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Entrevistas
O mundo da mulher é um antes da pílula e outro, depois da pílula

Publicada em www.ihu.unisinos.br

Na opinião da escritora Rose Marie Muraro, “O homem tem muito medo da mulher, ele está muito deprimido e dizendo ‘vocês ganharam a batalha’”. A constatação é da escritora Rose Marie Muraro, na entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line. Na entrevista, ela reflete sobre os impactos provocados pela invenção da pílula nesses últimos 50 anos e identifica que, no aspecto individual, o maior ganho das mulheres foi a construção da sua identidade. E, no aspecto social, “estamos transformando a noção de política e economia”. Ela explica: “os homens têm a relação opressor/oprimido dentro de si. A competitividade é uma relação de opressor e oprimido. (...) O mundo é hierarquizado quando é dominado pelo homem. E o mundo se estabelece em rede quando a mulher entra em cena. Então, os homens não estão acostumados. Eles estão acostumados a mandar, a fazer guerra, e já que encontram uma outra figura que faz frente a eles e diz ‘não’, eles se apavoram, porque nunca ouviram esse não; é a primeira vez na história”.

Formada em Física e Economia, Rose Marie Muraro publicou diversos livros, entre eles, sua biografia Memórias de Uma Mulher Impossível (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999). Nos anos 1970, foi uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual a influência da pílula anticoncepcional e da pílula do dia seguinte para a autonomia das mulheres nos últimos 50 anos?

Rose Marie Muraro – A pílula fez parte da revolução das mentalidades e permitiu às mulheres controlar a sua fertilidade, entrando, assim, para o mercado de trabalho. E, no momento em que elas entraram para o mercado de trabalho, viveram condições muito desvantajosas, ganhando metade do que ganhavam os homens. Mas foram, pouco a pouco, progredindo, até agora, no século XXI, chegar à presidência da república. Temos, inclusive, duas candidatas ao cargo aqui no Brasil. Isso se deve, primitivamente, ao uso da pílula anticoncepcional e à pílula do dia seguinte, senão elas estariam escravas da sua fertilidade. Por isso é que a mulher ficou oprimida durante tantos milênios. A pílula foi a maior descoberta que se fez para a mulher em todos os tempos.

IHU On-Line - Qual o significado social e cultural de a mulher desligar a sexualidade da maternidade?

Rose Marie Muraro – Foi muito mais importante do que você imagina. Foi dar uma visão de gênero ao desenvolvimento que era apenas masculino. Foi ter uma visão de mundo em que a mulher passou a ser sujeito da história e a ter uma identidade. Por exemplo, Deus é do gênero masculino. Então, o homem pode se identificar com Deus. Antigamente, na pré-história, não era Deus o ser incriado. Era uma mulher, da qual surgia o mundo inteiro. Então as mulheres tinham uma identidade. Elas vão perdendo essa identidade no momento em que vai se descobrindo a figura masculina de Deus, que é a dominação do homem sobre a mulher. Lacan dizia “a palavra é do homem e o silêncio é da mulher”. Mas, hoje, está se criando uma palavra feminina, uma visão de estado, de economia, de ciência, de todo o comportamento, principalmente da psicologia, que descobre a noção de gênero. É algo muito profundo o que está acontecendo no mundo agora, principalmente no século XXI.

IHU On-Line - Qual é a importância para a mulher de ter o controle sobre o próprio corpo?

Rose Marie Muraro – Eu nunca usei pílula, porque era católica na época em que casei, e tive cinco filhos. Era muito difícil para mim sair da casa, deixar as crianças com a empregada, porque eu tinha que trabalhar, meu dinheiro era essencial em casa. Tive que construir uma carreira e, por sorte, nasci para ser escritora. Tenho 79 anos e posso dizer que nasci para isso. Eu e as outras mulheres que fizemos esse trabalho, ajudamos muitas mulheres a encontrarem sua identidade no Brasil. A primeira fase da identidade de uma pessoa não escrava é controlar o próprio corpo. Pois o corpo do escravo pertencia ao dono, assim como o corpo da mulher pertencia ao homem. Então, a mulher era uma escrava do homem. Hoje a diferença é brutal. O mundo da mulher é o mundo de antes da pílula e depois da pílula. E isto está mudando a visão estrutural de mundo de homens e mulheres. A identidade da mulher leva à vida; a identidade do homem leva à guerra e à morte. A mulher produz seres humanos, e os homens matam seres humanos. Tanto que a mulher não participa das guerras. Eu espero que isso dê uma noção de um mundo completamente diferente. A única coisa que eu acho que as mulheres fazem de grave e terrível é o consumo. As mulheres se vingam da sua escravidão no consumo, e é preciso acabar com isso, porque o que está terminando com o mundo é o consumo. Daí se pode dizer que a mulher contribui muito para acabar com a natureza. E a mulher é uma extensão da natureza.

IHU On-Line - O que mudou em relação ao conceito de sujeito para a mulher a partir da invenção da pílula anticoncepcional?

Rose Marie Muraro – Ao invés de conceito, prefiro falar na vivência de sujeito, que é muito mais profunda. A vivência de não-sujeito e de sujeito é algo que eu sei o que é. Quando eu liguei as trompas, passei a ser sujeito de mim mesma. Enquanto eu não tinha isso, era sujeita da minha reprodução. Não havia camisinha, os métodos anticoncepcionais eram muito primitivos. Só tomamos o caráter de pessoa plena quando passamos a controlar a maternidade.

IHU On-Line - O que caracteriza a revolução provocada pela pílula anticoncepcional?

Rose Marie Muraro – Foi uma revolução muito mais profunda do que parece. Para a mulher, individualmente, significou construir sua identidade. Quem descobriu a natureza da deusa primitiva foi uma mulher, a Marija Gimbutas (1). A partir da sua identidade, a mulher construiu a deusa terra, que foi adorada como deusa porque dela saía alimento e vida. Então ela era essencialmente feminina. A mulher era o gênero hegemônico. Não havia guerras, tudo era de todos. Isso foi na época pré-histórica. Depois que o homo sapiens aparece, é que temos uma visão completamente masculina e truculenta do mundo, uma visão de competição. A cooperação estatisticamente está na mão da mulher e a competição estatisticamente está na mão do homem. Mas a civilização consumista está na mão da mulher e do homem. Essa é a grande amargura que tenho sobre a mulher: o fato de ela ser consumista. A mulher, quando pode, entra na ilusão da tecnologia, e já estamos estressando a Terra. Será que a mulher não tem culpa pela destruição da espécie? A estrutura do consumo é feita para a sexualidade, para a mulher conquistar o homem, para ela pegar a sua insatisfação e satisfazer com coisas que dão um buraco mais profundo na alma.

IHU On-Line - O que mudou nesses 50 anos de uso da pílula na postura masculina diante das mulheres? O que muda nas relações de gênero?

Rose Marie Muraro – É um medo louco. O homem tem muito medo da mulher, ele está muito deprimido e dizendo “vocês ganharam a batalha”. Vários europeus já me disseram isso. No mundo desenvolvido, isso é muito mais forte do que no mundo ainda patriarcal e familiar, como no Brasil. Na parte individual, foi o ganho da identidade, e na parte social, estamos transformando a noção de política e economia. Os homens têm a relação opressor/oprimido dentro de si. A competitividade é uma relação de opressor e oprimido. Tanto que os homens, como os americanos dizem, “marry down”, casam-se com uma mulher inferior para dominá-la, e as mulheres “marry up”, ao contrário, casam com alguém que possa livrá-las da escravidão. O mundo é hierarquizado quando é dominado pelo homem. E o mundo se estabelece em rede quando a mulher entra em cena. Então, os homens não estão acostumados. Eles estão acostumados a mandar, a fazer guerra, e já que encontram uma outra figura que faz frente a eles e diz “não”, eles se apavoram, porque nunca ouviram esse não; é a primeira vez na história.

IHU On-Line - Que outras libertações a pílula anticoncepcional trouxe para as mulheres?

Rose Marie Muraro – Como eu sou física, vejo a ciência do ponto de vista do gênero. Tenho um livro chamado Avanços tecnológicos e o futuro da humanidade, pela Editora Vozes. E o subtítulo é “querendo ser Deus”. Os homens agora estão criando vida artificial. E essa vida artificial é assassina, porque está substituindo o ser humano pelo ser tecnológico. Existem dois canalhas no mundo: um se chama Craig Venter (2), porque fez a vida sintética. E o outro se chama Raymond Kurzweil (3), que já tem uma universidade nos Estados Unidos, dos transumanistas, para fazer a junção da máquina com o ser humano. Isso nunca poderia ser uma invenção feminina. A invenção da ciência que vai direto a poucos, e não à comunidade, que escraviza grandes porções da humanidade, veio do homem.

IHU On-Line - Qual a contribuição da pílula no sentido de a sexualidade ser pensada como uma dimensão fundamental do ser humano?

Rose Marie Muraro - A sexualidade era considerada algo inferior e sujo, algo que principalmente as mulheres não deviam viver, só as prostitutas. Existiam duas ordens de mulheres: as privadas e as públicas. Hoje esse duplo padrão não existe mais. A mulher, desde criança, pode usar sua sexualidade. As meninas estão passando batom e usando colares, sapatinho de salto alto. Acho isso um escândalo, porque a infância é a infância. Ela é uma ordem simbólica, em que se vive na fantasia. E as meninas vivem na fantasia de serem mulheres. Quem sabe (isso é para o futuro), a infância e a idade adulta não estão sendo rejuntadas e reintegradas, como foram até a Idade Média. Vamos ver como os séculos se comportam.

Notas:

1.- Marija Gimbutas (1921-1994): arqueóloga conhecida por suas pesquisas sobre as culturas do Neolítico e da Idade do Bronze da Europa Antiga (um termo que ela cunhou). (Nota da IHU On-Line).

2.- John Craig Venter (1946): biólogo e empresário americano, famoso por seus trabalhos pioneiros no sequenciamento do genoma humano e, mais recentemente, por seu papel na criação de uma forma de vida artificial. Venter fundou a empresa Celera Genomics, The Institute for Genomic Research e o J. Craig Venter Institute. Trabalha atualmente neste último, onde desenvolve pesquisas acerca da criação de organismos biologicamente sintéticos, e publicação de descobertas genéticas no campo da oceanografia. Venter fez parte da lista publicada pela revista Time em 2007 e 2008, como uma das pessoas mais influentes do mundo. Em maio de 2010, anunciou o que foi rapidamente considerado o primeiro grande avanço científico do milênio, ao sintetizar pela primeira vez vida artificial. (Nota da IHU On-Line).

3.- Raymond "Ray" Kurzweil (1948): inventor e futurista americano. Está envolvido com reconhecimento óptico de caracteres (OCR), reconhecimento de fala de tecnologia e instrumentos de teclado eletrônico. É autor de vários livros sobre saúde, inteligência artificial (AI), transumanismo, singularidade tecnológica e futurismo. (Nota da IHU On-Line).


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