Por NPC Eliane Slama, da TV Comunitária de Niterói: "os trabalhadores precisam ter seus próprios meios de comunicação"
A
TV Comunitária de Niterói foi criada por várias instituições do movimento
social organizado em 1999. Desde então, vem se tornando ícone na luta por uma
comunicação livre. Eliane Slama, uma das pessoas responsáveis pela programação
da emissora, conversou com o Boletim NPC sobre a importância e as dificuldades
de manter seu caráter plural e democrático. Ela também falou sobre a mudança recente
da sede para o Instituto de Educação Física da Universidade Federal Fluminense,
e a sua aprovação como Ponto de Cultura, o que, na sua avaliação, dará fôlego
para o movimento.
Por Jéssica Santos
Quais os principais objetivos da TV
Comunitária de Niterói?
Eliane Slama: A TV Comunitária tem um perfil
classista e entende que é necessário transformar a sociedade, ou seja, construir
uma sociedade mais justa, humana e igualitária. Ela surgiu da reflexão do movimento social organizado de que os meios
de comunicação de massa são instrumentos privados da hegemonia. Por isso mesmo, é necessário que a classe
trabalhadora construa seus próprios meios. É necessário termos o nosso espaço também porque achamos que a comunicação de massa está
concentrada nas mãos de poucas famílias e poucos grupos que detêm o controle
dos meios no Brasil. A gente só vai conseguir a democratização da mídia a
partir da construção coletiva desses meios.
Entendemos que os meios comerciais
estabelecidos não veiculam a construção de ideias, a cultura, o desejo da
sociedade de uma maneira geral. Eles expressam a ideologia de quem está
controlando esses meios. Então é a partir desse entendimento, da necessidade da
luta para democratizar e construir uma nova possibilidade, que surge a decisão
do movimento social organizado de discutir a ocupação desse espaço público de
televisão, no caso a TV Comunitária de Niterói.
Como é o trabalho da TV comunitária?
Como a metodologia de trabalho? Perfil da equipe?
Eliane: Costumamos
dizer que a TV Comunitária de Niterói tem que atuar em várias dimensões para
construir um meio comunitário de comunicação. No ponto de vista da resistência,
da acumulação política, tem como característica a construção coletiva,
democrática, de dar oportunidade de participação a todas as pessoas que tenham
interesse e querem discutir a ocupação desse canal. Então, essa construção
política é uma forma de construir a TV Comunitária.
A outra maneira de construir é do
ponto de vista da produção técnica, dos materiais que serão veiculados. Até
hoje a TV Comunitária produziu uma quantidade de material importante,
histórico. E por outro lado teve muita dificuldade de fazer a ocupação técnica
do canal por conta de estarmos falando de luta pela democratização e sabemos
que a comunicação é elemento estratégico na disputa de hegemonia. Sempre
tivemos muita dificuldade para fazer essa ocupação.
Qual a principal dificuldade?
Eliane: Sempre tivemos
muita dificuldade de sustentação financeira, porque mantivemos um perfil realmente
democrático. A TV Comunitária de Niterói é uma das únicas no Brasil em que
qualquer entidade que se associa, a qualquer tempo, pode disputar a direção do
canal. Se não me engano, em
outras TVs comunitárias só quem pode estar à frente da condução
são as entidades fundadoras.
Como é feita a produção de conteúdo e como é
organizada a programação?
Eliane:
O
trabalho de produção e de construção do conteúdo é feito de maneira coletiva e
voluntária pelos militantes da cidade de Niterói. Até hoje construímos vários
projetos em que desenvolvemos a produção com o trabalho voluntário. Nós temos
uma roda de programação bastante diversificada. Não chamamos de grade, porque
achamos que “aprisiona” muito. Então, na nossa roda tivemos a oportunidade de
veicular material produzido pelas entidades associadas e pelos militantes
independentes, além de construir uma programação própria da TV Comunitária de
Niterói, que é o telejornal comunitário.
O telejornal comunitário foi todo
construído por voluntários, de maneira aberta e democrática, onde as reuniões
de pauta eram abertas e com sugestões que apareciam nesses encontros. Além da
execução técnica, como a questão da filmagem e dos cortes, tudo era feito de
maneira voluntária, com algumas pessoas fixas e permanentes. Outras vinham para
se juntar ao grupo, e com estas de alguma forma a gente fazia uma espécie de
qualificação, de iniciação em produção de TV comunitária. O trabalho foi feito
desta maneira.
Este projeto se manteve voluntário até
a gestão passada e foi quando a gente entendeu que precisava aprofundar a
discussão sobre a viabilidade financeira mesmo, porque a equipe começou a apresentar
dificuldades por conta de o trabalho voluntário ter seus limites. Então achamos
necessário aprofundar a discussão de formas alternativas de sustentabilidade
financeira.
É importante destacar também que a TV
comunitária firmou com a TeleSur um convênio de irmandade. Como já disse, a
nossa Roda de programação é construída tanto pela produção da TV Comunitária,
que são os telejornais e algum outro programa, quanto pela produção das
entidades associadas. E, quando não estamos ocupando o canal com esses programas, nós estamos veiculando o
sinal da Telesur.
Como está a TV Comunitária hoje?
Hoje estamos sediados no Instituto de Educação
Física da UFF. Após 10 anos de abrigo pelo Instituto de Artes e Comunicação Social
(IACS) da UFF, o colegiado reunido entendeu que a TV comunitária não havia
construído as alianças financeiras e políticas necessárias para o desenvolvimento
da TV Comunitária ali, e que era a hora de sairmos.
A comissão executiva avaliou como um
equívoco muito grande da escola de comunicação, já que tinha acabado de retirar
de lá o canal universitário que havia sido implantado na mesma época. E esses
canais de acesso público foram conquistados pela luta do movimento organizado e
por isso tem uma dimensão social que deve ser considerada. Apresentamos essa
discussão para o pessoal do Instituto de Educação Física da UFF, que já vinha
fazendo um trabalho com a gente, e eles entenderam que deveriam receber a
comunicação comunitária da nossa cidade. Hoje estamos no processo de
implantação do cabo no instituto, com adesão unânime e a ideia é estarmos
avançando. Vamos chamar uma plenária que deve eleger uma nova coordenação
executiva, o novo conselho deliberativo e o fiscal. Entendemos que vamos ganhar
um fôlego com o repasse financeiro do projeto do Ponto de Cultura,
pois prevê recursos para três anos. A ideia é continuarmos a avançar no debate
com o poder público, tanto municipal, estadual e federal, para pensarmos a
sustentabilidade da emissora garantindo o seu caráter comunitário.
Como acredita que os meios de
comunicação comunitária devem se manter?
Entendemos o financiamento público
como uma forma de sustentabilidade. Fazer essa discussão com as entidades da
sociedade civil é importante, mas elas por si não vão conseguir financiar projetos
de ocupação. Por mais que hoje, a partir do desenvolvimento tecnológico, as
condições sejam mais favoráveis, muitas das entidades nem arrecadação têm.
Então não podem arcar com o ônus de montar um estúdio nem da viabilidade da programação.
Precisamos sim que a universidade pública, o poder público municipal, os
projetos de fortalecimento de iniciativas culturais possam de fato viabilizar a
ocupação desse espaço.
Por quê?
Porque em nenhum momento nós pretendemos
discutir uma forma de venda de horário da programação. A gente entendeu que só iria
manter o caráter verdadeiramente democrático se tivesse livre do investimento
da iniciativa privada, que sempre que chegou para conversar com a gente foi no
sentido da moeda de troca. E entendemos que a TV Comunitária não poderia
negociar nenhum tipo de espaço em razão de algum tipo de investimento
financeiro, porque isso acaba desvirtuando o verdadeiro sentido dela. Então, definimos
deveríamos desenvolver a TV Comunitária a partir dos investimentos públicos, da
verba pública para continuar mantendo esse caráter que sempre foi a nossa luta.
A decisão de nos mantermos dentro da
Universidade Federal Fluminense foi nesse sentido. Agora fomos aprovados como
um Ponto de Cultura do Estado. Esse ponto de cultura resgata justamente o
projeto do telejornal comunitário. Agora que teremos recursos, será feito um
programa semanal, com conselho editorial aberto e com reuniões abertas a
qualquer pessoa que queira participar. E com a garantia da central de
transmissão funcionando e da execução da nossa roda de programação.
Algumas entidades já contribuem
financeiramente conosco e apóiam projetos de maneira mais efetiva. O Sindpetro,
por exemplo, antecipou um recurso financeiro de R$7 mil para que pudéssemos
adquirir o transmissor óptico, equipamento que na época havia sido emprestado em
comodato pela Universidade e que, no decorrer do funcionamento, apresentou
dificuldade técnica.
Quais são as perspectivas para o futuro
da TV Comunitária de Niterói?
Eu estou muito animada. A coordenação
está com um balanço positivo. Nossa avaliação é que temos uma característica
democrática, independente, classista, e muitas vezes por isso sofremos processo
de boicote. Já fomos boicotados pela operadora e pelo próprio IACS, que
dificultou o retorno da TV Comunitária e atrasou o processo um bom tempo por
conta da nossa característica mesmo. Uma das coisas que a gente sempre fez
questão de manter é o caráter plural, então temos entidades ligadas às
mais variadas forças do movimento social organizado. Entendemos que só vamos
conseguir construir um canal verdadeiramente comunitário se for plural e de
alguma maneira agregar o entendimento de todas as pessoas. Por isso as
dificuldades são muito grandes.
Mas se por um lado a gente enfrenta muitas
dificuldades, boicotes e ataques, por conta da nossa parceria com a Telesur
também, por outro a gente de alguma maneira sempre avança nos nossos apoiadores
e com o projeto. Dizemos que estamos sempre andando para frente. Nem sempre no
ritmo que gostaríamos que ela funcionasse, mas sabemos que esse ritmo é imposto
pelo desafio de sermos de fato uma construção coletiva, democrática e que dá
realmente vez e fala para quem quiser chegar e falar. Estamos animados, achamos
que o Ponto de Cultura vai dar um fôlego para gente. A ideia é avançar e, além
de ser uma emissora, ser uma produtora para que possamos dar possibilidade para
o acesso público, que tem dificuldade quando falamos em ocupação de televisão. Achamos
necessário batalhar para ter o acesso estimulado, que consiste em oferecer
todas as condições para que a comunidade, o cidadão, o trabalhador venha e
possa estar produzindo mesmo.