Direitos Humanos
Corte da OEA julga Brasil por crimes da ditadura militar
[Por Maria do Socorro Castelo Branco] “A única luta que se perde é a que se abandona”. Esta frase estava estampada na camiseta e é o lema da vida de Criméia Alice Schmidt de Almeida. Ela foi companheira e é a mãe do único filho de André Grabois. No início dos anos 1970, durante as operações comandadas pelas Forças Armadas Brasileiras para reprimir a Guerrilha do Araguaia, no Sul do Estado do Pará, ela foi seqüestrada pelo Exercito e André desapareceu. Desde então, Criméia participou de várias campanhas, expedições à região e ações judiciais na esperança de esclarecer o desaparecimento do companheiro. Nos dias 19 e 20 de maio, na sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em São José, capital da Costa Rica, cumpriu mais uma etapa dessa luta. Criméia compareceu a uma audiência pública na Corte na condição de vítima de crimes cometidos pela ditadura militar. Também prestaram depoimento Laura Petit da Silva, que tem três irmãos desaparecidos (Maria Lúcia, Lúcio e Jaime Petit da Silva), e Elizabeth Silveira e Silva, irmã de outro desaparecido, Luiz René Silveira e Silva. “Gomes Lund” A audiência é uma das fases do processo conhecido como “Gomes Lund” que está sob apreciação da Corte Interamericana, no qual o Brasil responde pelas acusações de detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas em operações de repressão à Guerrilha do Araguaia. A Corte é um órgão judicial da Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem como propósito aplicar e interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos e outros tratados de Direitos Humanos. A ação foi apresentada em 1995 pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL/Brasil), Human Rights Watch/Americas (HRWA), Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. O procurador da República Marlon Alberto Weichert e o advogado Alberto Belisário dos Santos Júnior foram as testemunhas apresentadas pelos autores da ação. O ex-secretário Nacional de Direitos Humanos José Gregori e o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal José Paulo Sepúvelda Pertence testemunharam pelo Estado. Atuaram como peritos o especialista em Justiça Transicional Rodrigo Yprimmy, indicado pelas vítimas, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp, a pedido do Estado. A audiência também foi acompanhada por familiares dos desaparecidos e observadores, entre estes o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – seccional do Rio de Janeiro, Wadih Damous, e o procurador da entidade, advogado Guilherme Peres de Oliveira. Guerrilha Os fatos que deram origem à ação sob apreciação da Corte remontam aos anos de 1972 e 1975, quando as Forças Armadas realizaram uma série de operações militares na região sul do Estado do Pará, objetivando erradicar a denominada guerrilha do Araguaia. Durante as operações, praticaram detenções ilegais, torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados contra opositores políticos, membros do Partido Comunista do Brasil e a população local. Três décadas depois, os responsáveis por aquelas graves violações de direitos humanos, condenadas pelos organismos internacionais, entre estes a OEA, da qual o Brasil é membro, permanecem impunes. Os governos dos generais mantiveram todas as ações e documentos em segredo pela força das armas. Mas os governos civis que os sucederam, a partir de 1985, recusam-se a abrir investigação para esclarecer os fatos e determinar responsabilidades, amparando-se na Lei de Anistia promulgada em 1979 pelo regime militar. Justiça Federal Existe uma sentença transitada em julgado na Justiça Federal brasileira, determinando a localização e o traslado dos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia, bem como a entrega de informação oficial sobre as circunstâncias de seus desaparecimentos. Mas, segundo os familiares das vítimas, a União tem dificultado a execução da decisão. Inconformados, denunciaram o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA, em 1995. Após fracassada tentativa de acordo com o governo do Brasil, a Comissão aprovou, em 31 de outubro de 2008, relatório em que determina a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses na Guerrilha do Araguaia. De acordo com relatório, o Estado brasileiro deveria, entre outras ações, providenciar a abertura de todos os arquivos das Forças Armadas, realizar um ato formal de reconhecimento da responsabilidade pelos fatos, entregar os restos mortais aos familiares para a realização de um enterro, fazer a reparação indenizatória e punir os responsáveis pelos assassinatos. Considerando insatisfatória a implementação dessas recomendações pelo Brasil, a Comissão decidiu enviar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que aceitou a demanda e marcou a audiência pública. Anistia Na sessão, os representantes do Estado alegaram que o país assumiu suas responsabilidades sobre o caso e adotou medidas para sanar o sofrimento das vítimas. Entre estas ações, citaram a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, as indenizações pagas às família e a publicação do livro “Direito à Memória e à Verdade”. Também destacaram a instalação, para cumprir decisão judicial, do Grupo de Trabalho Tocantins, que já fez duas expedições e cinco escavações na região do Araguaia. No que tange à reivindicação dos familiares de identificação e punição dos responsáveis, argumentaram que esses grupos também foram beneficiados pela Lei de Anistia, de 1979. Ainda ressaltaram a decisão do Supremo Tribunal Federal, do final de abril, que interpretou a Lei da Anistia como resultado de um acordo político, que teria beneficiado os opositores e os agentes da ditadura. A tese foi rechaçada pelos representantes das vítimas e da Comissão. O Advogado Alberto Belisário dos Santos Júnior reiterou que, na campanha pela Anistia, nunca foi cogitada a inclusão dos torturadores. O advogado esclareceu que a ditadura não reconhecia a existência de tortura e que, embora a oposição tenha feito campanha por uma Anistia “ampla, geral e irrestrita”, a ditadura impôs uma Lei restritiva. “Foi a Anistia possível (...) Não foi um período de transição negociada,” afirmou. O procurador da República Marlon Alberto Weichert considera insuficientes as ações do Estado brasileiro para reparar as perdas das vítimas da ditadura. Ele informou que setores do Exército continuam atuando na região do Araguaia, visando a manter os moradores em silêncio. Em troca, oferecem cesta-básica e acesso a serviços públicos. Também reclamou da resistência do Estado em liberar os arquivos da época, mesmo a pedido da Justiça. As Forças Armadas garantem que os documentos foram destruídos, mas, também, não comprovam a destruição por atas ou outros registros. Enclaves autoritários Na avaliação dos representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a falta de esclarecimento e a ausência de punição dos crimes contra os direitos humanos cometidos pela ditadura contribuem para a manutenção de enclaves autoritários no Brasil atual. A Comissão citou a persistência de práticas de tortura no aparelho policial como uma grave violação dos direitos humanos que compromete a democracia brasileira. Assim, a Comissão solicitou à Corte Interamericana e investigação do caso Araguaia, a abertura dos arquivos e a punição dos culpados. Os representantes da Comissão enfatizaram que decisões anteriores da Corte, que pareciam não ter efeito, ajudaram efetivamente no esclarecimento da verdade e na consolidação das democracias chilena e argentina. Na mesma linha, as representantes do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) pediram aos juízes reunidos naquela Corte que declarassem sem efeito os aspectos da Lei de Anistia que impedem a investigação e punição dos agentes responsáveis pelo desaparecimento forçados de presos políticos. Ressaltaram ainda que a identificação e a localização dos restos mortais das vítimas é uma dívida histórica do Estado Brasileiro com os familiares. Em suas alegações, a diretora executiva do Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL), Viviana Krsticevic, declarou que a justiça brasileira parece ser presa da ´síndrome de Estocolmo’. A Síndrome de Estocolmo é o processo psicológico que leva as vítimas de sequestros a simpatizar com seus captores ou a se identificar com sua causa. Conforme Viviana, “a recente decisão do Supremo Tribunal apóia quem no passado violou os direitos humanos e hoje aspira manter-se na impunidade". Para a CEJIL, resoluções da ONU e a jurisprudência de tribunais internacionais são claras quando afirmam que as leis de anistia não podem ser utilizadas para impedir a investigação de desaparecimento de perseguidos políticos. Também não podem ser evocadas para negar a identificação e a punição dos responsáveis por casos graves de violações dos direitos humanos. O resultado do julgamento deve ser anunciado até novembro. A Corte, composta por sete juristas de reconhecida competência, é presidida, atualmente, pelo peruano Diego García-Sayán. No caso “Gomes Lund”, o advogado brasileiro Roberto Caldas integra o tribunal como juiz ad hoc (para atuar apenas nessa questão). A decisão é inapelável e seu acatamento, obrigatório.
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