Por Washington Araújo
Na matéria "A farra da antropologia oportunista" (Veja
nº 2193, de 5/5/2010), seus autores realizam uma proeza e tanto.
Conseguem colocar de pé verdadeiros totens em adoração à ignorância
acadêmica, ao capitalismo redentor de todas as mazelas humanas, ao
agronegócio-bóia de salvação da economia brasileira. E também à
tendenciosidade.
Ao longo de sete páginas (154 a161) com 13
parágrafos totalizando 1.466 palavras e adicionais nove boxes, com
direito a nove fotos e nove mapas, a reportagem dirige sua bateria de
mísseis, pela ordem, aos (1) índios em geral, (2) antropólogos, (3)
negros em geral, (4) quilombolas em particular, (5) padres católicos,
(6) dirigentes e funcionários de organizações não-governamentais, (7)
agentes públicos e (8) ativistas políticos. E é farta em números,
números que fariam matemáticos se arrepiar ante a ginástica apresentada
para dar conta que "áreas de preservação ecológica, reservas indígenas
e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do
Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária,
as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o
total alcança 90,6% do território nacional."
E, como habitual
em matérias cuidadosamente planejadas para demonizar populações
vulneráveis do país – aqui entram indígenas e afrodescendentes – e
aqueles que se atrevem a levantar a voz em sua defesa, não faltam
unidades de medida no mínimo curiosas: "Isso equivale a São Paulo e
Minas Gerais", ou aquilo será como perder "todo um Pernambuco".
Coleção de antipérolas
Para
fazer jus ao tom escrachado, denunciatório e condenatório do título da
matéria ("A farra da antropologia oportunista"), iremos deparar com os
subtítulos, os títulos dos boxes em seu lugar de destaque: "Os novos
canibais"; "Um país loteado"; "Teatrinho na praia"; "Macumbeiros de
cocar"; "Made in Paraguai"; "Índio bom é índio pobre"; "Problema dos
brancos"; "Os `carambolas´"; "Não basta ser negro".
É
impressionante a capacidade que a revista tem para ofender os índios,
os antropólogos, os negros. E também é demolidora sua ação contra os
princípios comezinhos do bom jornalismo, aquele que nos incita a sermos
isentos e imparciais na feitura de reportagens, em especial aquelas com
tantos protagonistas.
Chama a atenção, como ovo quebrado em
avental de médico, que nenhuma das vozes mencionadas no texto ofereça
uma frase sequer em defesa dos índios, em defesa da demarcação de
terras indígenas, em defesa da existência de quilombos no Brasil, em
defesa dos critérios científicos adotados pelos antropólogos
brasileiros (ou não) visando à delimitação de reservas indígenas.
Também nosso raciocínio recebe portentoso olé – desses que craques do
futebol brasileiro ofereciam a nossos hermanos argentinos –
quando busca encontrar no texto uma fala sequer de índio que expresse
felicidade por ter conseguido, após tantas décadas de luta, o
reconhecimento de seu direito à posse de terras mais alargadas, amplas.
Na
matéria, chama atenção o palavreado usado, claramente beligerante, com
frases que semeiam suspeitas e um rol de ofensas direcionadas aos
índios, aos negros e a quem mais se dedique a estudá-los, conhecê-los e
defendê-los. Decidi-me a coligir tais antipérolas: "expiar pecados" (da
escravatura); "rito sumário" (usado no processo de delimitação de
terras); "indústria de demarcação"; "motivos pretensamente nobres" (de
quem trabalha com os processos de demarcação); "nenhum rigor
científico" (trabalho de antropólogos); "teor ideológico de esquerda
propensa a extinguir o capitalismo" (realmente, dá para arder na
fogueira ou ir para a câmara de gás usada pelos nazistas nos anos
1940); "ressuscitam povos extintos" (pá de cal sobre o que poderia ser
trabalho científico sério); "montar processos" (ideia de linha de
produção de coisas levianas); "destruição de perspectivas econômicas de
região inteira" (entre dignidade de povos ultrajados e produção
agrícola mecanizada...).
E tem mais: "teatro do absurdo"
(dignidade usurpada aos índios passa a ser esta vertente teatral);
"idéia maluca" (devolver terra para índio); "escândalo de proporções
amazônicas" (decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil demarcando a
reserva Raposa Serra do Sol); "nem sequer prestou contas" (lançando
nevoeiro de suspeição de grossa corrupção sobre ONG); "aberração
científica" (para quem embarcou no boimate, a turma entende do
riscado); "pretensas raízes" (raízes falsas); "leniência" (vista grossa
da Funai); "grupo de ribeirinhos que de repente se descobriram índios"
(ribeirinhos ordinários, patifes, safardanas); "declarar-se índio é uma
farra" (uma troça, caçoada, brincadeira licenciosa); "índio verdadeiro
ou das Organizações Tabajaras" (opção pela execração e repulsa aos
indígenas, dando mais crédito às gagues do programa global Casseta & Planeta); "carambola" (forma depreciativa e vil para designar quilombolas, isto é, moradores de quilombos originais).
Adjetivo bem aplicado
Quando
lemos o caudaloso texto, vemos que este, por sua natureza peculiar,
desemboca sempre nas mesmas ilhas de pensamento. E passamos a
desconfiar da força dessas águas, a meu ver turvas e barrentas. Existem
reportagens que pecam pelo excesso e demonstram à larga que tudo o que
excede os limites da moderação é fogo mortal a consumir a honestidade
intelectual e a pureza de intenção dos autores. É este o calcanhar da
reportagem. De tanto atacar e de tanto ocultar o contraditório que tema
dessa monta costuma suscitar na sociedade brasileira, não me causou
admiração que, em menos de 24 horas de sua chegada às bancas de todo o
país, um dos mais renomados antropólogos brasileiros – Eduardo Viveiros
de Castro – viesse a público simplesmente dizer o seguinte:
"Aos Editores da revista Veja:
Na matéria `A farra da antropologia oportunista´ (Veja
ano 43, nº 18, de 05/05/2010), seus autores colocam em minha boca a
seguinte afirmação: `Não basta dizer que é índio para se transformar em
um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural
original.´ Gostaria de saber quando e a quem eu disse isso, uma vez que
(1) nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela
matéria; (2) não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em
qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma. Na
verdade, a frase a mim mentirosamente atribuída contradiz o espírito de
todas as declarações que já tive ocasião de fazer sobre o tema. Assim
sendo, cabe perguntar o que mais existiria de `montado´ ou de
simplesmente inventado na matéria. A qual, se me permitem a opinião,
achei repugnante.
Grato pela atenção, Eduardo Viveiros de Castro"
Poucas
vezes o adjetivo categórico será tão bem aplicado como faço aqui ao
designar este desmentido de Viveiros de Castro. O vocábulo, de origem
grega (kategorikós), reúne de uma só vez os significados claro,
explícito, positivo. E o texto de Viveiros de Castro poderia servir de
ilustração ao verbete em qualquer dicionário que se preze.
"Relatórios ressuscitaram povos extintos"
Ato
quase contínuo, o também antropólogo, professor da Universidade Federal
Fluminense e ex-presidente da Funai Mércio Pereira Gomes, citado na
matéria, publicou nota em seu site, reproduzida neste Observatório, da qual destaco o seguinte trecho:
"(...) Mais uma vez, a revista Veja traz em suas páginas matéria cheia de injúrias aos povos indígenas brasileiros.
Não
pode passar despercebido ao mais desavisado e ingênuo leitor dessa
revista o ranço, o azedume de preconceitos e vícios jornalísticos
apresentados sobre a questão indígena brasileira. Porém, a factualidade
do texto também está comprometida por desvirtuamentos de pesquisa,
compreensão e análise que certamente intencionam provocar uma impressão
extremamente negativa da questão indígena em nosso país.
Os
autores da matéria `A farra da antropologia oportunista´, ao que tudo
indica jornalistas jejunos no trato de tais assuntos, parecem perseguir
uma linha editorial ou um estilo jornalístico em que a busca de
objetividade possível é relegada ao interesse ideológico de denegrir as
conquistas dos segmentos mais oprimidos do povo brasileiro e demonstrar
o seu favorecimento aos poderosos da nação. Primam por um estilo
sardônico, próprio de jornalistas que fazem de seu ofício a defesa
inquestionável do status quo social e econômico brasileiro, aludem a
supostos fatos a partir de evidências descontextualizadas e apresentam
citações sem a mínima preocupação com comprovação. (...)"
Veja
afirma que existe no Brasil "uma verdadeira indústria de demarcação".
Será mesmo? Quem seriam os industriais, os donos dessas fábricas? Não
teria sido adequado que Veja apresentasse em seu texto as
características dessa indústria, as fases do tal processo industrial
que enseja a demarcação? Com o dedo ainda no gatilho, os autores da
matéria lançaram outro torpedo, igualmente sem maiores explicações, sem
detalhamento, sem apresentar evidências que sustentem:
"(...)
A maioria desses laudos é elaborada sem nenhum rigor científico e com
claro teor ideológico de uma esquerda... Alguns relatórios
ressuscitaram povos extintos há mais de 300 anos. Outros encontraram
etnias em estados da federação nos quais não há registro histórico de
que elas tenham vivido lá. Ou acharam quilombos em regiões que só
vieram a abrigar negros depois que a escravatura havia sido abolida."
"Aberração científica"
Não
seria o caso de utilizar alguns dos vários boxes com fac-símiles de
dois ou três dos laudos pinçados da "maioria de laudos sem nenhum rigor
científico"? Quais eram os povos indígenas exterminados nos 1700? Como
ocorreu seu ressuscitar? O que a academia tem a dizer, contra ou favor,
de tão estupenda declaração? A forma desabrida com que as acusações são
arremessadas me fez pensar naquela notícia de Veja com gosto de tomate.
Explico. Na edição 764, de 27 de abril de 1983, Veja
publicou matéria tomando 2/3 da página 84. Estava na seção "Ciência"
com o título "Fruto da carne" e subtítulo "Engenharia genética funde
animal e vegetal". O lide da matéria abria com: "Familiarizados com as
delicadas estruturas das células..." Pois bem, a matéria dava conta que
"dois biólogos" da Universidade de Hamburgo, Alemanha, Barry MacDonald
e William Wimpey, haviam conseguido fazer o cruzamento de boi com
tomate e o resultado era uma tenra carne que já vinha com molho.
Brincadeira?
Não. Basta conferir o acervo digital da revista e se deliciar (sem
trocadilhos, é claro) com a saborosa história que é hoje um clássico do
jornalismo brasileiro. Aliás, a edição comemorativa de seus 30 anos
traz referência ao assunto: "Boimate – Num ousado avanço da biologia
molecular, dois biólogos de Hamburgo, na Alemanha, fundiram pela
primeira vez células animais com células vegetais – as de um tomateiro
com as de um boi. Deu certo."
A matéria parece reproduzir famosa cena do filme Scarface
em que Al Pacino, encarnando o mafioso absolutamente fora de controle,
atinge tudo à sua volta, qual metralhadora humana giratória, mirando
sempre até onde seus olhos alcancem. Escreveu Veja:
"A
ganância e a falta de controle propiciaram o surgimento de uma
aberração científica. Antropólogos e indigenistas brasileiros
inventaram o conceito de `índios ressurgidos´. Eles seriam herdeiros de
tribos extintas há 200 ou 300 anos."
Depois do boimate ressuscitado acima, fica difícil os autores falarem de "aberração científica", não acham? Por que Veja
não nomeou ao menos meia dúzia, três ou apenas dois dos tais
antropólogos e indigenistas brasileiros que inventaram o conceito de
`índios ressurgidos´? Até entendo: será que haveria processo? Curioso é
que nomes de líderes indígenas são sempre nomeados. Estranho? Não, no
caso aqui abordado, é apenas praxe mesmo.
"Governo gasta 250% mais com saúde de índio"
Outra
investida afirma que "(...) em vários desses grupos, ninguém é capaz de
apontar um ancestral indígena nem de citar costumes tribais. Veja
deparou com comunidades usando cocares comprados em lojas de
artesanato". Chega a ser risível a natureza da afirmação. Por acaso os
brancos que vivem no Brasil – ou seja, não índios, não negros –
saberiam apontar um ancestral português? No máximo, chegamos até nossos
bisavôs. E, considerando a oralidade marca registrada das culturas
indígena e africana, não considero razoável abordar um índio com
questão como esta: "O senhor saberia me apontar algum ancestral seu?"
Os
autores da matéria deveriam saber que quando morre um índio muito idoso
é, para sua tribo, como se tivesse sido incendiado a Biblioteca de
Alexandria. O mesmo para quando morre um preto velho na África. A
cultura é oral. E sendo oral, haja memória para abarcar nomes de seus
ascendentes, já sendo difícil nomear todos os descendentes... Quanto a
usar cocares "comprados em lojas de artesanato", nada mais natural e
nada de extraordinário. Ninguém nunca viu documentários sobre os índios
no Xingu, sobre os Pataxós, os Kiriris, sobre os Kaingangues, sobre os
Terenas? Qualquer documentário informará que sua principal atividade
econômica é o comércio de... artesanato. O que inclui colares e
cocares, maracás, brincos de pedras e penas multicoloridas, saias de
palha seca, arcos e flechas belamente enfeitados e outros artigos mais.
Pela lógica da matéria deveria causar espanto saber que brancos usam
camisas compradas na Aramis ou na Colombo, ao invés de fazerem eles
mesmos seus trajes.
Para não cansar o leitor, cito mais um trecho da desditosa reportagem. Diz assim:
"No
governo do PT, basta ser reconhecido como índio para ganhar Bolsa
Família e cesta básica. O governo gasta 250% mais com a saúde de um
índio – verdadeiro ou das Organizações Tabajara – do que com a de um
cidadão que (ainda) não decidiu virar índio."
Diferenças ambientais amplificadas
"Tão
afáveis, tão pacíficos, são eles", escreveu Cristovam Colombo ao rei e
à rainha da Espanha, "que juro a Vossas Majestades que não há no mundo
uma nação melhor. Amam seus próximos como a si mesmos, e sua conversa é
sempre suave e gentil e acompanhada de sorrisos; embora seja verdade
que andam nus, suas maneiras são decentes e elogiáveis." Colombo, sendo
um europeu bem intencionado, convenceu-se de que o povo deveria ser
posto a trabalhar, plantar e fazer tudo que é necessário para adotar nossos costumes. Em reação à resistência dos povos indígenas a aceitar os costumes europeus,
os colonizadores, utilizando-se de sabres e armas de fogo, trucidaram
centenas de milhares de pessoas, dizimaram tribos inteiras, em menos de
uma década após Colombo ter pisado na praia de São Salvador (12 de
outubro de 1492).
No livro A Conquista da América Latina vista pelos Índios, Miguel León-Portilla resgata este lamento dos povos indígenas à época do descobrimento:
"Então,
tudo era bom e então os deuses foram abatidos. Havia neles sabedoria.
Não havia então pecado. Não havia então enfermidade. Não havia dor de
ossos. Não havia febre para eles. Não havia varíolas. Retamente ia seu
corpo então... Não foi assim que fizeram os dzules
(estrangeiros) quando chegaram aqui. Eles nos ensinaram o medo, vieram
fazer as flores murchar. Para que sua flor vivesse, danificaram e
engoliram nossa dor..."
Ninguém lê mais Bartolomé de
Las Casas? Ninguém leu Darcy Ribeiro? Ninguém passou os olhos nos
excelentes textos dos irmãos Villas-Boas? Se não fez, obviamente não
sabe quão frágil é a saúde de um índio. Se tivessem lido Armas, germes e aço,do
biólogo evolucionário, fisiologista e biogeógrafo Jared Diamond,
vencedor do Prêmio Pulitzer, saberiam o que levou a civilização da
Eurásia, como um todo, a sobreviver e a conquistar outras civilizações
e entenderia também sua maneira realmente brilhante de refutar a crença
de que a hegemonia eurasiana seria devida a alguma forma de
superioridade intelectual ou moral. É o mesmo Diamond quem afirma – com
bons argumentos – que as diferenças de poder e tecnologia entre as
sociedades humanas não refletem diferenças culturais ou raciais, mas
sim, são causadas por diferenças ambientais amplificadas por diversas
retroalimentações positivas.
Assunto mobilizador
Os
autores poderiam se inteirar mais acerca do trabalho antropológico.
Perceberiam rapidamente, e com ampla margem de assertividade, que esse
trabalho é necessariamente resultado de ação política, mesmo quando o
profissional realiza unicamente trabalho de campo, segundo os cânones
da ciência, pois o exercício da antropologia volta-se para a
demonstração da diversidade cultural na tentativa de compreendê-la. E
não poderiam deixar de lado a compreensão que os resultados obtidos
pelos antropólogos funcionam (note-se: independente da vontade do
profissional) como mísseis direcionados às certezas estabelecidas,
suavemente apreciadas pelo mundo ocidental, pois o homem não realiza
sua natureza ímpar numa humanidade abstrata, como, aliás, já nos
ensinava mestre Lévi-Strauss.
Os povos indígenas possuem imensa
capacidade de expressão oral, mas as ferramentas de trabalho do
antropólogo não captam metade (50%) do que nos é dito, sendo claramente
otimista. Dado à sua natureza, tal fato transforma laudos em peças nem
sempre muito expressivas, se considerarmos a gravidade e complexidade
das dificuldades e, sobretudo, os conflitos referidos pelos demandantes
dos serviços antropológicos. Por outro lado, os povos indígenas, ao se
expressarem com eloqüência em seus próprios idiomas, nem sempre são
compreendidos pelos agentes públicos, pois usam epistemologia própria.
Mas é correto afirmar que esses agentes, mesmo sem compreender
integralmente o dito, terminam por decidir suas vidas, desde o apoio às
suas reivindicações até a solução de conflitos de terra. As questões e
desafios enfrentados pelos antropólogos não passam, unicamente, pela
diferença, mas, especialmente, pelo entendimento da diversidade como
direito à diferença, e não como sinônimo de desigualdade. Creio que
tais pensamentos estavam a anos-luz dos que escreveram "A farra da
antropologia oportunista". Estarei errado? Julgue o leitor.
A
esta altura, o leitor já deve ter observado que o assunto me mobiliza
completamente. É que em 1978 vivi algum tempo na tribo indígena dos
Kiriris, em Mirandela, no sertão baiano. Em 1991, meu primeiro livro
buscou resgatar o descobrimento da América na visão dos próprios índios
e se chamou Estamos desaparecendo da Terra. Em 1994, viajei por
14 cidades espanholas fazendo palestras em duas dezenas de
universidades com o assunto do livro, que ganhou bela edição em Madri.
Em 1997, fui ao México e durante 27 dias apresentei meu segundo livro
sobre o tema: O esquecimento está cheio de memória.
Os condenados da Terra
Tendo em mente o mal-estar que me causou a leitura da reportagem de Veja,
e vendo sua clara intenção em encobrir, uma vez mais, a voz e a visão
dos próprios indígenas, entendo ser mais que oportuno começar a
preencher a imensa solidão de espírito que seus autores lançaram sobre
os remanescentes indígenas do Brasil. É notório que aqueles que leram a
tal matéria encontraram argumentos, na maioria falaciosos, para
justificar animosidades e preconceitos para com os povos indígenas.
Afinal, em nenhum box, em nenhuma situação, o personagem índio (ou
negro) apareceu em situação positiva, sob algum enfoque positivo. Ao
contrário, faltou bem pouco para que os autores concluíssem que o maior
flagelo que jamais acometeu o Brasil foi a existência de seus povos
originais.
Escutemos a palavra de algumas de nossa nobres e
valentes lideranças indígenas. Estes que, como quer fazer crer o
jornalismo praticado por Veja, são vistos por expressões nada
lisonjeiras como as já mencionadas aqui: "novos canibais", "made in
Paraguai", ou então, pelo não menos ofensivo "macumbeiros de cocar".
Dediquemos alguns minutos mais para para escutar a voz desses
condenados da Terra:
** De Sampré, da Tribo Xerente: "Nosso sofrimento começou com o primeiro navio que chegou ao Brasil."
**
De João Tintim, Avelezim e Carmindo Maxacali: "O homem branco, aquele
que se diz civilizado, pisou duro não só na terra, mas na alma do seu
povo" (Carta ao deputado Mário Juruna, em 10/08/83).
**
De Eugênio, da Tribo Bororó: "Mas quem compreende um pouco a criatura,
não ignora que Deus lhes deu poder. Nós usamos o remédio das plantas.
Temos crenças, benzedores. Acreditamos que Deus colocou a natureza para
o homem aproveitá-la. Deus criou todas as coisas, todos os animais para
o índio servi-lo. Nosso povo não pode se esquecer da tradição.
Interessa-nos só o que é nosso. O que é importante em nossa vida é
nosso costume."
**
De Tupa´y, da Tribo Guarani: "Não queremos emancipação, nem integração.
Queremos o nosso direito de viver. Jamais o branco compreenderá o
índio. Queremos ser um povo livre como antigamente. O índio está
cercado, amordaçado por uma burocracia que não funciona. Por isso nós
vamos a campo."
**
De Umuru, índio da tribo, contando 70 anos de idade:"Difícil na cidade
um falar com outro. Ora, índio quando se encontra é uma festa, muita
conversa, muita alegria, pouca pressa."
Respeito, admiração e apreço
Aproveito
este espaço para repercutir estes excertos do discurso de Marçal de
Sousa, da tribo Guarani, assassinado em 1983, feito por ocasião da
visita de João Paulo II ao Brasil, em julho de 1980:
"Eu sou
representante da grande tribo Guarani. Quando nos primeiros anos, com o
descobrimento dessa grande pátria, nós éramos uma grande nação e hoje
eu não poderia, como representante dessa nação que hoje vive à margem
da chamada civilização... não poderíamos nos calar pela sua visita a
este país. Como representante, por que não dizer, de todas as nações
indígenas que habitam este país que está ficando tão pequeno para nós e
tão grande para aqueles que nos tomaram esta pátria. Somos uma nação
subjugada pelos potentes, espoliada, uma nação que está morrendo aos
poucos sem encontrar o caminho porque aqueles que nos tomaram este não
têm dado condições para a nossa sobrevivência... Leve o nosso clamor, a
nossa voz, para outros territórios que não são nossos, mas que o povo,
uma população mais humana lute por nós porque o nosso povo, uma
população mais humana lute por nós, porque o nosso povo, a nossa nação
indígena, está desaparecendo do Brasil. Este é o país que nos foi
tomado."
Nesta década inicial do século 21, quando o mundo é
marcado pela tolerância cosmopolita preconizada pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos pós-II Guerra Mundial e consolidada
pelos receios produzidos pelo nazismo, considero tal matéria como
correndo a passos largos na contramão da História. E se existe um povo
que merece respeito, admiração e apreço, não tenho dúvida alguma, é o
povo indígena. E não importa em que parte do Brasil esteja radicado e
muito menos em que parte das América seja encontrado. Respeito. Será
pedir muito?
Fonte: Observatório da Imprensa