Entrevistas
“Houve um jornalismo investigativo seletivo”, diz Venício Lima
A necessidade de compreender os últimos acontecimentos protagonizados
pela imprensa e o presidente Lula para além das matérias que são
veiculadas nos jornais aliada ao “problema de não saber dar resposta
curta” explicam as respostas longas da entrevista concedida por Venício
Lima para este blog. Autor de vários livros sobre a relação entre mídia
e política, Venício fala das declarações de Lula sobre a imprensa, das
acusações da imprensa a Lula, a repercussão desse embate na campanha
eleitoral e a responsabilidade da mídia na disseminação de escândalos
políticos.
Por Isabela Calil Cadernos de Reportagem da UFF
Como você avalia essa polêmica no final da campanha eleitoral entre o Lula e a mídia? Por que essa discussão agora? Uma pergunta fundamental é: a quem interessa esse tipo de radicalização
em torno de uma liberdade tão importante para a democracia como a
liberdade de imprensa? A quem interessa fazer essa discussão agora? O
que aconteceu foi o que já vinha acontecendo antes do processo
eleitoral propriamente dito e que nem é específico do Brasil. Esse caso
no Brasil tem que ser visto num contexto maior do que está acontecendo,
primeiro, com a imprensa em geral – e sobretudo a imprensa impressa,
que está atravessando uma crise muito grande – e a situação dos grupos
dominantes de mídia no contexto latino-americano. Historicamente, os
principais grupos dominantes de mídia na América Latina, não só no
Brasil, sempre foram aliados dos que estavam no poder político,
inclusive no período das ditaduras militares. Alguns desses grupos até
se consolidaram nesse período autoritário, como é o caso das
Organizações Globo. O fenômeno que acontece agora é muito interessante
porque vários políticos que chegaram à presidência em diferentes países
sofreram a oposição direta da imprensa associada ao poder. Chegaram ao
governo dentro de processos do estado democrático de direito, em
eleições que foram acompanhadas por organismos de fiscalização
multilaterais. Só para citar alguns casos: Venezuela, Bolívia,
Argentina, Equador e Uruguai. E aconteceu no Brasil. Então, esses que
chegaram ao poder enfrentando a oposição da mídia se sentiram ameaçados
porque alguns desses governos cuidaram de enfrentar uma questão que
precisa ser enfrentada. Uma questão que ameaça os interesses
estabelecidos mas que não vinha sendo enfrentada como precisa e que é a
regulação da grande mídia. Na Bolívia e no Equador isso está
acontecendo, a Argentina tem uma nova lei de meios de comunicação.
Paradoxalmente, no governo Lula, todas – todas – as tentativas de
avançar no sentido de algum tipo de regulação não vingaram, porque a
grande mídia se opôs violentamente a ela. E olha que estamos falando de
uma regulação democrática, que já existe em países como os EUA desde a
década de 30 do século passado. Agora, encontrar uma explicação para
isso nas ações de governo é difícil. Na maioria das vezes o próprio
governo recuou, algumas iniciativas, como a 1ª Conferência Nacional de
Comunicação, não têm força. A Conferência, por exemplo, é propositiva.
Representa propostas que podem ser encaminhadas ao Congresso,
eventualmente passar pelo legislativo e virar lei, mas afora isso,
nada. A não ser que se veja a atitude da imprensa pela ótica da
solidariedade a uma entidade que representa esses grupos na mídia
continental. Caso contrário, fica difícil de entender que a grande
mídia no Brasil possa ter, sobretudo a partir da crise política de
2005/2006 e até o momento, praticamente na sua unanimidade, feito uma
oposição cotidiana ao governo Lula. A ponto de a presidente da
Associação Nacional dos Jornais, que também é superintendente do Grupo
Folha, Judith Brito, dar uma entrevista dizendo que a grande imprensa
estava fazendo, sim, o papel de partido de oposição, porque a oposição
estava fragilizada.
Mas se durante os oito anos em que Lula se manteve no poder ele não
mudou isso, se nenhuma lei vingou, por que atacar os meios e falar das
duas ou três famílias que controlam a TV justo agora? Bem, primeiro eu não concordo que ele esteja atacando. Tendo em vista o
aparente insucesso do principal candidato de oposição, em alguns casos
explicitamente apoiado pela grande mídia, e a hipótese de a eleição ser
decidida no primeiro turno em favor da situação, o presidente e a
candidata que ele apóia legitimamente – eles sim – passaram a sofrer
uma série de ataques. Iniciou-se uma temporada que já ocorreu na
eleição de 2006, uma temporada de escândalos políticos midiáticos, que
é uma coisa específica e muito própria desses processos eleitorais. Num
período curtíssimo, que tem uma data, porque é potencializado no
momento em que a candidata apoiada pelo governo ultrapassa os 50% das
pesquisas eleitorais, pipocaram escândalos e denúncias para todo lado.
Algumas dessas denúncias podem ser – eu acredito até que tenham sido –
denúncias fundamentadas e que evidentemente tem que ser apuradas. Mas a
imensa maioria dessas denúncias era de fim eleitoral, com um claro
objetivo de prejudicar a reputação política da candidata apoiada pelo
governo. Tanto é que essas denúncias foram seletivas. Houve um
jornalismo investigativo seletivo: investiga-se um candidato e não se
investiga o outro. Ou então, vai-se fundo numa denúncia só até o
momento em que ela prejudica um candidato, quando começa a prejudicar o
outro ela se interrompe, não vai à frente. Diante disso, o presidente
da República reagiu em uma, duas ou três situações. Reagiu, no meu
ponto de vista, de forma equivocada, mas falando coisas que eu, como
estudioso da área, tenho falado há décadas. Que a grande mídia no
Brasil é controlada por algumas empresas familiares, até você que está
iniciando no jornalismo claramente sabe disso. Que a propriedade
cruzada é uma coisa que precisa ser regulada no Brasil, que é por causa
dela que existem grandes grupos de multimídia é algo evidente até para,
como diria o Mino Carta, as pedras da rua. Eu tive o cuidado, quando
participei de um programa da TV Brasil sobre esse tema, de ler as
transcrições oficiais do que o presidente disse, estou falando com o
conhecimento do que ele realmente disse: o escorregão dele foi em um
discurso, se não me engano em Tocantins, em que ele falou que a
imprensa tinha liberdade para falar o que quisesse mas que não podia
ficar falando mentira. Isso criou um problema que foi explorado pelos
jornalões: o problema de saber quem verifica o que está correto ou não,
o que permite a falsa interpretação de que o governo quer ter uma
agência para corrigir informações. Todo o resto da fala do presidente
não constitui nenhuma novidade para quem conhece a área. Mas serviu de
pretexto, como, aliás, tem servido há muito tempo, para a grande mídia
se apresentar publicamente como defensora das liberdades e o presidente
Lula, seus aliados e seu partido como ameaçadores dessas liberdades. Eu
vejo isso como uma perspectiva de estratégia política de combate ao
governo. Estratégia de oposição. Pegar esses valores, que são valores
evidentemente democráticos e que não estão em discussão, ao contrário.
O presidente falou isso: eu desafio alguém a dizer que não tem
liberdade de imprensa nesse país, onde tem mais liberdade? O que esses
grandes grupos podem eventualmente alegar é o que eles chamam de
censura judicial, que é uma questão polêmica inclusive dentro do
Judiciário. O plenário do Supremo já se dividiu praticamente ao meio
com relação a esse tema. Fora isso não houve nada. Qual a responsabilidade da mídia na veiculação desses escândalos, que às vezes não se confirmam? A mídia tem responsabilidade inclusive criminal. O escândalo que gerou
mais resultados políticos foi o escândalo da Casa Civil [que resultou
na demissão da ministra Erenice Guerra]. A imprensa tem
responsabilidade? É claro que tem. Primeiro porque existe a presunção
de inocência. O cidadão tem que ser presumido inocente até que se prove
o contrário. Nesta e em outras situações no período imediatamente
anterior ao primeiro turno das eleições houve muita denúncia seletiva
por parte da grande mídia com o claro objetivo de atingir a reputação
pública de uma das candidatas.
O nível ético é uma coisa. Mas quando você avalia o que é crime e o que
não é, o que vale são as leis. O problema do escândalo político
midiático é que ele gera todos os efeitos que provocam um enorme
estrago na reputação pública de indivíduos e instituições, antes que as
denúncias possam ser verificadas.
Não precisa nem ser escândalo, né? Vira escândalo. Outro dia um cara perguntou o que eu achava [do
escândalo] da Casa Civil. Aí eu disse, olha, uma coisa é crime, outra é
escândalo. Não estou acompanhando o caso Erenice do ponto de vista das
investigações, vamos dizer assim, criminais. Acho que a questão é
outra. Crime é crime; escândalo político midiático é outra coisa. Se
cometeu crime, tem que pagar, tem que apurar. Mas não é a imprensa que
faz isso, é a Justiça. Pode fazer denúncia, mas não na base do “eu acho
que”. Um jornal [a Folha de S. Paulo] escreve lá [na manchete]: “Dilma
deu R$ 1 bilhão de prejuízos na conta de luz”. Aí no dia seguinte se vê
que não é nada daquilo. Ou o Estadão publica na primeira página: “TV do
Lula contrata filho de Franklin [Martins, ministro chefe da Secretaria
de Comunicação Social da Presidência]”. É uma piada. Agora, na minha
opinião, os jornalões estão avaliando mal as consequências disso,
porque denúncias que não se confirmam geram perda de credibilidade.
De que forma as declarações do Lula podem repercutir no debate
sobre propriedade cruzada dos meios de comunicação, ou das mentiras que
a mídia propagaria? Você acha que isso chega a gerar um debate ou o
presidente vai falar agora e depois as pessoas vão esquecer isso? Eu acho que essa polêmica só existiu na medida em que representou uma
estratégia eleitoral. Não significa que tenha havido uma conspiração,
que os editores dos principais jornais tenham sentado em volta de uma
mesa e combinado, mas foi uma estratégia eleitoral enquanto deu
resultado. Vamos ver o que acontece agora. Diante do segundo turno,
pode ser que volte. Na verdade, uma das coisas que eu acho que
aconteceram foi que, de alguma forma, as declarações do presidente e a
reação radicalizada da grande mídia de alguma forma colocou, mesmo que
tenha sido numa esfera reduzida, a mídia em debate. E isso não
interessa a eles. Nunca. A nossa mídia tem uma tradição de não discutir
a si mesma.
E esse comentário do Lula de que “a opinião pública somos nós”? Se metaforicamente o presidente estava se referindo a “nós, a população
brasileira”, ele estava certo. Na verdade, o dado novo importante é que
a opinião pública brasileira não é mais coincidente com aquela dos
chamados “formadores de opinião” tradicionais, sobretudo editorialistas
e articulistas dos jornalões. A internet dilatou o espaço do debate
público, sem dúvida. Apesar de, infelizmente, isso não significar que
ele esteja mais plural ou diversificado do ponto de vista das posições
político-partidárias.
Em um debate no CCBB sobre blogosfera algumas pessoas perguntaram
se a mídia não preparava um golpe de Estado. Como você enxerga essa
tese sobre a “mídia golpista”? No Brasil não tem condições de acontecer o que aconteceu na Venezuela.
Os grupos de mídia não têm mais a força que já tiveram. A mídia não dá
golpe sozinha. Ela precisaria estar numa aliança não só com a oposição
política, mas mobilizando setores militares. Não enxergo condições para
que isso seja possível. O que a mídia pode fazer, mesmo essa velha
mídia, com todo o potencial da internet e todos os blogs, com tudo que
já existe hoje, é dificultar muito o
governo se ela entrar num processo de radicalização política que não
permite diálogo, por exemplo, com o novo governo. Acho que ela pode
criar dificuldades imensas no processo político e aí ninguém sabe o que
pode acontecer. Agora, golpe liderado pela mídia, essa coisa de PIG e
tal, isso é um recurso retórico que o Paulo Henrique Amorim inventou
para combater a grande mídia. Por mais golpista que a grande mídia
eventualmente fosse ela não teria força isolada para dar um golpe nas
instituições. No caso brasileiro, não.
Mas você acha que essa tese de mídia golpista pode ganhar a adesão
de militantes? Porque o recurso retórico pode ser tomado ao pé da
letra... Na verdade, o que eu acho que está acontecendo é um acirramento do que
tradicionalmente se chama de “batalha das idéias”. Embora exista hoje,
no Brasil, uma ampliação da participação no debate político, isso não
significa que a pluralidade do debate tenha aumentado. Pelo contrário,
está diminuindo, e a internet tem responsabilidade nisso. Quem fala que
a internet ajuda a radicalizar posições não sou eu, são os estudiosos
da internet. Acho que estamos vivendo um processo de radicalização do
debate público. Agora, nesse debate, evidentemente, a grande mídia tem
adotado – vou repetir a expressão da própria presidente da ANJ
[Associação Nacional de Jornais] – um papel de oposição político
partidária. Até agora, você pode dizer que isso foi feito numa
perspectiva de favorecer uma candidatura mais simpática a essa mídia.
Vencido o processo eleitoral, o que qualquer pessoa de bom senso espera
é que esse acirramento seja aliviado, que seja colocado em termos de um
debate dentro da democracia representativa liberal. Você tem
adversários, não significa que tenha inimigos. Que se volte a uma
normalidade do debate democrático. Inclusive sobre a mídia. A grande
mídia vai ter que, independentemente de quem ganhar as eleições, se dar
conta de que ela precisa ser regulada, como ocorre no mundo inteiro. No
Brasil esta é uma exigência história das transformações tecnológicas,
da ausência de regulação que já tem décadas, o Código Brasileiro de
Telecomunicações é de 1962. Essas coisas vão ter que ser discutidas
democraticamente.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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