Entrevistas
Coletivo Lutarmada lança novo cd
Gas-PA além de rapper é militante político, usa a arte para a
conscientização em busca de uma sociedade mais justa. Por meio do
Coletivo LUTARMADA desenvolve trabalhos de base com projetos políticos
e cursos de formação na periferia do Rio de Janeiro, em paralelo à
produção musical. Em entrevista ao Fazendo Media, ele fala sobre o seu mais novo CD, analisa as corporações de mídia e comenta sobre o hip hop brasileiro nos dias de hoje.
Quantos CDs O Levante já lançou? As letras do disco são todas de sua autoria?
Dois CDs: O Temeremos mais a miséria do que a morte, e agora o Estado de direito. Estado de direira.
No primeiro, tirando uma letra que tem coautoria do K-Lot (um MC da
velha escola fluminense, que também acaba de lançar um CD), todas as
outras são de minha autoria, e o Mimil só interpretava as músicas. Mas
no Estado de direito. Estado de direita, não. Esse é até um
papo que me emociona, pois me faz lembrar que há 4 anos eu fui lá na
favela que ele mora e levei o primeiro livro. Depois ofereci outro. O
terceiro eu já nem precisei levar. Mimil, que tinha uns 25 cm menos do
que tem hoje, foi lá em casa buscar. Hoje, ele que no começo era apenas
um fã, é autor de duas letras desse disco. Fiz uma parte da Meu estilo de vida, já a Combativo e internacionalista,
foi o contrário. Ele apareceu com uma letra pronta, sem refrão. Daí eu
fiz o refrão, botei mais meia dúzia de versos, e a música ficou daquele
jeito. O nome disso é trabalho de base.
Queria que você falasse da escolha do nome do disco.
Estado de direito. Estado de direita, é por que sabemos que
o Direito é só uma forma de legitimar a dominação, já que a propriedade
privada dos meios de produção é assegurada no Estado burguês. E todos
os outros “direitos” são apenas uma conseqüência desse, por isso até
que nós o conquistemos ele será de direita.
E as fotos da capa e contra-capa(uma foto histórica do Luiz Morier) do cd?
A capa é pra mostrar qual o direito que nós temos nesse Estado. Nela
mostramos dois momentos de uma mesma instituição: no escravismo e no
capitalismo. Antes, sob o nome de Capitão do Mato, ela caçava, prendia
e matava pretos e pretas. Hoje, mais de um século de república, com o
nome de polícia, ela caça, prende e mata pretos e pretas. E as duas
fotos, mostrando pessoas pretas amarradas, umas às outras pelo pescoço,
tanto no escravismo, quanto no capitalismo, é para mostrar o “quanto
que esse país mudou”, de lá pra cá.
Você acha que a mídia contribui para a criminalização da pobreza no Rio?
Lógico. Fizemos dois eventos em uma casa noturna tradicionalmente
roqueira, mas que nos abriu as portas. Demos o serviço para todos os
jornais, e alguns divulgaram o nosso evento. Tentamos a mesma coisa
quando fizemos o 1º Hip Hop ao Trabalho, que é nosso evento anual, nos 1º de Maio, em alguma das favelas de Costa Barros. Nenhum veículo divulgou.
Mas por quê? Nesse dia se apresentaram o B Negão e a atriz/DJ Gisele
Frade, duas pessoas com nomes já projetados no mercado cultural. Mesmo
assim, nenhuma linha. Porra, nós estávamos levando cultura pro bagulho.
Se ao invés de caixas de som, microfones, pick ups, discos, nós
estivéssemos entrando de granada, fuzil, pistola… nossos nomes estariam
em todos os jornais. A mídia burguesa só gosta de repercutir o que as
favelas têm de ruim, ou algo de bom mas que não seja de iniciativa da
própria favela. Tem que ter a impressão digital de Celso Ataíde, José
Junior, Rubens Cesar Fernandes, ou outro antropófago social qualquer.
Às vezes ela faz pior, pega algo de positivo e transforma em ameaça
à sociedade. E isso não é por acaso, tem intencionalidade política.
Quem só tem acesso à “realidade” via mídia burguesa, vai acabar
acreditando que na favela só tem crime e violência. Que a violência é a
única língua que a favela conhece. Assim sendo, nada mais legítimo que
a violência com a qual o Estado trata a favela. Afinal, se for de outro
jeito a favela não entende.
E essas pessoas que crêem nessa “verdade” estão aptas a crer também
que, se não é a policia, tem que ser as ONGs, afinal, um povo que só
entende a língua da violência não é capaz de estabelecer nenhuma forma
de organização pacífica para produzir cultura, atividades esportivas e
superar os seus problemas.
Vocês usam muito o termo “revolução”. Como você imagina essa
revolução numa sociedade tão despolitizada e com os jovens tão
desinteressados pelos caminhos e pelo futuro do nosso país?
Tem que haver um trabalho árduo de educação da militância de
esquerda, e ela parece que tem nojo de favela e periferia. A esquerda
partidária, então, só pisa lá de 2 em 2 anos, ou para faturar em cima
dos corpos do desabamento ou da chacina policial. Por isso nos atos o
que se vê são as mesmas caras. Até em ato contra a criminalização da
pobreza, da qual são vítimas os favelados, a favela está ausente. Por
quê? A favela e a periferia são os terrenos mais férteis para o senso
comum. Quem deveria combater esse senso comum - que faz naturalizar a
violência do Estado contra o povo preto e pobre - se viciou em centro
da cidade. O único ano em que o Grito dos Excluídos não aconteceu no
centro, ele foi para Zona Sul! Pro asfalto!
Estamos passando por um descenso das massas, e essa situação não vai
se alterar sozinha. Ou essa militância se oferece ao trabalho de base,
onde estão as bases da sociedade, ou vai ficar o resto dos dias
reclamando que a juventude está despolitizada. A Globo está todo dia lá
fazendo o seu trabalho de base. As ONGs, também. Engana-se quem diz que
o único braço do Estado a entrar na favela é a polícia. O Estado está
lá diariamente. Vai lá e veja o esgoto a céu aberto, a escola com 2, 3
turmas em cada sala, o posto médico sem médico nem remédio, o crack, a
coca, o fuzil, a granada, a TV tela-plana financiada… isso é ou não é a
presença do ”Estado de direita”?
Outro equívoco é achar que a juventude está despreocupada com o
futuro, desmobilizada. Veja quantos jovens estão envolvidos em projetos
do 3º setor. É muita gente preocupada com o futuro, mas dentro de uma
perspectiva neoliberal. Fazer o quê? Tem quase ninguém para disputar
essas consciências com o inimigo! É preciso chegar nesses espaços antes
do desabamento e antes da chacina, mas para isso temos que educar a
esquerda.
Na música “ A verdadeira mulher da minha vida” você expressa
a preocupação de um pai em relação ao futuro da filha. Como você sonha
o mundo para estas novas gerações que virão?
Um mundo onde o alimento exista pra matar a fome, e não pra
enriquecer ninguém; onde medicina exista pra salvar vidas, prevenir e
curar enfermidades, e não pra enriquecer ninguém; onde a arte e o
esporte existam pra trazer prazer e saúde física e mental, e não pra
enriquecer ninguém; onde a solidariedade não seja uma mercadoria
vendida nas prateleiras das ONGs; onde a informação não seja uma
mercadoria e nem uma ferramenta de manipular as mentes; onde a educação
sirva para se formar seres humanos dignos e plenos, e não para
enriquecer ninguém; onde não exista mais dominados e dominantes, por
razão nenhuma. Mas isso eu sei que só com muita luta.
Um alvo das suas letras é a televisão, especialmente a Rede
Globo. Qual a dimensão do desserviço que esta emissora causa na nossa
sociedade?
Desserviço dependendo do ponto de vista, pois para a burguesia ela
cumpre o papel que se espera. Ela elege presidente, depois faz derrubar
o presidente que elegeu. Ela faz o povo clamar por um ataque contra a
Bolívia, quando seu presidente resolve pôr fim à exploração das suas
riquezas por uma transnacional. Ela faz o povo ter medo do Chávez,
achando que ele, e não os EUA, quer dominar o mundo. Ela joga no lixo a
auto-estima da mulher preta, fazendo ela acreditar que só pode ser
bonita se se aproximar de um padrão estético que não é o seu. Ela faz o
povo repudiar movimentos legítimos como o MST. Consegue deformar
outros movimentos, como o Hip Hop, que através das suas telas é um
movimento inofensivo, ostensivo, e acéfalo.
O que é o Hip Hop pra você? E qual o poder de transformação social que ele tem?
Ele é meio que minha vida, eu sou um apaixonado por ele. Como eu sou
um cara sensível, meus olhos se enchem d’água quando ouço alguma música
do Facção Central, ou a Corpo em evidência, do grupo Visão de
Rua; quando eu vejo algum moleque ou mina de uma oficina nossa fazendo
um movimento com maior grau de dificuldade, no Break; quando eu vejo um
graffiti bem feito provocando reflexão sobre o nosso cotidiano; quando
eu vejo uma performance bem criativa e bem elaborada nos toca-discos;
quando eu vejo alguém fazendo um beat-box, que se tu fechar os olhos,
tu vai pensar que tem uma banda tocando. Eu amo o Hip Hop, ele mudou a
minha vida. Não só a minha, mas a de uma porrada de gente. Pra melhor,
e, nos últimos tempos, pra pior.
Hoje, no Brasil, tem rap fazendo apologia às drogas e ao crime. Ouvi
um som um dia desses em que o cara se vangloriava de andar voado numa
moto na [Avenida]Brasil sem capacete. Conheço muita gente pelo Brasil
afora que disse que a música Voz ativa, dos Racionais, mudou
suas vidas. Conheci gente que abandonou o crime por causa deles. Hoje,
sei de gente que entrou pro crime por causa deles. As músicas dos caras
parece um intervalo comercial. Faz propaganda da Audi, Citroen, Baush
& Lomb (que eu só vim saber o que era por causa das músicas deles),
“cordão de elite 18 quilates”, modelos e outros supérfluos. A maioria
dos que escutam Os Racionais, e vê neles uma referência, ainda são
pobres. Como essa gente pobre irá responder a todos esses estímulos?
Que tipo de transformação essas músicas podem causar? Então, falar que
o Hip Hop transforma, ou não, é muito complexo. Não existe Hip Hop, e
sim Hip Hops. Vários.
Em “Rimador Radical” você diz: “ e fazer um disco inteiro
falando de maconha”, é uma crítica a Marcelo D2? Como você vê estes
artistas como ele e MV Bill?
É uma crítica a todos os aproveitadores. Levamos um camarada da
Marcha da Maconha para fazer um debate numa atividade nossa, para dar a
chance de essa garotada ter acesso a uma discussão mais qualificada
sobre a questão da criminalização das drogas. Isso tem, de fato, uma
intencionalidade política. Mas quem gasta uma faixa do disco dizendo
“se eu fumo ninguém tem nada com isso”, está querendo só vender disco e
shows. E isso vale pra qualquer gênero musical, qualquer expressão
artística. Mas quem entra na luta tem que estar preparado para isso
tudo. O inimigo não vai ficar parado olhando a nossa reação. Ele vai
tentar minar nossas forças, e em alguns casos, as armas que eles têm
são a nossa própria gente.
Como fazer para mudar a imagem do Rap para quem o conhece
através de MTV e MultiShow, naqueles clips em que o discurso são os
carrões, as mulheres gostosas e os cordões de ouro?
Você mesmo na pergunta identificou nessas músicas: machismo,
ostentação de bens de consumo e eu ainda acrescento apologia à
violência e ao regionalismo. Veja que eu estou falando de 1991 e de
propagar valores capitalistas. Esse era o momento crucial pra o inimigo
lançar mão dessa tática. Foi nessa ocasião em que a União Soviética
acabou. O capital tinha que mostrar pras novas gerações por que motivos
o “comunismo perdeu pro capitalismo”. Se a direita enxerga a força que
o Hip Hop tem pra mobilizar o povo para as suas causas, por que a
esquerda também não vê isso? É míope?
Hoje a TV ataca mais a nós do que ao MST. Quantas vezes o MST
aparece na televisão? Quantas vezes aparece o Hip Hop? Mas vê só como o
Hip Hop aparece. Aquilo que a TV faz com a gente é um ataque.
Disfarçado, mas é um ataque. E quando não é esse Hip Hop deformado,
cheio de vícios, é o Hip Hop domesticado da CUFA. A esquerda tinha que
investir boa parte do que tem em recursos financeiros, logística e tudo
o mais pra fazer a nossa arte chegar ao maior numero de pessoas. É isso
que a juventude está ouvindo nas periferias. Quer dizer, é algo meio
parecido com isso.
Mas a cegueira chega a irritar, a emputecer. 50 cent vem aqui, fala
um monte de merda, maior galera paga uma fortuna pra ver e ouvir isso,
e a esquerda não faz nada pra fazer essa disputa com a
burguesia.Gramsci tratou disso com o conceito de Guerra de
posição. Aliás, pra além de investir na música, investir também nas
outras artes do Hip Hop. Investir principalmente na formação de novos
atores nas favelas e periferias. As ONGs fazem isso o tempo todo. Das
oficinas que as ONGs realizam saem bons artistas que vão graffitar
painel pra Coca Cola, dançar no palco do Criança Esperança e fazer
músicas que atendam às demandas do mercado numa disputa insana por
prestígio e o dinheiro sujo da alienação. Sobre o cenário
internacional, para mim é foda. Conheço muito pouco, mas já vi umas
entrevistas do Dead Prez, mesmo assim prefiro não botar minha mão no
fogo.
Quem foi ou é uma referência pra você no Rap?
Public Enemy foi fundamental e necessário pra eu ser o que sou hoje.
Por eles eu entendi que o rap era algo mais que uma música, mas sim um
instrumento de luta racial/classista. Os Racionais também, naquele
momento (que se frise bem isso) também foi muito importante. Contar a
minha história sem falar neles, é mentira. Agora, pro meu trânsito de
artista-comprometido-com-a-luta, para militante orgânico, teve um cara
chamado Preto Ghoez, que foi tudo pra mim, inclusive um amigo. Uma
amizade cheia de problemas, admito, porém fundamental para minha
história na luta revolucionária.
Serviço: O cd “Estado do direito – Estado de
Direita” está a venda por R$ 5,00 na Produto do Morro, que fica no
camelódromo da Uruguaiana, Quadra D, N° 478 (acesso pela Rua da
Alfândega); na livraria KITABU, Rua Joaquim Silva 17, Lapa; na Lojinha
da Escola Nacional Florestan Fernandes, em SP, ou na mão dos
companheiros do LUTARMADA.
Para quem está fora do Rio, é só depositar R$ 15 no Banco do Brasil
ag 1508-3, conta poupança 28130-1, Gaspar F C Souza, e mandar o
endereço postal com o comprovante de depósito escanneado para
o_levante@yahoo.com.br, que o CD chega via PAC.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
—
Voltar —
Topo
—
Imprimir
|