Entrevistas
Educação e novas tecnologias
Em entrevista divulgada pela página do 5° Seminário Nacional: O professor e a leitura do jornal, o professor Marco Silva fala, sociólogo e doutor em educação, sobre as novas tecnologias e seus impactos no modelo ensino-aprendizagem. "Faltam investimentos
significativos na formação de professores para uso das tecnologias
digitais de informação e comunicação. Uma formação capaz de
potencializar o projeto político pedagógico da escola, a docência e a
aprendizagem. Dessa formação dependerá a educação para a cidadania em
nosso tempo", afirma o professor. Para ele, apenas dar acesso à internet não significa um bom uso desses meios. A educação deve ser uma das principais contribuidoras para a "cibercidadania", equipando os usuários para o
posicionamento crítico na cultura digital. Confira a entrevista.
Na “era digital”, temos os
inforricos e os infopobres. Você também destaca o infoanalfabeto, dando a
entender que não basta ter acesso às tecnologias digitais online para
ser um alfabetizado digital. Qual o perfil do infoanalfabeto? Paulo Freire tem um entendimento muito profundo sobre
o que seja o analfabeto. Para ele, o analfabeto não é meramente aquele
que não sabe operar com os códigos da leitura e da escrita. Mais do que
isso, é alguém que não sabe lidar com os códigos necessários para se
posicionar e interferir criticamente no mundo. Pego carona nesse
entendimento para situar o infoanalfabeto ou o excluído digital. Não é
meramente aquele que não tem acesso ao computador e à internet, mas
aquele que não sabe operá-los para se posicionar e interferir
criticamente no espaço e no ciberespaço. Ou seja, quem apenas divulga
fragmentos do seu cotidiano no Twitter, Facebook e Orkut, envia e-mails e
sua declaração de imposto de renda não é necessariamente alfabetizado
ou incluído digital. Caberá à escola e a universidade o trabalho
sofisticado e profundo que vai além do acesso, que considero ser um
primeiro degrau sine qua non. O desafio de “ir além do acesso” é grande,
tendo em vista que os professores, muitas vezes, não têm acesso e, de
resto, são infoanalfabetos e até resistentes. Faltam investimentos
significativos na formação de professores para uso das tecnologias
digitais de informação e comunicação. Uma formação capaz de
potencializar o projeto político pedagógico da escola, a docência e a
aprendizagem. Dessa formação dependerá a educação para a cidadania em
nosso tempo. As escolas, as universidades e os governos estão muito
atrasados nisso.
A escola tem contribuído para a redução dos infoanalfabetos? Se não, como poderia proporcionar essa nova alfabetização? Vejo com bons olhos a política pública
que disponibiliza um computador por aluno. No dia 14/06/2010 foi
divulgada no Diário Oficial da União a resolução que estabelece as
normas e diretrizes para que municípios, estados e o Distrito Federal se
habilitem ao Prouca (Programa Um Computador por Aluno), para 2010 e
2011. Esse programa permitirá a aquisição de computadores portáteis
novos com conteúdos pedagógicos pelas redes públicas de educação básica.
Essa tardia resolução é maravilhosa! Entretanto, não há implementação
da formação continuada dos professores para uso dos laptops (inclusão ou
alfabetização digital integrada ao currículo) capaz de vencer
resistências e potencializar a docência e a aprendizagem em nosso tempo,
que é entendido como era digital, cibercultura ou sociedade da
informação. Para além da distribuição do acesso, a escola e a
universidade poderão proporcionar e promover a nova alfabetização. Para
isso, precisarão investir no uso do computador e da internet integrados
aos conteúdos de aprendizagem, ao ofício dos professores e ao trabalho
dos aprendizes. Esse investimento deverá ser capaz de contemplar
participação, colaboração e cocriação dos professores e estudantes em
redes off-line e online de informação, comunicação e conhecimento.
“Era digital”, “cibercultura”,
“sociedade da informação” são palavras/expressões que ouvimos
constantemente relacionadas ao nosso contexto atual. Como você definiria
esse momento? “Era digital” é a nossa atualidade
sociotécnica, informacional e comunicacional, definida pela “codificação
digital” (bits), isto é, pela digitalização, que garante o caráter
plástico, fluido, hipertextual, interativo e tratável em tempo real do
conteúdo, da mensagem. A codificação digital permite manipulação de
documentos, criação e estruturação de elementos de informação,
simulações, formatações evolutivas nos ambientes ou estações de trabalho
do tipo Macintosh, Linux e Windows, concebidas para criar, gerir,
organizar, fazer movimentar uma documentação completa com base em
textos, grafismos, imagens, vídeos. Digital significa existência
imaterial de tudo isso na memória hipertextual do computador que permite
múltiplas formatações, intervenções, navegações da parte do usuário.
“Cibercultura” diz respeito à condição cultural contemporânea emergente
no cenário da “era digital”, a partir das relações entre sociedade e
tecnologias digitais, principalmente o computador, o celular e a
internet. É caracterizada por práticas, atitudes, modos de pensamento e
de valores engendrados a partir de princípios formulados pelo
pesquisador brasileiro André Lemos
como “liberação da emissão”, “conexão e conversação mundial” e
“reconfiguração do sistema infocomunicacional global”. Para este autor,
os dois primeiros princípios criam a “paisagem comunicacional” do
“sistema pós-massivo” em que se manifesta a reconfiguração do contexto
analógico e unidirecional dos meios de massa, por novas práticas
comunicacionais (e-mails, listas, weblogs, jornalismo online, redes
sociais, mundos virtuais, etc.) e novos empreendimentos que aglutinam
grupos de interesse (cibercidades, games, software livre, ciberativismo,
arte eletrônica, MP3, cibersexo, etc.). No Brasil, vale a pena conhecer
a Associação Nacional de Pesquisadores em Cibercultura, chamada ABCiber. O livro online A cibercultura e seu espelho
reúne diversos trabalhos apresentados nos seus primeiros simpósios
anuais.
E “sociedade da informação” é a expressão amplamente usada para
exprimir o novo contexto sócio-econômico-tecnológico engendrado a partir
do início da década de 1980, cuja característica geral não está mais na
centralidade da produção fabril ou da mídia de massa, mas na informação
digitalizada como nova infraestrutura básica, como novo modo de
produção. Vale a pena conhecer a Cúpula Mundial da Sociedade da
Informação ou a World Summit on the Information Society (WSIS).
Trata-se um foro de governos para discutir, propor e promover políticas
públicas e sociais em favor da inclusão social baseada na inclusão
digital.
Quais os desafios específicos que este novo cenário social e tecnológico traz para a educação? Nosso contexto expresso
pelas palavras/expressões “era digital”, “cibercultura”, “sociedade da
informação” traz um enorme desafio comunicacional para o currículo
escolar e para a mediação docente. Os alunos imersos nesse cenário,
chamados de “nativos digitais” ou “geração net”, se distanciam do
espectador típico dos meios unidirecionais da cultura de massa.
Aprenderam com o controle remoto da tv e agora aprendem com o mouse e
com a disposição hipertextual, imersiva e interativa da tela digital.
Eles migram da tela da tv para a tela do computador conectado à internet
e são mais resistentes às tentativas de programá-los. Evitam acompanhar
argumentos lineares que não permitem a sua interferência. E lidam
facilmente com o hipertexto e com a experiência comunicacional que lhe
permite interferir, modificar, produzir, partilhar e colaborar.
Essa
atitude menos passiva diante da mensagem é sua exigência de uma sala de
aula sustentada em nova postura comunicacional do professor. No lugar da
pedagogia da transmissão baseada em lições-padrão e no falar-ditar do
mestre, ele precisará propor a construção do conhecimento, em uma arena
presencial ou online, baseada em iniciativas capazes de garantir a
materialidade da comunicação efetiva. Cito, por exemplo: disponibilizar
múltiplas experimentações, múltiplas expressões; promover uma montagem
de conexões em rede que permita múltiplas ocorrências; provocar
situações de inquietação criadora; arquitetar percursos hipertextuais na
proposição dos conteúdos de aprendizagem; e mobilizar a experiência da
construção colaborativa do conhecimento. São autorias do professor que
venho pesquisando com muito interesse, porque contemplam a dinâmica da
cultura digital e, ao mesmo tempo, princípios essenciais da mediação da
aprendizagem na educação autêntica. Da autoria do professor dependerá a
comunicação com a geração digital e sua inclusão à cibercidadania.
Célestin Freinet e Paulo Freire já
propuseram e realizaram educação dialógica muito antes da internet
popularizar o termo “interatividade”. O que há de vital no ambiente
multimídia que não estava presente em Freinet ou Freire? Em primeiro lugar, “interatividade” não
é um termo específico de ambiente multimídia ou informatizado. É um
conceito de teoria da comunicação. Portanto, pode-se realizar
interatividade em ambientes infopobres. Para um entendimento inicial
desse conceito, podemos dizer que é a articulação intencional da emissão
e da recepção para cocriação da mensagem. Sabemos que, nos meios
impressos, radiofônicos e televisivos, a interatividade é inviabilizada,
porque são tecnologias unidirecionais em sua natureza analógica. Nesses
meios a emissão está separada da recepção. Neles somente a emissão tem o
controle sobre a produção da mensagem, não há bidirecionalidade, não há
participação ou autoria efetiva da recepção, portanto, não há
dialógica. Em suma, não há comunicação. O que há é informação de A para B
ou de A sobre B, mas não comunicação de A com B, o que deixa claro o
equívoco de se chamar jornal, rádio e tv de “meios de comunicação”. São
na verdade meios de informação de massa.
Lamentavelmente, a sala de
aula, com raras exceções, está baseada na “pedagogia da transmissão” –
seja a presencial, seja a online –, quando são subutilizadas as
potencialidades interativas ou dialógicas do computador e da internet.
Isso ocorre quando os sistemas de ensino estão no mesmo paradigma dos
meios de informação de massa. Para haver educação autêntica é preciso
que haja dialógica, ou seja, é necessário haver a construção
colaborativa da comunicação e do conhecimento. Freinet, Freire e também
Vygotsky apostaram nisso. Se estivessem vivos hoje, fariam bom proveito
dos ambientes multimídia que articulam computador e internet para
potencializar a pedagogia dialógica e socioconstrutivista. Tais
ambientes têm em sua natureza digital a disposição para
multidirecionalidade, para o conversacional, para a cocriação da
mensagem e do conhecimento. Entretanto, podem ser subutilizados quando
prevalece a lógica da transmissão unidirecional, quando os professores
são excluídos digitais, infoanalfabetos.
o livro Sala de aula interativa
procuro fazer o tratamento complexo do termo “interatividade” em
sintonia com esses autores e com as disposições e potencialidades
comunicacionais e colaborativas do computador e internet que eles não
conheceram. Se pudessem vivenciar a cultura digital, muito provavelmente
esses educadores basilares se dariam conta de que o computador e a
internet não são meios unidirecionais um-todos, ao contrário, são
tecnologias de comunicação e colaboração todos-todos muito favoráveis às
suas teorias e práticas educacionais e também à formação da
cibercidadania. Na educação online a “sala de aula virtual” ou “ambiente
virtual de aprendizagem” é um ambiente multimídia geralmente que reúne
interfaces de conteúdos (repositórios com textos, vídeos, áudio,
gráficos, imagens para uso e intervenção) e de comunicação e colaboração
(email, fórum, chat, wiki, portfólio, blog). O Moodle, um dos mais
conhecidos ambientes de educação online, foi criado para contemplar
orientações pedagógicas de Vygotsky. Ele e outros ambientes multimídia
de aprendizagem na internet permitem dialógica, colaboração,
interatividade, mas o professor precisará superar o analfabetismo
digital e a pedagogia da transmissão para não subutilizar suas
potencialidades de promover educação de qualidade e cibercidadania.
O que significa para você cibercidadania? Como a cibercidadania pode potencializar uma educação de qualidade? Inverto a pergunta: como a educação
pode potencializar a formação da cibercidadania. Sabemos que a
finalidade da educação é formar para a cidadania. Entretanto, na “era
digital”, “cibercultura”, “sociedade da informação” é preciso formar o
cibercidadão. Formar para cibercidadania é colocar os grupos sociais e
indivíduos em sinergia, utilizando o potencial de comunicação e
colaboração do ciberespaço como vetor de agregação social, sociabilidade
e participação na cidade, na cibercidade e no mundo. Cibercidadania é
mais do que ter acesso à conectividade, é mais do que poder consumir
online. É atuar no ciberespaço com perspectiva comunitária e política.
As escolas precisam formar as novas gerações para atuação na
cibercidade, nas redes sociais reconfiguradas pelas tecnologias digitais
e pela internet: participação online de cunho ambiental, político ou
social, ciberativismo, “jornalismo cidadão”, museu virtual, fóruns de
discussão, formação, trabalho e colaboração online. Esse engajamento dos
professores e do currículo escolar pode cumprir o papel social da
educação em nosso tempo. A propósito, sugiro uma leitura interessante
que introduz oportunamente este tema. Refiro-me ao livro O futuro da
internet – em direção à ciberdemocracia planetária, escrito em dupla
pelos estudiosos da cibercultura André Lemos e Pierre Lévy. Eles não
tocam no tema educação, lamentavelmente, mas oferecem reflexões
preciosas para quem quiser situá-la frente ao desafio de formar para
cibercidadania.
O documentário “Periferia.com”
revela a proliferação de lan houses e o uso que crianças e jovens fazem
delas. De modo geral, esses espaços não diferem dos antigos fliperamas.
Como incluir verdadeiramente a criança e o jovem na cultura digital? Inicialmente é preciso esclarecer que
uma coisa é fliperama e outra coisa é lan house. O primeiro oferece jogo
operativo. O segundo oferece jogo interativo. O que o clássico pinball
requer do jogador senão estocadas em uma esfera disparada na direção dos
locais de pontuação? A lan house oferece computador, seus periféricos
de operatividade e conexão online que permitem imersão, autoria e
colaboração no ciberespaço. O jogo aqui ganha potencialidades para além
da operatividade. Enquanto o pinball requer do jogador a destreza
mecânica para estocar a esfera na direção de limites fixados em um plano
inclinado, o computador potencializa extensão do pensamento do jogador.
O computador opera como um sistema de organização de informações que
funciona de modo semelhante ao sistema de raciocínio humano:
associativo, não linear, intuitivo, muito imediato. Permite simulação,
criação e colaboração em rede de interatores geograficamente dispersos,
em tempo síncrono e assíncrono. Permite games interativos e não somente
operativos. Mais do que ultrapassar fases criadas pelos desenvolvedores,
os novos games baseados em pontentes inteligências artificiais permitem
que os jogadores construam eles mesmos novas fases, armadilhas e
cenários para desafiar seus oponentes.
O futuro dos avatares em
ambientes 3D é ilimitado. O jogo online na tela do computador ou do
celular está aberto à expressão ilimitada da inteligência humana e da
inteligência artificial. Ao adentrar criativamente este universo, a
criança e o jovem se incluem na cultura digital, mas não necessariamente
na cibercidadania. Os jogos online poderão ampliar muitas vezes a
performance sanguinária e maléfica. Poderão ser simuladores potentes do
ciberterrorismo, cyberbullying, roubo e assassinato. Tudo isso também é
cultura digital. Assim sendo, para incluir os jogadores na cultura
digital, basta oferecer-lhes acesso e deixá-los entregues a si mesmos e
às forças subterrâneas da web e se tornarão hábeis “nativos digitais”.
Porém, promover a cibercidadania capaz de equipá-los para o
posicionamento crítico na cultura digital requer significativo
investimento em educação sintonizada com o nosso tempo sociotécnico e
firme na sua finalidade de formar o cidadão.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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