Trabalhadores
15 anos sem Florestan: escola que leva o mestre militante no nome, na concepção e na prática pede ajuda
Por Najla Passos ANDES-SN Há exatos 15 anos, os sinos dobravam pelo mestre militante Florestan Fernandes, que morreu em São Paulo, sua cidade natal, vítima de um erro médico, aos 75 anos. A vasta obra de um dos maiores intelectuais brasileiros, entretanto, permanece viva e lúcida. Sua luta política em prol do socialismo e da escola pública e inclusiva, também. Aliás, floresce em várias frentes. Na academia, na sociologia crítica, nas ciências sociais, nas práticas militantes, no parlamento e, com especial êxito, na escola que o leva no nome, na concepção e na prática. Situada em Guararema (SP), a 65 Km da capital, a Escola Nacional Florestan Fernandes - ENFF foi fundada em 2005 pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) com o objetivo de contribuir para a emancipação da classe trabalhadora. Inaugurada quatro anos depois, oferece formação em diferentes níveis e áreas do conhecimento. São cursos livres, técnicos, de graduação e até de especialização e mestrado que, nesses cinco anos, já formaram 16 mil trabalhadores e quadros de diversos movimentos sociais do Brasil, da América Latina e da África. Entretanto, apesar da militância aguerrida de mais de 500 professores que, voluntariamente, ministram as aulas, e do trabalho cooperativo dos seus próprios alunos para mantê-la, padece de recursos financeiros para continuar funcionando. Não é para menos. Desde a sua fundação, enfrenta a fúria de uma elite dominante que a acusa de imputar um forte caráter ideológico as suas aulas, como se o ensino oferecido pelas instituições oficiais fosse ideologicamente neutro.
"As elites, simplesmente, não suportam a ideia de que os trabalhadores possam assumir para si a tarefa de construir um sistema avançado, democrático, pluralista e não alienado de ensino", afirma o jornalista e professor da PUC-SP, José Arbex Jr, membro do Conselho de Coordenação da Associação dos Amigos da ENFF, criada no ano passado para ajudar a suprir as carências financeiras da entidade.
O 1º tesoureiro do ANDES-SN, Hélvio Mariano, que participou de uma visita à ENFF em julho, ficou impressionado com a estrutura da escola. O local é muito bonito e possui capacidade para atender, ao mesmo tempo, uma grande quantidade de trabalhadores do campo e da cidade. Outro ponto que chama a atenção é a biblioteca, com mais de 40 mil títulos. Muitas faculdades não têm essa quantidade de livros, compara. Para ele, os gastos com a escola, embora pareçam alto a primeira vista, valem a pena serem pagos. "Hoje a escola tem um custo alto de manutenção, chega perto de R$ 100 mil por mês, mas quando olhamos para os benefícios que ela pode trazer para dezena de milhares de jovens do país, acho que devemos lutar para manter de pé não só a ENFF, mas o sonho do próprio Florestan, de uma educação livre e emancipadora". A também professora Heloísa Fernandes, filha de Florestan, corrobora. "O espírito de Florestan Fernandes e de sua obra está na presente na escola a partir da forma como ela foi concebida. Conhecendo meu pai e seu pensamento como conheço, tenho certeza de que, se estivesse vivo, ela já teria se mudado para lá. Por isso, para mim, ir à ENFF é como ter um reencontro com ele. Meu pai mora lá. E, consequentemente, lá é minha casa também", afirma Heloísa que, depois de mais de uma década afastada das salas de aula, redescobriu o prazer de ensinar na ENFF. A filha e a ENFF Heloísa se aposentou do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, justamente quando o pai morreu. "Eu andava muito assoberbada, cansada e descrente daquele modelo de universidade tecnocrática e produtivista que começava a se implantar no país. Para piorar, sofri demais com a perda de meu pai. Por isso, resolvi me afastar do ambiente acadêmico e me dedicar exclusivamente ao trabalho artesanal", conta. Durante mais de uma década, teceu tapetes, enquanto processava o luto e a descrença nos rumos tomados pela educação no país. Isso mudou depois que, aos poucos, foi conhecendo o projeto educacional da ENFF.
Ela resistiu muito a comparecer à inauguração da escola. "Participei de muitas cerimônias em homenagem a meu pai que só faziam minha dor aumentar. Por isso, tinha decidido não aceitar mais convites. Só fui mesmo para acompanhar minha mãe. E na véspera, quando confirmei que iria, ganhei um presente lindo. Sonhei que meu pai chegava à minha casa em um caminhão cheio de trabalhadores. Descia e, com sua bengalinha típica, caminhava até mim e dizia: Heloísa, acorda porque hoje é dia de festa". Na inauguração da ENFF, Heloísa pediu a palavra, discursou, se emocionou e iniciou uma espécie de namoro com a escola. "Queria ter certeza de que não era dogmática", frisa. Depois, passou a integrar os quadros da ENFF. "Resolvi assumir de vez essa história. Tive motivações pessoais, claro, mas essencialmente políticas. Para uma pessoa que acredita no socialismo, como eu, esta iniciativa é uma forma de se construir um novo país. Como dizia meu pai, a saída socialista é multiplicar as escolas". Na ENFF, ela atua principalmente ensinando o pensamento de Florestan e de Caio Prado Jr. Também procura discutir técnicas de pesquisa. "Tenho insistido muito para que os trabalhadores comecem a desenvolver suas próprias pesquisas ao invés de deixar que intelectuais nada comprometidos com eles continuem a fazer carreira às custas do MST", ataca. Na prática, tendo consciência disso ou não, Heloísa tenta incentivar os trabalhadores militantes que passam pela ENFF a seguir as pegadas de seu próprio pai.
O pai e sua obra Filho de uma imigrante portuguesa que trabalhava como empregada doméstica, Florestan Fernandes teve uma infância bastante humilde, cercada de privações. Aos três anos perdeu a irmã, cega. Aos sete, já trabalhava como engraxate. Conheceu na pele as mazelas da classe da qual, posteriormente, se fez porta-voz. "A infância de meu pai é muito triste, cheia de perdas e privações", resume a filha.
Em 1941, ingressou no curso de Ciência Sociais da USP. Em 1945, iniciou a carreira acadêmica como professor assistente de Sociologia. Nos anos 1950, teve participação destacada na Campanha em Defesa da Escola Pública, porque ele entendia a educação como direito fundamental de todos. Aposentado compulsoriamente pela Ditadura Militar, ministrou nas universidades de Columbia, Toronto e Yale. Retornou ao Brasil em 1978, passando a atuar na Pontíficie Universidade católica de São Paulo - PUC-SP. Passou a maior parte da sua vida fora dos partidos políticos. Como dizia o professor, amigo e companheiro de militância Antônio Cândido, "Florestan, sozinho, valia por um partido inteiro". Entretanto, participou do sonho de fundar o Partido dos Trabalhadores. E pelo PT, foi deputado federal por dois mandatos. Inclusive deputado constituinte, o que lhe rendeu uma grande decepção, quando descobriu que os defensores da escola privada ganhariam a batalha pelo modelo de educação adotado pelo país. "A luta pela escola pública foi a mais precoce em Florestan e é coerente com sua interpretação da sociedade brasileira como uma sociedade que fez avançar o capitalismo às custas de refrear a construção de uma Nação, ou seja, às custas do tempo político e, portanto, da cidadania. Para ele, sempre esteve claro que, entre nós, a constituição de uma democracia da maioria, a construção de uma república, passa pela destruição da nefasta herança escravocrata que manteve a terra e a educação como privilégios de uma minoria. Seu projeto de Nação passava pela educação pública, de qualidade. Via educação pública, começaríamos a destruir o muro que separa o nosso país em duas nações, como ele costumava dizer", explica a filha. No final da vida, andava descrente dos rumos tomados pela legenda. "Nunca pensei que fosse encontrar no meu partido o medo da ralé", dizia ele, conforme lembra a filha Heloísa. Ela recorda também que Florestan sempre desconfiou muito dos intelectuais, especialmente os brasileiros. Ele sabia que muitos dos seus companheiros não eram marxistas autênticos, mas "importados", que não entendiam as reais necessidades do nosso povo.
Principal legado A professora Heloísa Fernandes não se dá por vencida frente ao desafio de classificar qual foi a maior contribuição deixada por seu pai, reconhecido como importante e imprescindível professor, intelectual, cientista, político e militante. "Penso que o mérito maior de Florestan foi o de ter conseguido que os papéis confluíssem e se sobredeterminassem. Foi assim que ele conseguiu realizar seu grande projeto: o de ligar o ofício de sociólogo e a melhor investigação sociológica à construção de um pensamento socialista no Brasil", afirma.
Ela acrescenta que Antonio Candido foi direto ao ponto quando disse que Florestan procurou "usar o rigor do conhecimento para intervir lucidamente nos graves problemas do nosso tempo. Nele, o sociólogo, o antropólogo construíram uma base sólida sobre a qual se ergueu a plataforma do revolucionário." Por isso, Heloísa é incisiva ao afirmar que seu maior legado foi uma interpretação da sociedade brasileira que contribui decisivamente para um pensamento socialista no Brasil que não é dogmático, que não é importado, nem vazio, mas que está fincado nas raízes da nossa história e nas lutas do nosso povo. "Foi o sociólogo que ele era que impediu que ele se transformasse num marxista dogmático. Foi o pesquisador das relações raciais no Brasil e as descobertas que fez sobre a dominação autocrática que impediram que ele submergisse numa narrativa teleológica das classes sociais", afirma ela. E esclarece: "apesar do privilégio que sua análise concede à classe operária, mesmo assim sempre manteve o foco nos condenados da terra, os párias da terra, como ele dizia, os negros, os indígenas, os trabalhadores semi-livres, como ele insistia em chamar. Esse foco na massa imensa de brasileiros que está aquém ou para além da classe operária, é o foco do sociólogo".
Educação emancipadora Hélvio Mariano destaca que o modelo de ensino oferecido pela ENFF é muito diferenciado do adotado pela maioria das universidades, inclusive as que atuam em convênio com a escola. "Os objetivos são diferentes, a estrutura é diferente, e isso passa pela autonomia da ENFF de pensar seus próprios cursos e para quem serão destinados sem se preocupar com a chancela do Ministério da Educação. São cursos voltados para trabalhadores e centenas movimentos sociais da América Latina, do Caribe e, agora, de países africanos". Pela experiência que vivenciou na ENFF, o diretor do ANDES-SN não tem dúvidas de sua importância para a formação de novos dirigentes para os Movimentos Sociais, não só do Brasil, mas da América Latina e África. "No momento, existem mais de cem haitianos estudando lá. Qual universidade brasileira já recebeu cem estudantes do Haiti? Nenhuma", denuncia. Ele, que visitou aquele país recentemente, afirma que uma das maiores reivindicações da comunidade acadêmica da Universidade do Haiti é que o Brasil receba estudantes e professores, pois depois do terremoto não há mais condições deles trabalharem ou estudarem lá. "Entretanto, até o momento, o que estamos assistindo é diversas universidades debatendo se recebem um, dois ou mais estudantes do país. Enquanto isso, a ENFF recebe cem estudantes haitianos de uma só vez, além de estudantes de diversos países da América Latina". De acordo com Hélvio, essa interação cria um ambiente de troca de experiências que ajuda a criar laços para atividades conjuntas no futuro, não só no Brasil, mas em outros continentes.
Como apoiar a ENFF No seu 55º CONAD, realizado em Fortaleza de 24 a 27/6, o ANDES- SN aprovou uma Moção de Apoio à ENFF. "Foi uma iniciativa muito positiva do Sindicato Nacional docente, uma homenagem não só a escola, mas também ao grande Florestan Fernandes. A escola é umas das mais belas experiências em gestação no Brasil dos últimos anos. Seria muito frustrante ver tudo aquilo acabar por falta de apoio dos sindicatos e dos trabalhadores", afirma. Segundo ele, uma das formas mais simples de manter viva a ENFF é se associar diretamente a Associação de Amigos da Escola Florestan Fernandes. Para obter mais informações sobre como participar e contribuir, procure a secretaria executiva Magali Godoi através dos telefones: 3105-0918; 9572-0185; 6517-4780, ou do correio eletrônico: associacaoamigos@enff.org.br.
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