Pol�tica
Apontamentos sobre Gramsci e a questão meridional
Publicado em 30.07.2010 - Por Antônio Augusto
Antonio Gramsci escreve Alguns temas da questão meridional em fins de setembro de 1926, às vésperas de sua prisão pelo regime fascista em 8 de novembro. O manuscrito permanece inconcluso, mas recuperado por seus camaradas, é publicado pela primeira vez em janeiro de 1930, em Paris, na revista Stato Operaio, do PCd’I (1), com a seguinte nota introdutória: “ O escrito não está completo e provavelmente seria ainda retocado, aqui e ali, pelo autor. Reproduzimo-lo sem nenhuma correção, como o melhor documento de um pensador político comunista, incomparavelmente profundo, forte, original, rico em desenvolvimentos amplos”. (2). A nota faz justiça a Gramsci. Mas, para além disso, “Alguns temas...” sintetiza também o mais avançado desenvolvimento político alcançado pela classe operária italiana, em particular, a elaboração política mais avançada dentro de seu partido político mais consciente, o PCd’I. A questão meridional, o atraso do sul da Itália (Mezzogiorno – Meio-Dia), no qual se incluem as ilhas, Sicília e Sardenha, Gramsci sempre a vivenciou, ele mesmo um sardo. A unificação italiana, sonhada já de maneira embrionária por Maquiavel (1469-1527) – sua obra O Príncipe é de 1513 -, ocorre tardiamente com a criação do Reino da Itália, em 1861, sob a liderança da Casa de Savóia, a monarquia piemontesa, no bojo de largo e secular movimento histórico conhecido como o Ressurgimento. O Piemonte, no norte da península, região na qual o capitalismo mais se desenvolve, desempenha o papel central na unificação, feita às expensas do sul, agrário, onde a burguesia prima pela ausência. O processo exemplifica o que Gramsci chamará nos Cadernos do Cárcere de “revolução passiva”, “revolução pelo alto”, ou “revolução sem revolução”, em que as mudanças se dão sob a égide dos moderados, com a subordinação das forças efetivamente democráticas, ou seja, populares; um processo em que o então moderno, o capitalismo, se desenvolve com a integração de forças econômico-sociais e históricas arcaicas, contra mudanças substancialmente democráticas. Na Itália, enfim unificada, embora de maneira precária, dada a fragmentação nacional anterior, se consolida e cristaliza “a questão meridional”: perpetua-se o atraso do sul para subsidiar a acumulação capitalista no norte. Continuam e, de certo modo, se agudizam tensões contra a unidade italiana. “Ao mar os continentais” Giuseppe Fiori, na biografia pioneira e mais conhecida de Gramsci, descreve a rebelião sarda de 1906, contra a fome e a repressão, na qual houve sangue derramado, inclusive assassinatos de manifestantes. Cagliari, capital da ilha, foi ocupada por 5 mil homens, entre soldados, marinheiros e carabineiros. “Naqueles anos”, ele diz, “tinha-se agravado a separação entre Norte e Sul italianos. Com a proteção alfandegária para as indústrias nortistas, as economias do Sul e das ilhas se viam extremamente prejudicadas; as fábricas do Norte, favorecidas pelo protecionismo alfandegário, expandiam-se e outras surgiam”. Eis como um jornalista do Il Secolo, Luigi Locatelli, citado por Fiori, viu a Sardenha durante os levantes: “Não resta dúvida de que existem todas as leis, especialmente o lado odioso delas, acima de tudo o aspecto fiscal... Só não existem os direitos. Na Sardenha, as tarifas ferroviárias são as mesmas ou talvez mais elevadas que na Itália, com a diferença, porém, de que aqui se viaja com um atraso e uma falta de conforto intoleráveis. Os cidadãos pagam os mesmos impostos que em Roma, Milão ou Turim. Quando, no continente, um funcionário demonstra ser ignorante ou desonesto, é logo presenteado aos sardos, com o objetivo de mandar um elemento que, além da ignorância ou culpa comprovada, ainda carrega consigo a raiva pela punição”. Em 1907, dezenas de magistrados e escrivães desembarcaram na Sardenha para o julgamento dos 170 acusados dos levantes do ano anterior. Abriram uma igreja não consagrada, a de Santa Restituta, para instalar juízes, testemunhas e acusados. Gramsci tinha então 16 anos, estudava num colégio em Santulussurgiu, onde morava, separado da família, a 18km de sua aldeia natal, Ghilarza. “Era um ginásio muito pobre”, relembrará, “um pequeno ginásio onde apenas três professores lecionavam em todas as cinco séries”. E, mesmo assim, professores ausentes durante boa parte do ano letivo. Mais tarde Gramsci relatará seus sentimentos e pensamentos durante a insurreição sarda: “Naquela época eu pensava que era preciso lutar pela independência nacional da região. Quantas vezes repeti essas palavras: ‘Ao mar os continentais’ “. A formação de um socialista O Partido Socialista Italiano, fundado em 1892, era mais recente ainda na Sardenha. As primeiras tentativas de implantação datam do início do recém-começado século XX. Antonio entrará em contato com o socialismo através do irmão mais velho, Gennaro, convertido ao socialismo ao prestar serviço militar em Turim. Mais tarde, quando Antonio vai para o liceu em Cagliari, mora com Gennaro, que em 1911 já era Caixa da Câmara do Trabalho (uma espécie de liga sindical) e secretário da seção socialista da cidade. Gennaro contou a Fiori sobre a atividade preferida do irmão, a leitura: “Nino [apelido de Antonio] lia de tudo. Uma grande quantidade de material propagandístico, livros, jornais, opúsculos, acabava em nossa casa. Nino, que na maioria das vezes passava as noites fechado no quarto sem sair sequer para dar uma volta, em pouco tempo começou a ler aqueles livros e jornais”. Com imensas dificuldades, dadas as dificuldades financeiras de sua família, Antonio fez o concurso em Turim para disputar uma das 39 bolsas de estudos, entre 70 concorrentes, oferecidas a estudantes sardos, na universidade dessa importante cidade, coração do industrialismo e da classe operária. Durante os exames orais, desmaia duas ou três vezes, conseqüência da fome e de privações. Mas conquistou o objetivo, pois se classificou em nono lugar. Outro estudante, vindo da Sardenha, embora nascido em Gênova, ficou em segundo lugar; tratava-se de Palmiro Togliatti, mais tarde companheiro de Gramsci na Universidade de Turim, na seção socialista de Turim, em L’Ordine Nuovo (periódico animador e porta-voz do movimento dos Conselhos de Fábrica), na fundação do PCd’I em janeiro de 1921 e na militância comunista subsequente. Togliatti será o principal dirigente comunista italiano de 1930 até sua morte em 1964. Ao recordar os anos comuns de universidade, Togliatti esboça assim o perfil político do companheiro: “Ele pensava que a Sardenha devia redimir-se através de uma luta contra o continente e contra os continentais pela sua própria liberdade, pelo próprio bem-estar, pelo próprio progresso. Antonio Gramsci chegou da Sardenha já socialista. Talvez fosse mais por instinto de rebelião do sardo e pelo humanitarismo do jovem intelectual de província, do que pela posse de um sistema completo de pensamento”. Fiori sintetiza outro traço constitutivo do Gramsci de então: “Certo é que o socialismo do jovem estudante coincidia muito pouco com o socialismo em voga naquele tempo, ideologicamente dominado pela filosofia do positivismo”. O Sul e a guerra As tendências do jovem, presentes na afirmação do biógrafo, se comprovam num artigo de Gramsci já de 1916, O Sul e a guerra, exemplo do seu cada vez rápido e crescente amadurecimento político e intelectual. O PSI veicula ideologias vulgares e correntes, burguesas, sobre a questão meridional, caracteriza o Mezzogiorno como “a bola de chumbo da Itália”; apresenta os habitantes do Sul como inferiores, criminosos, bárbaros, por razões biológicas; chama-os de preguiçosos e indolentes; etc. Em O Sul e a guerra, publicado em Il grido del popolo (1/4/1916), Gramsci, ao contrário, diz: “A nova Itália encontrará em condições absolutamente antitéticas os dois troncos da península, meridional e setentrional, que se reuniam depois de mais de mil anos. [No Norte,] a tradição de uma certa autonomia criara uma burguesia audaz e cheia de iniciativas; e existia uma organização econômica similar à dos outros Estados da Europa, propícia ao ulterior desenvolvimento do capitalismo e da indústria. Na outra, as administrações paternalistas da Espanha e dos Bourbon nada criaram: a burguesia não existia, a agricultura era primitiva e não era sequer suficiente para abastecer o mercado local; não havia estradas, nem portos, nem utilização das poucas águas que a região, pela sua especial conformação geológica, possuía. A unificação pôs em íntimo contato as duas partes da península. A centralização bestial confundiu suas exigências e necessidades, e o efeito foi a emigração de todo dinheiro líquido do Sul para o Norte, com o fim de encontrar rendimentos maiores e mais imediatos na indústria, bem como a emigração dos homens para o exterior, a fim de encontrar o trabalho que faltava no próprio país. O protecionismo industrial elevava o custo de vida do camponês da Calábria, sem que o protecionismo agrário, inútil para ele, que produzia, e nem sempre sequer isso, só o mínimo que era necessário ao seu consumo, conseguisse restabelecer o equilíbrio. A política exterior dos últimos trinta anos tornou quase estéreis os efeitos benéficos da emigração. As guerras eritréias, a da Líbia, levaram à emissão de empréstimos internos que absorviam as poupanças dos emigrados. Fala-se freqüentemente da falta de iniciativa dos sulistas. É uma acusação injusta. O fato é que o capital busca sempre as formas mais seguras e mais rentáveis de investimento, e o governo ofereceu, com demasiada insistência, a dos bônus qüinqüenais. Onde já existe uma fábrica, essa continua a se desenvolver através da poupança; mas onde toda forma de capitalismo é incerta e aleatória, a poupança suada e acumulada com dificuldade não confia e vai se pôr onde encontra imediatamente um lucro tangível. Assim, o latifúndio, que em dado período tendia a se fragmentar naturalmente entre os americanos que voltavam ricos, continuará ainda a ser por algum tempo a chaga da economia italiana, ao passo que as empresas industrias do Norte encontram na guerra uma fonte de lucros colossais, e toda a potencialidade nacional dirigida para a indústria de guerra se circunscreve cada vez mais ao Piemonte, à Lombardia, à Emília, à Ligúria, fazendo enlanguescer o pouco de vida que existia nas regiões do Sul”. A I Grande Guerra significou o verdadeiro cadinho da unidade italiana. Movimentou multidões pela península. Trouxe agruras inauditas. Amalgamou com o sangue das trincheiras homens de regiões diferentes. Pôs na ordem do dia a mobilização de milhões de homens, o sofrimento e o atendimento de suas necessidades prementes. Massas enormes tomaram conhecimento da ação governamental, estatal, vivenciaram seus efeitos ou ausências – numa palavra, se aproximaram, por força das circunstâncias, da política. Antes mesmo da explosão deste turbilhão, Gramsci retratará numa nota dos Cadernos a trajetória implícita na sua mudança para Turim: “superar um modo de viver e de pensar atrasado, como era próprio de um sardo do início do século, a fim de se apropriar de um modo de viver e de pensar não mais regional e paroquial, e sim nacional”. Franco de Felice e Valentino Parlato apontam tal percurso como uma “experiência pessoal duríssima e difícil”. Leve-se em conta ainda as transformações exponenciais da época, imediatamente por vir, como a guerra mundial, e a Revolução Russa. Mas quem mais sugestivamente concebe o processo vivido por Gramsci é seu amigo Piero Gobetti, grande intelectual, democrata antifascista, assassinado aos 24 anos de idade pelos fascistas: “Parece ter vindo do campo para esquecer suas tradições, para substituir a herança doente do anacronismo sardo por um esforço denso e inexorável rumo à modernidade do citadino. Traz na pessoa física o sinal dessa renúncia à vida rural, bem como a superposição quase violenta de um programa construído e revivificado pela força do desespero, da necessidade espiritual de quem rechaçou e renegou a inocência nativa”. Operários e camponeses Os acima citados, Felice e Parlato, organizaram uma antologia de textos gramscianos sobre a questão agrária na Itália, intitulada A questão meridional (a primeira edição italiana em 1966, há tradução brasileira de 1987). O livro se compõe de dez textos de Gramsci, e de uma larga introdução dos organizadores. O primeiro deles, o referido O Sul e a guerra, de 1916; o último, e mais importante, o fundamental Alguns temas da questão meridional, de 1926. A ordem dos textos no volume é cronológica. Em L’Ordine Nuovo, revista organizada pelos jovens intelectuais socialistas de Turim, depois porta-voz do movimento dos Conselhos de Fábrica, Gramsci publica três artigos, todos com o título Operários e camponeses, seguidos das indicações I, II e III, segundo as datas de aparecimento no periódico. Em Operários e camponeses (I), de 2 de agosto de 1919, o autor analisa a psicologia social do camponês: “[ ] o camponês era deixado completamente à mercê dos proprietários e de seus sicofantas e dos funcionários públicos corruptos, e a preocupação maior de sua vida era a de se defender corporalmente das insídias da natureza elementar, dos abusos e da barbárie cruel dos proprietários e dos funcionários públicos. O camponês sempre viveu fora da lei, sem personalidade jurídica, sem individualidade moral: permaneceu um elemento anárquico, o átomo independente de um tumulto caótico, freado somente pelo medo da polícia e do diabo. Não compreendia a organização, não compreendia o Estado, não compreendia a disciplina, capaz de inauditos sacrifícios na vida familiar, era selvagemente violento e na luta de classe, incapaz de se propor um objetivo geral de ação e de persegui-lo com perseverança e luta sistemática. Quatro anos de trincheira e de exploração sangrenta mudaram radicalmente a psicologia do camponês. Essa mudança se verificou particularmente na Rússia, e é uma das condições essenciais da revolução. Os instintos individuais egoístas foram atenuados, modelou-se um espírito unitário comum, [ ] Conceberam o mundo não mais como uma coisa indefinidamente grande como o universo ou mesquinhamente pequena como o campanário da aldeia [ ] Estabeleceram-se vínculos de solidariedade que, de outro modo, somente dezenas e dezenas de anos de experiência histórica e de lutas intermitentes teriam suscitado; em quatro anos, na lama e no sangue das trincheiras, surgiu um mundo espiritual ávido de afirmação em formas e institutos sociais permanentes e dinâmicos”. “[ ] somente com a força dos operários fabris, a revolução não poderá se afirmar de modo estável e difuso: é necessário articular a cidade com o campo, suscitar no campo instituições de camponeses pobres sobre as quais o Estado socialista possa se fundar e se desenvolver, através das quais o Estado socialista possa promover a introdução das máquinas e produzir o grandioso processo de transformação da economia agrária. Na Itália essa obra é menos difícil do que se pensa: durante a guerra ingressaram na fábrica urbana grandes massas da população rural. A propaganda comunista rapidamente as atingiu. Elas devem servir como cimento entre a cidade e o campo, [ ] iniciarem precisamente a atividade necessária para provocar o surgimento e o desenvolvimento das novas instituições que incorporem ao movimento comunista as amplas forças dos trabalhadores do campo”. Aliança revolucionária operário-camponesa Gramsci destaca em Operários e camponeses (II), de 3 de janeiro de 1920: “O que obtém um camponês pobre invadindo uma terra inculta e mal cultivada? Sem máquinas, sem uma habitação no lugar de trabalho, sem crédito para esperar o tempo da colheita, sem instituições cooperativas que comprem a própria colheita (e isso se chegar à colheita sem antes ter se enforcado no mais forte arbusto do bosque ou na mais tísica figueira da terra inculta!) e o salvem das garras dos usurários, o que pode ganhar com a invasão um camponês pobre? Ele satisfaz, num primeiro momento, seus instintos de proprietário, mata sua primeira fome de terra: mas, num segundo momento, quando percebe que só os braços não bastam para arrotear uma terá que só a dinamite consegue romper, quando percebe que são necessários os adubos e os instrumentos de trabalho, e pensa que ninguém lhe dará essas coisas indispensáveis, e pensa na série futura dos dias e das noites a passar numa terá sem casas, sem água com a malária, o camponês sente sua impotência, sua solidão, sua condição desesperada, e torna-se um bandido, não um revolucionária, torna-se um assassino dos ‘senhores’, não um lutador do comunismo”. “A burguesia setentrional subjugou a Itália meridional e as ilhas reduzindo-as a colônias de exploração. O proletário setentrional, emancipando a si mesmo da exploração capitalista, emancipará as massas camponesas meridionais subjugadas pelos bancos e pelo industrialismo parasitário do Norte. A regeneração econômica e política dos camponeses não deve ser buscada numa divisão das terás incultas ou mal cultivadas, mas na solidariedade com o proletário industrial, que precisa, por sua vez, da solidariedade dos camponeses, que tem ‘interesse’ em que o capitalismo não renasça economicamente a partir da propriedade fundiária, e tem interesse em que a Itália meridional e as ilhas não se tornem umam base militar da contra-revolução capitalista”. Quanto a Operários e camponeses III, de 20 de fevereiro de 1920, Gramsci analisa a aliança operário-camponesa à luz de aspectos da luta política existente. Polemiza com o influente diário burguês de Turim, La Stampa – o jornal existe ainda hoje, atualmente é o terceiro maior da Itália, e propriedade da Fiat -, cuja linha demagógica se baseava na integração subordinada do reformismo do Partido Socialista à política do grande capital. Para isso, La Stampa, diz não se opor à luta de classes, ao que Gramsci sarcasticamente responde: “O escritor de La Stampa protesta vigorosamente contra qualquer pessoa que ouse pô-lo correr atrás das harmonias sociais e de negar que a luta de classe é a mola da história! Portanto, esse vigoroso protesto significa que o escritor de La Stampa acredita que, no momento atual, a história não precisa de mola; ou significa que o escritor de La Stampa afirma que, em geral, a luta de classe é a mola da história, mas, em cada caso particular, nada quer saber das maléficas molas”. Em outra passagem da polêmica, Gramsci denuncia a demagogia do jornal burguês quanto à questão camponesa: “A questão dos camponeses preocupa o escritor de La Stampa. Ele a resolve alegremente, triunfalmente. Os camponeses serão o martelo do comunismo. Cuidado, operários, vocês querem livrar suas nucas do pé bem calçado da civilizada burguesia moderna; ora, irão encontrar na nuca a bota de ferro do camponês. [ ] Na Alemanha e na Hungria, o movimento dos proletários não foi seguido por um estrato do movimento de camponeses pobres: as cidades em revolta permaneceram sós, circundadas pela incompreensão e pela indiferença do campo, e a reação clerical e capitalista se apoiou solidamente no campo. Na Rússia, a revolução proletária de novembro foi precedida por irresistíveis movimentos revolucionários no campo: o partido dos camponeses russo (ou populistas ou social revolucionários) rachou em dois troncos por causa de tais movimentos, e o exército, constituído em sua maioria de camponeses, se decompôs. A classe operária urbana se aproveitou dessas condições de decomposição do estado, abalada até nas raízes por esses colossais movimentos rurais, e tomou de assalto o poder governamental”. Noutra parte, Gramsci concentra sua atenção sobre o Partido Popular, católico, partido de bases camponesas: “A luta de classe eclodirá de modo violento e irresistível também no campo italiano: também na Itália, o Partido popular se romperá em dois troncos. Os vínculos religiosos certamente não bastam para frear a luta de classe, que é ‘a mola da história’. E também na Itália será a classe operária que se porá na vanguarda da revolução, porque – entre os oprimidos pela propriedade privada – só o proletariado tem uma doutrina política, o marxismo, tem uma cultura, tem uma psicologia unitária, tem uma disciplina, porque só a classe operária pode, a partir do mundo do trabalho, da fábrica, organizar uma sociedade nova capaz de vida e de desenvolvimento”. Representante do PC na Internacional Comunista A elaboração política e intelectual de Gramsci é indissoluvelmente ligada à luta política, feita à luz dela. Toda sua vida foi a de um militante. Os anos da guerra; a Revolução Russa; o movimento dos Conselhos de Fábrica na cidade mais vermelha da Itália, Turim; a precariedade política e ideológica do PSI; a cisão que dá origem ao PC italiano em janeiro de 1921; a questão meridional; a ascensão do fascismo; são fatos fundamentais aos quais Gramsci dedica toda a sua atenção e ação. O período 1921-1926 se caracteriza na atividade política de Gramsci pela trajetória política do recém-fundado Partido Comunista, marcado pela luta política interna partidária, que vai da política ultra-sectária representada por Amadeo Bordiga (principal dirigente no congresso de fundação do PC) – política que chega praticamente a negar a atuação sindical, descarta a participação eleitoral (autodefine-se como abstencionista), nega o próprio movimento de massas; reduz a atividade “política” quase apenas à pregação pela ditadura do proletariado e pelo fim do capitalismo –, à vitória das concepções políticas e ideológicas frentistas de Gramsci, e da Internacional Comunista, no Congresso de Lyon, em janeiro de 1926. Concepções que travam a luta de classes de maneira concreta em cada momento político concreto. Não se discutirá aqui de modo específico toda essa complexa, rica e fundamental luta política, mas vale o registro para dimensionarmos a situação. Como resultado do II Congresso do PCd’I, realizado em Roma, em março de 1922, Gramsci é indicado para representante partidário na Internacional Comunista. Deverá viajar a Moscou e lá permanecer temporariamente. Laurana Lajolo, uma das suas biógrafas, retrata o episódio: “O novo cargo, tão importante, o entusiasma: completar sua formação política no interior do governo revolucionário mundial, em contato com os mais prestigiados líderes do movimento, e viver na nova ordem socialista, são apelos fascinantes para um homem que fez a opção de ser revolucionário profissional”. Outro dos textos de Gramsci na coletânea de Felice e Parlato, a carta, de 12 de setembro de 1923, em que propõe aos companheiros a fundação do jornal L’Unitá (a sugestão do nome é dele), contém múltiplas sugestões políticas gerais, e organizativas, do jornal, e partidárias. Algumas das indicações se relacionam à questão meridional, e à questão agrária em geral: “ [ ] temos de dar importância especial à questão meridional, ou seja, à questão na qual o problema entre operários e camponeses se põe não apenas como um problema de relação de classe, mas também especialmente como um problema territorial, ou seja, como um dos aspectos da questão nacional”. Por “problema territorial”, Gramsci quer dizer que a política do bloco industrial-nortista e agrário-meridional se mostra tão ruinosa no Mezzogiorno, a ponto de não atingir só os camponeses, mas praticamente quase toda a população, inclusive os estratos médios, e entorpecer qualquer política de desenvolvimento econômico-social da região. Ao final da carta, Gramsci assinala: “ [ ] penso que o regime dos sovietes, com sua centralização política dada pelo Partido Comunista e com sua descentralização administrativa e sua coloração de forças políticas locais, encontra uma ótima palavra-de-ordem: República federativa dos operários e camponeses”. O delito Matteotti Em O Sul e o fascismo, artigo publicado em L’Ordine Nuovo (agora na terceira série deste título, um jornal quinzenal), em 15 de março de 1924, Gramsci, como principal dirigente partidário – embora a maioria das direções intermediárias partidárias permaneçam fiéis a Bordiga -, destaca: “O Sul se tornou a reserva da oposição constitucional. O Sul manifestou mais uma vez sua diferenciação ‘territorial’ do resto do Estado, sua vontade de não se deixar absorver impunemente num sistema unitário exasperado [ ]” “ [ ] uma população [do Sul] que, pelo menos, parcialmente, despertou e começou a participar da vida pública, num período em que a diminuição da emigração põe com maior violência os problemas de classe, que tendem a se tornar problemas ‘territoriais’, já que o capitalismo se apresenta como estrangeiro à região e como estrangeiro se apresenta o governo que administra os interesses do capitalismo”. “ [ ] A questão meridional não pode ser resolvida pela burguesia, a não ser transitoriamente, de modo episódico, com a corrupção ou com o ferro e o fogo”. A crise italiana, publicado em L’Ordine Nuovo, de 1 de setembro de 1924, é o informe de Gramsci ao Comitê Central do PC, reproduzido também na revista teórica Stato Operaio, em 21 de agosto. Fora eleito deputado nas eleições de 6 de abril. No informe, Gramsci faz um balanço do desenvolvimento do fascismo e analisa a nova situação política criada após o assassinato em junho, cometido pelos fascistas, do deputado Giacomo Matteotti, do Partido Socialista Unitário (PSU), o partido dos socialistas reformistas. Diante da fraude generalizada promovida pelos fascistas nas eleições de abril, Matteotti, em discurso no parlamento, imperturbável, denunciou minuciosamente inúmeras irregularidades, diante da gritaria dos fascistas. A ordem para o assassinato partiu do próprio Mussolini. Sobre o assassinato do deputado socialista, há um filme esclarecedor, de 1973, O Delito Matteotti, realizado pelo importante diretor Florestano Vancini, reconstituição encenada por atores. O filme passou no Brasil em meados da década de 70. A luta por um partido de massas O regime fascista, que se julgava consolidado, tremeu diante da onda de reação popular. Fiori, em sua biografia, relata assim a crise: “Apesar de intimidada por três anos de terrorismo, toda a opinião pública foi apanhada de surpresa. Nos primeiros dias as reações foram incertas. Gramsci não hesitou e decidiu logo passar ao ataque. “Um policial – recorda Giuseppe Amoretti, redator do L’Unità, publicado em Milão – veio ao nosso jornal informar-nos, com ar de mistério, o desaparecimento do deputado socialista. Ele nos disse que bastava apenas publicar a notícia e, em essência, que era preciso calar sobre o assunto. O sentido da recomendação era ameaçador, sob a forma diplomática: “Se não, objetamos, nós também teremos o mesmo fim de Matteotti?” O policial concordou com a cabeça como se disesse: “São vocês que estão dizendo...” E foi embora. Ficamos perplexos. Todo o aparato de repressão girava ameaçador sobre nós. À porta havia sempre um bando de camisas negras. O jornal podia ser devastado, as nossas cabeças mais uma vez quebradas... Foi justamente nesse momento que a palavra de Gramsci nos chegou por telefone de Roma. Era preciso atacar e estarmos nós à testa do ataque. As massas populares em agitação deviam ser impulsionadas por nós para frente. “L’Unità saiu com o título de página inteira: Abaixo o Governo dos Assassinos”. Em carta de 22 de junho, Gramsci escreveu à mulher Giulia, residente então na União Soviética: “Vivi dias inesquecíveis e continuo a vivê-los. Através dos jornais é impossível se fazer uma idéia exata do que está acontecendo na Itália. Caminhávamos sobre um vulcão em ebulição; de repente, quando ninguém esperava, especialmente os fascistas, super-seguros do próprio poder infinito, o vulcão explodiu, liberando uma imensa onda de lava ardente que invadiu todo o país, arrastando tudo e todos do fascismo. Os acontecimentos se desenvolviam com a rapidez inaudita de um raio; dia após dia, de hora em hora, a situação mudava, o regime era atacado de todos os lados, o fascismo era isolado no país e seu isolamento podia ser sentido no pânico dos seus chefes, na fuga dos seus partidários. O trabalho foi febril; era necessário, hora após hora, tomar disposições, dar diretivas, procurar dar uma linha à torrente popular transbordante. Hoje, aparentemente, a fase aguda da crise foi superada. O fascismo procede à reunião desesperada das suas forças que, reduzidas em todas as partes, continuam a dominar, amparadas como são por todo o aparelho estatal, devido ás condições de incrível dispersão e desorganização nas quais se encontram as massas. Mas o nosso movimento realizou um grande passo à frente: o jornal L’Unità triplicou a tiragem, em muitos centros os nossos companheiros se puseram à testa das massas e tentaram desarmar os fascistas, as nossas palavras-de-ordem são acolhidas com entusiasmo e repetidas nas moções votadas nas fábricas: acredito que nestes dias nosso partido tenha se tornado um verdadeiro partido de massas”. O que é a ditadura fascista? Em A crise italiana, Gramsci aponta a situação rural: “No campo, o processo da crise se liga de modo mais estreito à política fiscal do Estado fascista. De 1920 até hoje, o orçamento médio de uma família de meeiros ou de pequenos proprietários foi gravado com um passivo de 7 mil liras em função de aumento de impostos, de deterioração das condições contratuais, etc. A crise da pequena empresa se manifesta de modo típico na Itália setentrional e central. No Sul intervêm novos fatores, o principal dos quais é a ausência de emigração e o conseqüente aumento da pressão demográfica; isso se faz acompanhar por uma diminuição da superfície cultivada e, portanto, da colheita. [ ] Este ano a colheita [de trigo] foi inferior à média em toda a Itália, fracassando completamente no Sul. [ ] já se verificaram na Sardenha episódios graves de descontentamento popular, determinados pela escassez econômica”. Ainda em A crise italiana, Gramsci mostra traços da natureza do fascismo em passagens de grande interesse: “O delito Matteotti forneceu a prova provada de que o Partido Fascista não conseguirá jamais se tornar um partido de governo normal [ ]” “O fato característico do fascismo consiste em ter conseguido constituir uma organização de massa da pequena burguesia. É a primeira vez na história que isso se verifica. A originalidade do fascismo consiste em ter encontrado a forma adequada de organização para uma classe social que foi sempre incapaz de ter uma ideologia e uma organização unitárias: essa forma de organização é o exército no campo de batalha. A milícia, portanto, é toda a base do Partido Nacional Fascista: não se pode dissolver a milícia sem dissolver, ao mesmo tempo todo o Partido” “ [ ] O fascismo, pela natureza da sua organização, não suporta colaboradores com igualdade de direitos: quer somente servos acorrentados. Não pode existir uma assembléia representativa em regime fascista; toda assembléia torna-se imediatamente um bivaque de soldados ou a antecâmara de um prostíbulo para oficiais subalternos bêbados”. O III Congresso (Lyon) O III Congresso do PCd’I, realizado clandestinamente em janeiro de 1926, em Lyon, na França, devido à repressão fascista, representou a hegemonia das posições de Gramsci no partido diante da oposição da ultra-esquerda de Bordiga. O processo de constituição da nova maioria se acelerou sob o influxo da luta de massas na crise durante o assassinato de Matteotti. As teses para o congresso foram escritas por Gramsci e Togliatti. Em 24 de fevereiro de 1926, L’Unità publicou um informe de Gramsci sobre o congresso. Esse foi um dos mais importantes congressos da história do PC italiano, será a primeira vez que o partido terá uma linha política por inteiro, coerente, concreta, de intervenção sobre o conjunto político de temas da vida italiana. O congresso fez igualmente um balanço dos primeiros cinco anos da vida do novo partido. Sobre a questão agrária, o congresso avançou na sua compreensão. Gramsci,no seu informe, acentua que: “ [ ] O partido deve procurar criar, em cada região, uniões regionais da Associação de Defesa dos Camponeses; no entanto, dentro destes quadros organizativos mais largos, é preciso distinguir quatro agrupamentos fundamentais das massas camponesas, para cada um dos quais é necessário encontrar posicionamentos e soluções políticas bem precisas e completas”. Os quatro agrupamentos eram: 1) As massas de camponeses eslavos da Istria e do Friuli, cuja organização se ligava à questão nacional; 2) o chamado “partido dos camponeses” do Piemonte, de caráter não-confessional e mais estritamente econômico, favorecido também pela existência na região de um dos centros proletários mais eficientes; 3) a massa dos camponeses católicos, na Itália central e setentrional, mais ou menos diretamente organizados pela Ação Católica (a chamada questão vaticana); 4) a massa dos camponeses da Itália meridional e das ilhas [Sicília e Sardenha]. Gramsci salienta: “A questão dos camponeses meridionais foi examinada com particular atenção pelo Congresso. [ ] a função da massa camponesa meridional no desenvolvimento da luta anticapitalista italiana [leva] à conclusão de que os camponeses meridionais são, após o proletariado industrial e agrícola na Itália do Norte, o elemento mais revolucionário da sociedade italiana. “Qual a base material e política desta função e das massas camponesas do Sul? As relações existentes entre o capitalismo italiano e os camponeses meridionais não consistem apenas nas normais relações históricas entre cidade e campo, tal qual criadas pelo desenvolvimento do capitalismo em todos os países do mundo; no quadro da sociedade nacional, estas relações são agravadas e radicalizadas pelo fato de que econômica e politicamente toda a zona meridional e das ilhas funciona como um imenso campo diante da Itália do Norte, que funciona como uma imensa cidade. Tal situação determina na Itália meridional a formação e desenvolvimento de determinados aspectos de uma questão nacional, embora imediatamente não assumam uma forma explícita desta questão em seu conjunto, mas apenas de uma vivíssima luta de caráter regionalista e de profundas correntes em nome da descentralização e das autonomias locais “O que torna característica a situação dos camponeses meridionais é o fato de que eles, à diferença dos três agrupamentos anteriormente descritos, não têm em seu conjunto nenhuma experiência organizativa autônoma. Eles estão enquadrados nos esquemas tradicionais da sociedade burguesa, nos quais os agrários, parte integrante do bloco agrário-capitalista, controlam as massas camponesas e as dirigem segundo os seus objetivos”. “ [ ] os últimos acontecimentos da vida italiana, que determinaram uma passagem em massa da pequena burguesia meridional para o fascismo, tornaram mais aguda a necessidade de dar aos camponeses meridionais uma direção própria, para resgatá-los definitivamente da influência burguesa agrária. O único organizador possível da massa camponesa meridional é o operário industrial, representado por nosso partido. Mas para que este trabalho de organização seja possível e eficaz faz-se necessário que o nosso partido se aproxime estreitamente do camponês meridional, que o nosso partido destrua no operário industrial o preconceito nele inculcado pela propaganda burguesa, segundo o qualo Sul é uma bola de chumbo que se opõe aos grandes desenvolvimentos da economia nacional, destruindo também no camponês meridional o preconceito ainda mais perigoso de que o norte da Itália seja um único bloco de inimigos de classe”. “ [ ] A oposição de extrema-esquerda apenas conseguiu fazer piadas e afirmar lugares-comuns sobre toda esta série de problemas. Sua posição sistemática foi a de negar aprioristicamente que tais problemas concretos existem em si mesmos, sem nenhuma análise ou demonstração sequer potencial. Pode-se inclusive dizer que precisamente no que se refere à questão agrária é que aparece a verdadeira essência da concepção da extrema-esquerda, que consiste numa espécie de corporativismo que espera mecanicamente que o desenvolvimento das condições objetivas realize, por si só, os fins revolucionários. Como já afirmamos, tal concepção foi claramente rejeitada pela absoluta maioria do Congresso”. Alguns temas da questão meridional Por que Alguns temas da questão meridional é um texto tão importante de Gramsci? Já vimos a elaboração dada pelo Congresso de Lyon à questão meridional e às massas camponesas do sul. Em Alguns temas... Gramsci se propõe a avançar na análise estabelecida em Lyon com o objetivo de melhor concretizar na prática política o entendimento então alcançado. O resultado é um patamar qualitativamente superior na elaboração acerca da questão meridional. Em que consiste este entendimento superior? No seu esforço de tornar mais completa “a análise concreta da situação concreta” (Lênin), Gramsci vê o papel desempenhado pelos intelectuais na direção e homogeneização ideológica e política das massas meridionais. Na concretude da sua análise, e nas suas próprias palavras (a citação mostra a riqueza e complexidade das mediações da totalidade econômica-social-cultural-político-histórica): “O Sul da Itália pode ser definido como uma grande desagregação social. Os camponeses, que constituem a grande maioria da sua população, não têm nenhuma coesão entre si. (É evidente que ocorrem exceções: as Pulhas, a Sardenha, a Sicília, onde existem características especiais no grande quadro da estrutura meridional.) A sociedade meridional é um grande bloco agrário constituído por três estratos sociais: a grande massa camponesa, amorfa e desagregada; os intelectuais da pequena e média burguesia rural e, por fim, os grandes proprietários de terra e os grandes intelectuais. Os camponeses meridionais estão em constante efervescência, mas, como massa, são incapazes de dar uma expressão centralizada às suas aspirações e necessidades. O estrato médio dos intelectuais recebe da base camponesa os impulsos para sua atividade política e ideológica. Os grandes proprietários no campo político e os grandes intelectuais no campo ideológico centralizam e dominam, em última análise, todo este conjunto de manifestações. Como é natural, é no campo ideológico que a centralização se verifica com maior eficácia e precisão. Giustino Fortunato e Benedetto Croce representam, por isso, as pedras angulares do sistema meridional e são, em certo sentido, as duas maiores figuras da reação italiana”. No trecho acima, vemos um dos temas centrais de Gramsci, desenvolvido em muito maior escala nos escritos de prisão, os Cadernos do Cárcere: o papel político-cultural desempenhado pelos intelectuais. Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci criará um conceito de grande poder elucidativo, o de “bloco histórico”. O bloco histórico articula as forças de classe com as tendências culturais, numa síntese histórica em que, subordinadas às forças dinâmicas do presente, se encontram também remanescências econômico-sociais-culturais-político-históricas do passado. Todas essas instâncias têm suas autonomias, e é a totalidade delas que realizará a praxis e a materialidade de uma sociedade dada. Além da temática central dos intelectuais, no trecho acima se evidencia igualmente a assimilação criativa, concreta, e histórica, do marxismo de Gramsci; aparece aqui já uma aplicação do conceito de bloco histórico, que será teorizado nos Cadernos. Outros conceitos, semelhantes e frutos da original visão filosófica de Gramsci, tais como “hegemonia”, “guerra de posição”, “guerra de movimento”, “ocidente”, “oriente”, “consenso”, “coerção”, etc, apesar da maneira fragmentária com que aparecerão nos Cadernos, consubstanciarão desenvolvimentos significativos da teoria marxista. A elaboração teórica dos Cadernos, a dimensão da qualidade e quantidade, faz jus à epigrafe aposta neles pelo próprio autor, für ewig (para sempre). Os intelectuais citados, Fortunato e Croce, exemplificam o que Gramsci chamará de “grandes intelectuais”. Fortunato foi um político conservador, mas a importância dada a ele por Gramsci advém da teorização conservadora por ele realizada acerca da questão meridional, capaz exatamente de cumprir o papel no vértice do estrato intelectual de hegemonia cultural, ideológica, e, portanto, política, numa medida ainda mais eficaz e profunda. É o caso com mais razão de Croce, um neo-hegeliano de direita, que renovou a cultura italiana, arrancada por ele do provincianismo e da hegemonia exercida pela Igreja. Croce também combate o positivismo predominante, tão visível no materialismo vulgar do PSI, tanto de sua corrente maximalista quanto da reformista. A influência de Croce sobre os intelectuais italianos, inclusive Gramsci, foi enorme. Apesar do idealismo filosófico croceano representar um retrocesso em relação ao materialismo, apesar de baseada no liberal-conservadorismo italiano, constituía um avanço ao conectar a cultural italiana à “grande cultura”, à tradição do idealismo filosófico alemão, ao fundamentar de modo filosófico a ação do espírito humano: numa palavra, ao apontar para a liberdade do espírito humano em contraposição vulgaridade do materialismo mecanicista. Para entender a relação Croce-Gramsci, ver, por exemplo, os escritos do cárcere, agrupados na chamada “edição temática”, em “O materialismo histórico e a filosofia de Benedetto Croce”, intitulado no Brasil, em razão de sua edição durante a ditadura como “Concepção dialética da história”. Gramsci, numa reiteração do papel politicamente reacionário atribuído a Croce, já assinalado em Alguns temas..., chamará Croce nos Cadernos de o “papa leigo”. Além do trecho já citado de Alguns temas..., as páginas subseqüentes do mesmo texto, na tradução da coletânea de Felice e Parlato (em especial as páginas de 155 a 159), evidenciam toda a riqueza e complexidade da análise da estrutura social meridional, baseada na visão original de Gramsci já apontada. Alguns temas... tem muito mais ainda: - uma análise mais detalhada do papel de Croce, citações sempre na referida edição (páginas 161 e 162); - mais análise sobre o papel dos intelectuais e, em particular de Piero Gobetti (páginas 162, 163, 164 e 165); - análise e rejeição das posições meridionalistas que querem resolver a questão meridional, sem entender que ela é funcional ao capitalismo na Itália, e que, lutar para resolvê-la, significa ter uma posição anticapitalista. Mesmo os meridionalistas mais avançados, de que a expressão democrática mais representativa é Gaetano Salvemimi, não se livram da limitação desse não-entendimento, e dos preconceitos ideológicos daí decorrentes; - balanço da luta operária em relação à questão meridional, na rica narração de fatos como a aliança proposta pelos operários socialistas de Turim a Salvemimi, em 1914; a vitória da pequena célula comunista na convocação da Associação Jovem Sardenha; a Brigada Sassari tornada inútil à repressão pelos operários de Turim; etc. - a polêmica com a revista socialista Quarto Stato (“quarto stato” seriam os camponeses); - a polêmica contra o reformismo e o corporativismo do PSI, pela não-integração da classe operária como apêndice da política do bloco industrial-agrário; assunção completa das tarefas políticas da classe operária: seu papel e a luta pela encarnação desse papel: de protagonista da aliança operário-camponesa, de hegemonizadora do novo bloco popular com as massas camponesas do sul, capaz de solucionar nacionalmente a questão meridional, considerada inclusive como questão territorial. Notas: 1 - PCd’I – Partido Comunista da Itália, Seção Italiana da Internacional Comunista (IC), fundado em janeiro de 1921. Como os demais partidos congêneres, o PC da Itália era uma seção da IC. Com a autodissolução desse organismo em 1943, o PCd’I adotou o nome de Partido Comunista Italiano (PCI). Desempenhou na ocasião papel preponderante e decisivo na Resistência, contra o ocupante nazista e pelo fim do regime fascista de traição nacional. 2 - Pelo acúmulo de citações no texto, e dado que não é um trabalho para publicação, pelo menos neste estágio, optei apenas por mencionar os livros de onde foram tiradas numa bibliografia resumida comentada. Bibliografia resumida comentada:
COUTINHO, Carlos Nelson (1999) Gramsci – Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Bastante material informativo por um dos introdutores de Gramsci no Brasil. Coutinho, já nos anos 60, traduziu obras de Gramsci, da chamada edição temática. O autor editou também a tradução brasileira, publicada a partir de 1999, da chamada edição Gerratana dos Cadernos do Cárcere. Defende suas posições e apresenta suas idéias com bastante clareza. Aqui não é o lugar para demonstrar a crítica, mas fica o registro, a interpretação de Gramsci se baseia numa visão liberal-socialista, explícita de maneira mais sintética no texto político mais representativo do autor: “A democracia como valor universal” (1979, Encontros com a Civilização Brasileira, número 9. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira). Coutinho se identifica com interpretações semelhantes originárias do PCI, partido autodissolvido em grande parte exatamente em razão dessas posições. No Brasil, essa visão liberal-socialista de Gramsci é amplamente majoritária. FIORI, Giuseppe (1979) A vida de Antonio Gramsci. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Biografia mais conhecida de Gramsci, escrita por este importante jornalista italiano. O original italiano, de 1966, foi saudado com entusiasmo, pois levantou muitos dados sobre a vida de Gramsci até então desconhecidos. O livro, em parte, é uma grande reportagem em busca da vida de Gramsci. Apresenta superficialidade jornalística em alguns pontos, mas as qualidades em muito superam os defeitos. Fiori foi editor do Paese Sera, jornal informativo de larga circulação ligado ao PCI. E também senador na lista de independentes de esquerda coligada ao PCI. GRAMSCI, Antonio (1987) A questão meridional. Seleção e introdução: Franco de Felice e Valentino Parlato. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Seleção de dez textos de Gramsci sobre a questão meridional, inclusive o principal deles, Alguns temas sobre a questão meridional (1926). Criteriosa seleção bem como conscienciosa e alentada introdução de Felice e Parlato sobre a contribuição gramsciana. O original italiano é de 1966. A introdução faz também um levantamento do “estado da questão” até a data tanto na historiografia, na bibliografia, quanto nas próprias mudanças ocorridas na realidade italiana. GRAMSCI, Antonio (1999) Cadernos do Cárcere (Volume 1). Edição: Carlos Nelson Coutinho. Com: Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Trata-se da publicação no Brasil da tradução, com alguma mudança de critérios, da edição dos Cadernos do cárcere, organizada na Itália, em 1975, por Valentino Gerratana. Essa edição publica praticamente a íntegra dos fragmentos dos Cadernos, antes só conhecidos parcialmente e agrupados segundo temas, com títulos dados por seus organizadores. As diferenças entre as edições “temática” e Gerratana, as polêmicas e sugestões a respeito de como editar a obra gramsciana, são bem delineadas na introdução de Coutinho à atual edição brasileira, neste mesmo volume. LAJOLO, Laurana (1982) Antonio Gramsci - Uma vida. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense. O original italiano é de 1980. Biografia bem escrita, amena, e introdutória, desta jornalista italiana, que sem descurar do Gramsci político, mas superficial quanto ao legado intelectual, enfatiza os aspectos humanos da vida de Gramsci. TOGLIATTI, Palmiro (1975) Antonio Gramsci. Seleção e prefácio de Ernesto Ragionieri. Tradução de Maria do Carmo Abreu. Lisboa: Seara Nova. Catorze textos de Togliatti sobre Gramsci. O primeiro, de 1926, após a prisão de Gramsci; o último, de 1964, pouco antes da morte do próprio Togliatti. Além de mostrar a interpretação de Togliatti, documenta também a do PCI sobre seu principal fundador, dirigente, e pensador, durante as décadas em que o autor foi seu principal dirigente. Apresenta, portanto, as virtudes, muitas, bem como aspectos problemáticos vinculados ao PCI e ao movimento comunista da época.
INTERNET:
“SITE” GRAMSCI E O BRASIL http://www.acessa.com/gramsci/
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