Hist�ria
A mídia sob profundo impacto de mudanças meteóricas
A
velocidade com que essas mudanças estão se dando na sociedade
brasileira pode, realmente, estar ameaçando todo o modelo de negócios
de oligopólios que se pretendiam eternos. Parece que foram
surpreendidos, tanto as empresas, quanto os seus cães de guarda.
Por Marcos Dantas Ag. Carta Maior
Nascido
por volta de 1870 para dar voz ao crescente movimento republicano das
oligarquias cafeeiras paulistas, o Estado (então Província) de São
Paulo somente iria aderir ao movimento Abolicionista quando a Abolição
já se tornara inevitável. Nascida por volta de 1950, da iniciativa de
um imigrante ítalo-americano ligado aos interesses de Walt Disney (e
sabe-se lá a que outros interesses), a Editora Abril (irmã da Editorial
Abril que o irmão daquele imigrante, na mesma época iria criar em
Buenos Aires), depois de fomentar o american way of life entre nós,
através de revistas como Pato Donald e Claudia, iria praticamente
conquistar, com Veja, o monopólio do mercado das revistas semanais de
informação, não por acaso durante o auge da ditadura militar.
Nascida
nos agitados anos 1920, com o jornal O Globo, as Organizações de mesmo
nome, aliadas de primeiríssima hora do golpe de 1964, conquistariam,
também durante a ditadura, tanto o monopólio da televisão em todo o
país, quanto o da imprensa escrita na cidade do Rio de Janeiro, na
medida em que os ditadores deram decisiva contribuição para a
decadência e morte de muitos outros importantes órgãos de imprensa
escrita que então disputavam leitores na ex-capital federal, entre
eles, os Correio da Manhã, Última Hora, Diário de Notícias e, por fim,
recentemente mas depois de longa agonia que teve início naqueles
tempos, o Jornal do Brasil.
Se
a imprensa (hoje, em dia, chamada "mídia") chegou dividida à Revolução
de 1930, apoiada por Marinho e Chateaubriand mas encarniçadamente
combatida pelo Estadão, desde então tem agido como bloco único, no
Brasil. Derrubou Vargas duas vezes, na segunda levando-o ao suicídio.
Opôs-se, como pôde, aos governos JK e João Goulart. Apoiou e estimulou
todos os golpistas de ocasião. Colocou-se contra a última ditadura - depois de ter a ela servido, inclusive fornecendo caminhões para a Oban - só quando o conjunto da burguesia achou que era chegada a hora de
mudar para, lampedusamente, tudo continuar como sempre esteve...
Agora, coerente com a sua história, quer derrubar o governo altamente popular do Presidente Lula.
"Como explicar a atual posição da imprensa?", perguntou outro dia o professor Venicio Lima.
Certamente,
muitas pesquisas precisarão ser feitas para explicar o atual
comportamento dos meios de comunicação no Brasil. Se toda unanimidade é
burra, como dizia Nelson Rodrigues, estamos diante de um caso que já se
configura paradigmático. Somente idiossincrasias e preconceitos não
explicam a posição da imprensa nesta campanha, posição que não é
somente a dos "donos dos jornais", nem apenas a de alguns e algumas
importantes e hiper bem remunerados colunistas, mas a de ampla maioria
dos profissionais que se dizem "jornalistas" - todos diplomados. Servem
com denodo, dedicação e até alegria aos seus patrões assim com os
soldados SS serviam a Hitler... É mais do que meramente "cumprir
ordens". É acreditar nelas. É se querer reconhecido e recompensado por
cotidiana, diária, contumaz demonstração de absoluta fidelidade a elas.
Nas palavras de Serge Halimi, são os novos "cães de guarda".
Diante
da pergunta, arrisquemos alguma hipótese. Não é possível dissociar o
papel político-ideológico da "mídia", de sua organização enquanto
empreendimento capitalista e do seu lugar na reprodução do sistema do
capital. E, considerando a condição periférica do capitalismo
brasileiro, qualquer reflexão nos obriga a tentar entender o papel
dessa "mídia" na reprodução de 500 anos de periferia.
A
partir dos anos 1950, em parte devido a forças sociais endógenas mas em
boa parte devido à configuração internacional do capitalismo sob
liderança econômica, cultural e militar dos Estados Unidos, o Brasil,
como muitos outros países, ingressou na época de sua industrialização e
urbanização desenvolvimentista. Tratava-se de expandir aqui dentro uma
sociedade de consumo similar à estadunidense. No entanto, como as
forças econômicas que comandavam essa expansão nos eram externas, a
concentração de renda era uma condição sine qua non de exportação de
parte do excedente internamente gerado pelo próprio desenvolvimento,
daí havendo-se que bloquear as possibilidades de sua melhor
distribuição social. A sociedade do consumo a brasileira, ao contrário
do que acontecia no "fordismo" estadunidense, não poderia estender-se
para todos. Foi essa a natureza do debate, nos anos 1950. Para Celso
Furtado e os desenvolvimentistas isebianos de esquerda, nacionalistas
por obrigação e opção, a industrialização precisaria, principalmente,
servir para a oferta e consumo de bens de salário. Para Roberto Campos
e os desenvolvimentistas de direita, entreguistas por opção, a
industrialização somente deveria servir para a oferta e consumo de bens "supérfluos".
Para
a mídia brasileira periférica, a segunda opção seria natural.
Vendendo marcas, estilo de vida, valores consumistas, ascensão social,
status, isto é, sustentada pela indústria automobilística,
eletro-eletrônica, cosmética e similares estrangeiras, a imprensa se
colocaria contra o projeto de desenvolvimento que, nas condições da
época, exigiria reter a expansão acelerada do consumo conspícuo, de
modo a favorecer, em primeiro lugar, a expansão do consumo básico, daí
permitindo a inclusão social da maioria menos favorecida. Ela só podia
falar para a classe média consumista, não para os pobres - ou, para
estes, somente falava de crimes, através dos famosos jornais "espreme/sai sangue". Falava para a Zona Sul do Rio de Janeiro; para o
Morumbi, em São Paulo. Precisava identificar-se com os temores,
preconceitos, senso comum, arrogância, identidade elitista dessa classe
média, para conquistar os números de circulação que lhe permitiria
angariar anunciantes. Por isso, expressando a maneira de pensar desse
seu público, colocava-se radicalmente contra qualquer proposta que
pudesse cheirar a "populismo". E para escrever seus editoriais, suas
colunas, suas reportagens podia contar com bons jornalistas egressos
cultural e intelectualmente do mesmo meio social. Logo, com os mesmos
preconceitos e as mesmas ambições.
Para
enfrentar tal fogo de barragem, Getulio Vargas pensou em usar a mesma
artilharia. Capitalizou Samuel Wainer para que criasse um jornal de
alta qualidade que, na forma, na linguagem, nas seções editoriais se
mostrasse similar ao que melhor se poderia fazer na mídia de então
(inclusive com coluna de "mulher boa"), mas politicamente engajado,
seja pelos editoriais, seja por opções na pauta e nos lides, com o seu
projeto nacionalista popular. A Última Hora de Wainer obteve um
estrondoso sucesso. Em poucos meses, superou a circulação individual
dos seus principais concorrentes. Em princípio, pela lógica da
audiência, deveria atrair copioso faturamento publicitário. Não atraiu.
Foi sempre um empreendimento deficitário apesar do sucesso de público.
É que sua fachada de indústria cultural não conseguia disfarçar a sua
condição de imprensa política, ao não submeter também o seu conteúdo
noticioso e editorial àquilo que a mídia? (e, no caso, a mídia
periférica), bem como as agências de publicidade, considerariam "objetivo", "neutro", "independente".
O
golpe de 1964 iria consolidar, de vez, essa relação entre uma sociedade
de consumo excludente para uma mídia exclusiva, e uma mídia
exclusiva para uma sociedade de consumo excludente. A estreita classe
média consumista, encurralada por trás dos muros de seus condomínios de
elite apartada, confirmou-se como base econômica, cultural e ideológica
de uma mídia também estreita, aglomerada em seus poucos e imponentes
canais oligopolistas de veiculação. É um mercado onde só cabe uma
grande revista semanal de grande circulação; um ou dois jornais
importantes nas grandes capitais, quaisquer deles com circulação,
convenhamos, ridícula; não mais que 400 livrarias em todo o país
vendendo best-sellers e auto-ajuda (o mesmo que existe apenas em Buenos
Aires, vendendo livros da melhor qualidade); principalmente, duas ou
três grandes redes nacionais de televisão.
E assim deveria seguir o mundo. Pelo menos, o Brasil.
Mas
o Brasil decidiu diferente. Por um conjunto grande de fatores, não
apenas devido aos dois mandatos de Lula, mas também a eles, o país
realmente mudou. Aquela classe média estreita e elitista viu-se
superada quantitativa e qualitativamente por uma nova classe média,
mais popular pelas suas origens, consumista também, mas desconectada e
desinteressada da opinião publicada da grande mídia. Finalmente, uma
grande massa da população foi incorporada à sociedade de consumo. Mas,
talvez até pelos seus defeitos, sobretudo o seu baixo nível educacional
e cultural, não foi incorporada à leitura semanal de Veja, nem à diária
de O Globo. Ao mesmo tempo, neste preciso instante, emergem novos meios
de comunicação, todos eles audiovisuais, como a TV por assinatura, a
internet, o celular, que atraem essa audiência neoconsumidora para
novas formas de produção e consumo de cultura industrial e publicidade.
A realidade fabricada por aquela mídia parece nada dizer a esta
audiência. Sobretudo quando ela insiste em denunciar supostos
arrivistas da política, já que, de muitos modos, arrivistas são todos
esses neoconsumidores.
A
velocidade com que essas mudanças estão se dando na sociedade
brasileira pode, realmente, estar ameaçando todo o modelo de negócios
de oligopólios que se pretendiam eternos, logo também as relações,
carreiras e ambições profissionais a eles endógenas. Parece que foram
surpreendidos, tanto as empresas, quanto os seus cães de guarda, sejam
os assalariados, sejam os PJs, paridos e educados, todos e todas, na
mesma arrogante elite social. Daí o desespero...
Se
a hipótese estiver correta, ainda testemunharemos, nos próximos anos,
grandes mudanças econômicas e políticas nesta centenária mídia
nativa. No entanto, a vitória de Dilma Rousseff ou a de José Serra será
decisiva no encaminhamento de medidas legais e regulatórias, a esta
altura inadiáveis, que definirão o tempo e condições de sobre-vida dos
dinossauros mediáticos brasileiros. A mídia brasileira parece apostar
que Serra será o seu Capitão Spurgeon Fish Tanner (Robert Duvall) de Impacto Profundo, jogando sua nave contra o meteoro
econômico-cultural que lhe ameaça a própria sobrevivência... Só que a
história é um processo real, não um roteiro hollywoodiano.
*professor do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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