicos; e Marina, porta voz de um lulismo sem
o PT, ou seja, paz social com ajustes reguladores. O consenso remete aos
desafios político-econômicos a partir de 2011: manter a busca do superávit
fiscal acima de 3% do PIB para permitir a rolagem da dívida, mesmo com taxas
básicas acima de 10% ao ano, sem sacrificar um crescimento do PIB próximo a 5%
ao ano.
As eleições estarão se desenvolvendo em uma
conjuntura determinada, essencialmente, pela evolução de três grandes fatores: (a)
a maior ou menor incidência da crise econômica internacional sobre o Brasil; (b)
a maior ou menor capacidade do governo de transformar as eleições em um
plebiscito entre o Governo Lula e o governo Fernando Henrique Cardoso do PSDB;
(c) a maior ou menor capacidade do governo Lula transferir para sua candidata a
sua popularidade.
No contexto externo a crise econômica
internacional evoluiu, no primeiro semestre do ano, para o que poderíamos
denominar uma terceira fase: a crise
de crédito de alguns Estados Nacionais europeus, como a Grécia, onde a iminência
de uma moratória exigiu um mega pacote de US$1 trilhão como operação de resgate
para evitar um contágio de desconfiança dos credores internacionais que poderia
desestabilizar, também, Espanha e Portugal, além de Irlanda e até Itália.
Embora a situação da zona do euro ainda permaneça extremamente grave, porque a
estabilização da moeda – ameaçada de forte desvalorização - depende de pacotes
anti-populares que podem despertar feroz resistência social, como na
Grécia, a economia do Brasil, ao
contrário de setembro de 2002, deve atravessar os meses até outubro,
relativamente, intacta, o que favorece a candidatura de Dilma Roussef .
Os estatistas reguladores petistas - e
seus aliados do PCdB, PSB, PDT, e etc.- estão felizes da vida, porque, do alto
dos índices de popularidade de Lula, sabem que José Serra não pode reivindicar
o balanço do governo Fernando Henrique Cardoso, sem ser derrotado antes da luta
eleitoral começar. No entanto, deveriam lembrar, também, que a transferência de
votos de Lula para Dilma é uma batalha ainda por fazer. Exemplos das eleições
dos últimos vinte e cinco anos, como a eleição de Fleury por influência de
Quércia em 1990, de Pitta pela de Maluf em 1996, e de Kassab pela de Serra em
2008, só para lembrar três processos, confirmam Dilma Roussef como favorita,
mas de forma muito diferente da eleição de Lula em 2006, que já foi, por sua
vez, muito distinta de 2002.
As bases sociais da votação de Lula
em 2006, e da sua popularidade em 2010, não são as mesmas que permitiram a vitória
em 2002: o PT tem hoje menos autoridade nos setores organizados da classe
trabalhadora, embora o lulismo tenha mais influência do que nunca nos setores
desorganizados do proletariado. Essa dinâmica do deslocamento social do voto
petista do proletariado urbano e das classes médias assalariadas, e do Sudeste
e Sul para o Norte e Nordeste, e das cidades para os interiores, parece repetir
o deslocamento da influência eleitoral do PMDB entre 1978/1994. Um deslocamento
eleitoral que reflete a redução crescente do voto petista em voto lulista, ou
seja, um processo de desgaste político que pode não ser ainda tão significativo
a ponto de ameaçar a vitória de Dilma Roussef, mas que sinaliza a dependência
do PT diante do caudilhismo de Lula.
Ainda que a intenção do governo Lula
seja fazer da eleição um plebiscito, confiante de que nesse cenário a
transferência de voto poderia acontecer até o primeiro turno, muitas incertezas
sugerem alguma prudência. É possível que as eleições se reduzam a um
plebiscito, reduzindo muito o espaço para outras candidaturas, como a de Marina
Silva. Mais difícil será ainda o espaço para as candidaturas da oposição de
esquerda, através do PSTU, PSOL e PCB. Não obstante, estarão colocados, na
verdade, somente dois grandes projetos estratégicos: os que defendem a
regulação política do capitalismo em circunstâncias de crise, e os que defendem
a necessidade de uma ruptura anticapitalista.
Dilma, Serra e Marina: três
propostas de capitalismo regulado
Foram duas, retrospectivamente, as grandes
interpretações históricas para o balanço desanimador do capitalismo brasileiro
desde o fim da ditadura. Os que consideram que a dinâmica raquítica do
crescimento até 2004 – em torno de 2,4% ao ano - foi provocada por fatores
externos, portanto, econômicos e exógenos (choque do petróleo; elevação
vertiginosa do custo de rolagem da dívida externa; insuficiência da poupança interna);
e aqueles que consideram que a estagnação teve na sua raiz os custos sociais da
estabilização do regime democrático, portanto, políticos e endógenos
(deslocamento das classes médias para a esquerda e forte disposição de luta de
uma nova classe trabalhadora; conflito distributivo ao final da ditadura
militar e super-inflação; imaturidade da representação política através de
partidos nacionais capazes de manter maiorias legislativas; ausências de
políticas sociais como políticas de Estado para preservar a paz social).
Não sendo incompatíveis, estas duas
perspectivas sustentaram análises polêmicas durante muitos anos. O primeiro
campo ideológico foi orientado pelos critérios teóricos do pensamento conservador-liberal
(ainda que com concessões ecléticas ao neo-keynesianismo estatal), sobretudo,
ao longo dos anos noventa. O segundo campo pelos critérios do pensamento
liberal-estatista (ainda que concessões ecléticas às correntes
neo-social-democratas de inspiração habermasianas), sobretudo, depois da virada
do milênio. Os primeiros giraram para o centro, lentamente, e os segundos para
a direita, vertiginosamente, e foi só uma questão de tempo para se encontrarem.
Evoluíram para um campo de propostas comuns na última década, diminuindo as
arestas do debate político-teórico, com a assimilação mútua de um projeto
comum, e dissolvendo as diferenças políticas táticas que foram características
da luta de partidos. Os liberais-sociais do PSDB, os sociais-liberais do PT, e
os ecologistas-liberais do PV, todos travestidos, quando lhes convém, de
keynesianos reguladores se regozijam porque vêm um Brasil cada vez melhor.
Têm cinco grandes acordos econômicos
e políticos de balanço que, alegremente, comemoram: (a) a proporção da dívida
pública em relação ao PIB foi reduzida para menos de 50%, o que favorece,
potencialmente, a atração de capital externo do cassino financeiro, mesmo com a
permanência da crise mundial, porque a margem para endividamento do Estado é,
comparativamente a outros países, grande; (b) o controle da inflação foi
conquistado com a lei de responsabilidade fiscal, e os superávits fiscais de,
pelo menos, 3% do PIB, asseguraram a confiança da burguesia na moeda nacional,
e têm permitido que os interesses dos rentistas estejam protegidos; (c) a
abertura comercial e financeira dos anos noventa permitiu uma plena integração
no mercado mundial, as importações ajudaram a controlar a inflação, favoreceram
a reestruturação produtiva, e o Brasil se beneficiou do aumento da demanda das
commodities que exporta, e não deve ter grandes perdas comerciais, mesmo em um
cenário de possível depressão mundial; (d) a manutenção da independência do
Banco Central; o favorecimento do agro-negócio exportador; o impulso do BNDES à
formação de grandes monopólios nacionais pela concentração de capital,
inclusive, com financiamento público das aquisições, potencializaram as
condições para que o Estado eleve os investimentos na economia para um patamar
acima de 2% do PIB, abaixo dos 4% dos anos setenta, mas mais que o dobro dos
últimos 25 anos; (e) a preservação da relativa paz social alcançada com a
parceria dos sindicatos e Centrais sindicais com os governos, e as políticas
compensatórias para os setores populares mais desorganizados, permitem prever
um cenário de estabilidade política, com o isolamento social dos setores
sindicais mais combativos e a marginalidade da esquerda independente.
Os porta vozes desta avaliação otimista
serão nas eleições de outubro, indistintamente, José Serra, Dilma Roussef e
Marina Silva. Haverá diferenças de tom, mas a música será a mesma. Seus
programas eleitorais serão, declaradamente, pró-capitalistas, com ênfases
variadas sobre o tipo de regulação mais ou menos social, ambiental e
desenvolvimentista que pretendem fazer do capitalismo. Os três candidatos
reconhecem diferenças entre si, mas admitem, também, e com estarrecedora
franqueza, que são irrelevantes. Haverá alguma poeira levantada no ar por
polêmicas, essencialmente, secundárias. Não foi por outra razão que Marina
adiantou que, se eleita, convidaria para ministros quadros do PT e do PSDB.
Serra, para não ficar atrás, em generosa reciprocidade, respondeu que
convidaria quadros do PV e do PT. Não há porque duvidar que Dilma, se eleita,
faria, também, os convites mais esdrúxulos, já que o próprio Lula não hesitou
em chamar Roberto Rodrigues para a Agricultura e Meirelles para o Banco
Central. Tudo isso é possível.
Defensores de Serra, de Dilma e de
Marina estão igualmente satisfeitos e reconciliados com quatro apreciações
estratégicas: (a) a preservação intacta do aparelho repressivo das Forças
Armadas e Polícias Militares herdado da ditadura militar, inclusive, a anistia
aos torturadores, como conquista política de um patamar de disputa civilizada;
(b) a consolidação da democracia-liberal como regime político, com seus vícios,
cronicamente, escandalosos de corrupção eleitoral financiada pelos monopólios,
em uma espécie de bi-partidismo entre governo e oposição, ampliado pelas
coligações regionais que garantiram uma maioria congressual nos últimos vinte e
cinco anos (afinal o PV participou, entusiasdamente, tanto dos governos Serra
em São Paulo e César Maia no Rio, quanto Lula em Brasília); (c) as
desnacionalizações, privatizações e parcerias com o grande capital em áreas
como telefonia/comunicações, distribuição de energia, obras públicas e
infra-estrutura, incluindo a participação estrangeira na exploração do pré-sal;
(d) a manutenção de um modelo misto – público/privado - de gestão da educação,
da saúde, da previdência e da segurança interna.
Serra
e a oposição burguesa: um programa para um novo ajuste antioperário
Isto posto, a visão de Serra remete às
ansiedades da grande burguesia, sobretudo paulista, – bancos, empreiteiras, monopólios,
multinacionais – que insistem em uma avaliação econômica do que consideram as
três fragilidades estruturais do país: (a) o Brasil cresceu menos do que
poderia porque, em função das necessidades de legitimação do regime democrático,
depois de vinte anos de ditadura militar, o Estado agigantou-se, elevando a
carga fiscal (de 25% do PIB em 1985, para 36% em 2010) para patamares
incompatíveis com taxas de expansão mais altas do que 3% ou 4% ao ano; (b) o
peso da máquina pública (6 milhões de funcionários com salários 50% superiores,
em média, aos salários de 40 milhões de carteiras assinadas no setor privado) e
da previdência social (25 milhões de aposentados e pensionistas), associado ao
aumento dos gastos sociais, inibiu os investimentos estatais na modernização da
infra-estrutura; (c) a proporção do consumo das famílias e do Estado sobre o
PIB aumentou, mas a poupança interna permaneceu muito pequena, enquanto o
déficit na conta corrente das transações externas cresce, vertiginosamente, e
só fecha em função dos investimentos estrangeiros.
Como se pode concluir, é uma
análise, essencialmente, economicista. A premissa é que para voltar a crescer o
país precisaria produzir mais e consumir ainda menos, para aumentar as
exportações e financiar o déficit externo. Sem um aumento da super-exploração
dos que vivem do trabalho seria impossível atrair investimentos produtivos, e o
Estado não pode e não deve ser o grande investidor, a não ser em parcerias com
o capital privado. O único critério é a saúde dos grandes negócios, ou seja, as
possibilidades maiores ou menores do capital de valorização mais rápida, em um
contexto de grande competição internacional. Serra se apresenta como o porta
voz da grande burguesia brasileira articulada de forma indivisível ao grande
capital internacional, como destacou Álvaro Bianchi: “nas décadas de 1980 e 1990, teve lugar uma recomposição profunda da economia nacional que reconfigurou a burguesia (...) Houve, também, uma
enorme expansão do setor finan ceiro e um importante crescimento da agricultura e da pecuária vinculadas à exportação (...) Se antes
era difícil falar de uma burguesia nacional, agora é
uma completa impropriedade” (BIANCHI, 2008).
Destas premissas, Serra retira quatro
conclusões: (a) não é possível aumentar impostos, e seria melhor reduzir a
carga fiscal do Estado, porque as economias periféricas com as quais o Brasil
compete têm encargos muito mais leves, e o peso fiscal do Estado desencoraja
investimentos que serão indispensáveis para explorar o petróleo do pré-sal; (b)
não é possível manter os atuais níveis de consumo do mercado interno, porque a
poupança nacional e a taxa de investimento são insuficientes, portanto, vai ser
necessário reduzir gastos de custeio do Estado, despesas públicas com políticas
sociais e realizar um arrocho salarial, porque a sociedade vive acima dos seus
meios, e não pode continuar contando, indefinidamente, com o financiamento
externo; (c) não é possível financiar por mais tempo o déficit externo nas
contas correntes, porque o câmbio valorizado do real em relação ao dólar e euro
desestimula as exportações e favorece as importações, portanto, a
desvalorização da moeda está de novo no horizonte; (d) não é possível competir
no mercado mundial, em especial, com economias em estágio semelhante de
desenvolvimento, como China e Coréia do Sul, por exemplo, porque as pressões
sociais por redução da jornada de trabalho, expansão dos gastos sociais, seja
em programas compensatórios como o Bolsa-família, seja em políticas públicas
universais como investimentos em educação, SUS ou previdência, são
incompatíveis como taxas de investimento estatais em infra-estrutura.
Dilma e a armadilha da política
de colaboração de classes sem reformas
A questão de fundo, todavia, é que essa recuperação foi transitória – acompanhou o crescimento mundial – e não foi e não parece sustentável no marco da crise mundial. Para compreender as razões deste impasse é preciso perspectiva histórica. A sociedade brasileira entre 1930 e 1980, mesmo considerando-se os limites impostos pelo seu estatuto subordinado na periferia capitalista, foi uma das economias com mais dinâmica no mercado mundial. Perpetuaram-se as desigualdades, porque a concentração de renda aumentou, não diminuiu. Mas existiu, durante cinco décadas, em função da conjuntura internacional do boom do pós-guerra, um capitalismo com taxas aceleradas de crescimento econômico, enquanto se realizavam as tarefas históricas de urbanização e industrialização. Os dois processos foram simultâneos, ainda que não tenham tido a mesma proporção em todo o país. No entanto, o certo é que existiu mobilidade social para a maioria do povo na fase das grandes migrações do campo para a cidade. Existiu, também, mobilidade relativa beneficiando a classe média.
O crescimento econômico foi mais significativo que a escolarização, mas é provável que tenha ocorrido uma sinergia na confluência de causas. Logo, a promessa de que seria possível ir além dos limites do capitalismo agro-exportador, e fortalecer um crescimento apoiado na expansão do mercado interno e, portanto, viver melhor, através de reformas como uma educação pública universal – a percepção popular do nacional-desenvolvimentismo - era uma promessa que alimentava esperanças. Garantia alguma coesão social para a estabilidade dos regimes políticos entre 1945 e 1964. A força de inércia das ilusões reformistas repousou nessa história, que culminou com a experiência interrompida do governo JoãoGoulart. Lula foi, depois de 1980, o herdeiro destas ilusões.
As condições históricas que permitiram esse crescimento econômico se perderam no pós-guerra. Reformas progressivas na época da decadência do capitalismo só foram possíveis em situações excepcionais, como concessões para evitar a precipitação de revoluções. As poucas reformas do período democrático pós-1985 foram efêmeras e instáveis. Não se construiu um Estado de bem estar social: não ocorreu redução significativa da jornada de trabalho. Ela caiu de 49 para 44 horas semanais, todavia, ainda não se regulamentou a jornada semanal de 40hs, em vigência em quase todos os países industrializados. Entretanto, o desemprego se instalou como um drama social estrutural, quando era residual até 1980. Não se garantiu uma elevação expressiva do salário médio que oscila, dependendo do cambio, em torno de US$600,00, quando supera os US$2.500,00 nos países centrais. Não se conseguiu aumentar, qualitativamente, a escolaridade média que avançou somente de 4 para pouco mais de 7 anos em média para a população com 15 anos ou mais.
Quando raciocinamos neste horizonte de
perspectiva, verificamos que a economia brasileira perdeu o impulso que teve
até os anos oitenta. A questão decisiva é que o Brasil é hoje uma sociedade
econômica e socialmente congelada, comparativamente, àquilo que ela foi. A
explicação fundamental deste processo foi a estagnação econômica entre 1980 e
2010 que se manifesta pela permanência da mesma renda per capita: duplicamos o
PIB, mas duplicamos também a população. O capitalismo brasileiro do século XXI
é um capitalismo com taxa de mobilidade social muito baixa, e a educação deixou
de ser um trampolim social. O salário médio dos setores que alcançam uma
escolaridade técnico-profissional como os operários qualificados, oscila pouco
acima do salário médio. O daqueles com escolaridade elevada, ou seja, o ensino
superior, mantém uma curva descendente contínua há mais de duas décadas:
professores, quadros intermediários da administração pública ou privada,
profissionais assalariados, como médicos, advogados, engenheiros, arquitetos,
etc.
Todas as informações disponíveis
confirmam que a possibilidade de se conquistar recompensas econômicas e
sociais, ou uma vida mais segura e mais confortável através do esforço
individual, por exemplo, uma educação maior, está reduzida. Em outras palavras,
a mobilidade social relativa está estagnada, ou retrocedendo. A razão de fundo
deste processo foi a estagnação econômica. A crise crônica da sociedade
brasileira já foi percebida, pelo menos parcialmente, pelas massas
trabalhadoras, e mesmo pelas camadas médias, ainda que esse mal estar não se
manifeste ainda, como nos anos oitenta, em uma elevação da participação
política. Os anos de suspiro entre 2004 e 2008, com seu crescimento baixo,
foram recebidos com alívio por uma geração que vivia entre recessões longas e
curtas.
Mas, nos setores mais organizados da
classe trabalhadora, avança a percepção de não há razões para esperar uma vida
melhor pelo sacrifício individual. A função social da educação na sociedade é
cada vez mais estabelecer a divisão do trabalho que vai permitir a perpetuação
das relações sociais existentes. Ou seja, a educação não questiona as relações
sociais, somente as perpetua. As ilusões reformistas entrarão em choque,
inevitavelmente, com a realidade e, como esperanças frustradas, irão se
dissolvendo.
Os desafios da esquerda socialista nas
eleições
A expectativa de que o capitalismo
periférico brasileiro poderia realizar uma regulação social do mercado, quando
a ditadura militar acabou, era compartilhada por milhões. Para os trabalhadores
dos setores mais organizados do proletariado, a confiança na direção do PT e em
Lula, e as ilusões na estratégia eleitoral de que as mudanças seriam possíveis
através da colaboração de classes, sem rupturas com as instituições da
democracia liberal, ou seja, sem choques diretos com os grandes capitalistas,
significaram uma desesperadora espera de 20 anos.
Foram vinte anos entre 1982, a
primeira participação eleitoral do PT, e 2002. Dirigidas pelo PT e pela CUT, e
apostando que mais cedo ou mais tarde Lula venceriam as eleições, as massas
populares, pacientemente, aguardaram a hora da vitória eleitoral. Não faltaram
tragédias econômicas e comoções sociais nesses vinte anos: duas décadas de
crescimento econômico baixo, quase raquítico, em que as turbulências da
superinflação dos anos oitenta deram lugar ao desemprego crônico, alimentaram
um crescente mal-estar social e motivaram grandes lutas, algumas ofensivas –
como a onda de lutas que começou com as Diretas em 1984, e se estendeu até o
Fora Collor em 1992 -, outras defensivas, entre 1992 e 2002.
Não obstante, o alarme constante
diante de represálias dos donos da riqueza, que
mantiveram influência histórica sobre as instituições de poder; a
insegurança social dos trabalhadores em si mesmos e na sua capacidade de luta;
a imaturidade política de uma geração proletária inexperiente; e o papel
desorganizador e desmobilizador de uma direção sindical e política – CUT e PT -
sempre disposta a inflar a força dos poderosos e diminuir a força dos explorados;
todos estes fatores favoreceram a estratégia reformista de prevenir as lutas
sindicais, quando evitável, conter a sua radicalização, quando possível, e
impedir a sua unificação, quando incontornável, e redirecionar o
descontentamento para as eleições.
Ainda assim, a tensão social crônica
alimentou lutas de resistência que, rapidamente, pareciam poder transbordar
para além dos limites institucionais do novo regime democrático. Foi possível,
em mais de um momento, começar, seriamente, a medir forças entre o proletariado
e seus aliados sociais e a burguesia. E o que se viu nas ruas entre 1984 e
2002, foi a revolução brasileira engatinhando os seus primeiros passos.
Descobriu-se um Brasil urbano e muito concentrado, em que a força social de choque
do proletariado era capaz de atrair a maioria da classe média para o seu lado,
e deixar isolado o grande capital. Quando a massa popular saiu às ruas aos
milhões para derrotar o Colégio Eleitoral da ditadura exigindo Diretas Já em
1984; quando a maioria do povo aderiu aos métodos de luta da classe operária,
com as greves gerais contra Sarney, entre 1987 e 1989; quando a juventude se
sublevou e acendeu a ira de milhões contra Collor em 1992; quando as ocupações
de latifúndios e as marchas camponesas do MST despertaram a simpatia da maioria
da nação, em 1997; quando o Fora FHC foi capaz de unir cem mil na marcha a
Brasília em 1999. Em todos estes momentos decisivos, a burguesia brasileira se
apequenou, se acanhou, se descobriu socialmente isolada, e politicamente,
dividida.
Paradoxalmente, a direção que alimentou
as lutas contra Figueiredo e Sarney – os combates que legitimaram a fundação do
PT e da CUT, e a autoridade de Lula - passou a refreá-las contra Collor e FHC.
Mas, isso não impediu que se beneficiasse do desgaste dos governos da Nova
República, e vencesse as eleições em 2002. O mais importante, entretanto, é que
esse processo histórico de vinte e cinco anos confirmou que, nos limites do
regime democrático-liberal e seu calendário eleitoral, a vida das massas não
poderia mudar. Parece inegável que essa esperança reformista, com a perspectiva
que os últimos oito anos nos oferecem, foi frustrada.
As poucas reformas de conteúdo
socialmente progressivo realizadas sob o regime da democracia liberal, como a
extensão da previdência social à população rural, ou a implantação do Sistema
Único de Saúde, o SUS, ficaram muito aquém
das necessidades reprimidas durante duas décadas pelo regime militar. As
poucas reformas do governo Lula, como o aumento do salário mínimo levemente
acima da inflação, a expansão de vagas no ensino público federal, ou as
políticas compensatórias como o Bolsa-Família e as cotas de acesso para
afro-descendentes, foram muito pouco, depois de tantas lutas e tanto tempo. Fossem quais fossem as coligações articuladas pelo PSDB ou pelo PT em Brasília, todos os governos, desde a derrota de Maluf em 1985 no Colégio eleitoral da ditadura, foram incapazes de diminuir, significativamente, as desigualdades sociais acumuladas. Embora a recuperação econômica entre 2004-08 tenha trazido para uma maioria da população uma sensação de alívio, o impacto da crise mundial de 2008-09 não deixará de ter repercussões internas, porque a vulnerabilidade externa do Brasil não só não foi revertida, como se agravou – a previsão é de um déficit em contra corrente de US$ 50 bilhões em 2010 - apesar do aumento das reservas para um patamar em torno de US$ 250 bilhões. O agravamento da crise capitalista pela iminência de uma moratória da dívida externa da Grécia, que seria um terremoto financeiro ainda maior do que a falência do Lehmann Brothers, em 2008, sinaliza que estamos entrando em uma nova situação mundial. Esta nova situação, todavia, só deverá chegar ao Brasil depois das eleições de outubro.
Referências:
BIANCHI, Álvaro.
A crise financeira é a
crônica de uma
morte anunciada, in IHU on line, Revista do Instituto Humanitas Unisinos ,
edição 278. São Leopoldo, outubro de 2008. Consulta em maio de 2009: http://www.scribd.com/doc/7991193/A-Financeirizacao-Do-Mundo-e-Sua-Crise-Uma-Leitura-a-Partir-de-Marx
BOITO JR, Armando. A burguesia no Governo Lula in Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias
globales y experiencias nacionales. Basualdo, Eduardo M.; Arceo,
Enrique. Buenos Aires. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, Agosto 2006. ISBN: 987-1183-56-9
A primeira fase da crise foi o período precipitado
pela inadimplência do mercado da habitação dos EUA, que culmina com a quebra do
Lehmann Brothers em setembro de 2009, quando a crise se manifestou como uma
turbulência muito séria do mercado financeiro norte-americano; a segunda fase da
crise foi a intervenção de emergência do FED ( o Banco Central
norte-americano), acompanhada na sequência pelos Bancos Centrais da Europa e do
Japão, liberando recursos em escala inusitada para oferecer garantias de que a
corrida dos bancos uns contra os outros não se transformaria em corrida dos
correntistas, ou seja, da população mundial contra os bancos, prevenindo o
pânico generalizado, ou um novo 1929.
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