Entrevistas
"Veja foi indispensável para construir o neoliberalismo"
Por Lia Segre Observatório do Direito à Comunicação
A professora do curso de
História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) Carla
Luciana Silva passou meses dedicando-se à leitura paciente de pilhas de
edições antigas da revista Veja. A análise tornou-se uma tese de doutorado, defendida na Universidade Federal Fluminense, e agora, em livro. Veja:
o indispensável partido neoliberal (1989-2002) (Edunioeste, 2009, 258
páginas) é o registro do papel assumido pela principal revista do Grupo
Abril na construção do neoliberalismo no país.
A hipótese
defendida pela professora Carla é que a revista atuou como agente
partidário que colaborou com a construção da hegemonia neoliberal no
Brasil. Carla deixa claro que a revista não fez o trabalho sozinha, mas
em consonância com outros veículos privados. Porém, teve certo
protagonismo, até pelo número médio de leitores que tinha na época – 4
milhões, afirma Carla em seu livro.
“A revista teve papel
privilegiado na construção de consenso em torno das práticas
neoliberais ao longo de toda a década. Essas práticas abrangem o campo
político, mas não se restringem a ele. Dizem respeito às técnicas de
gerenciamento do capital, e à construção de uma visão de mundo
necessária a essas práticas, atingindo o lado mais explícito,
produtivo, mas também o lado ideológico do processo”, afirma trecho do
livro.
O livro pode ser adquirido diretamente com a autora, através do email
carlalssilva@uol.com.br
Sobre o título do livro, porque “indispensável”? É uma brincadeira com o slogan da Veja ou reflete a importância da revista para o avanço do neoliberalismo no Brasil? O
título é uma alusão ao slogan da revista e ao mesmo tempo nos lembra
que ela foi um sujeito político importante na construção do
neoliberalismo. A grande imprensa brasileira foi indispensável para que
o neoliberalismo tenha sido construído da forma que o foi. A Veja diz
ser indispensável para o país que queremos ser. A pergunta é: quem está
incluído nesse “nós” oculto? A classe trabalhadora é que não.
Quais os interesses defendidos por Veja? Os
interesses são os dominantes como um todo, mais especificamente os da
burguesia financeira e dos anunciantes multinacionais. Em que pese o
discurso de defesa da liberdade de expressão articulado à publicidade,
o que importa pra revista são os interesses em torno da reprodução
capitalista. A revista busca se mostrar como independente, o que se
daria através de sua verba publicitária. É fato que a revista tem uma
verba invejável, mas isso não a transforma no Quarto Poder, que
vigiaria os demais de forma neutra. Ao mesmo tempo em que ela é
portadora de interesses sociais, faz parte da sociedade, a sua
vigilância é totalmente delimitada pela conjuntura e correlação de
forças específica. O exemplo mais claro são as denúncias de corrupção e
forma ambígua com que Veja tratou o governo Collor, o que discuto detidamente no livro.
Isso significa defender atores e grupos específicos? E, ao longo dos anos, estes atores mudam? Essa
pergunta é mais difícil de responder, requer uma leitura atenta, a cada
momento histórico especifico. A revista não é por definição, governista
[no período estudado]. Ela é defensora de programas de ação. No período
analisado (1989-2002), sua ação esteve muito próxima do programa do
Fórum Nacional [www.forumnacional.org.br]
de João Paulo dos Reis Velloso. Ela busca convencer não apenas seus
leitores comuns, mas a sociedade política como um todo e também os
gerentes capitalistas.
E que relação Veja estabelece com grupos estrangeiros? Essa
é outra pergunta que requer atenção e mais estudos. O Grupo Abril não é
um grupo “nacional”. Suas empresas têm participação direta de capital e
administração estrangeira. Primeiro, é importante ter claro que o Grupo
Abril não se restringe a suas publicações. A editora se divide em
várias empresas, sendo que a Abril é majoritariamente propriedade do
grupo Naspers, dono do Buscapé [site de comparação de preços] e de
empresas espalhadas pelo mundo todo, da Rússia à Tailândia. Essa luta
pela abertura de capital [no setor das comunicações] foi permanente ao
longo dos anos 1990 e a Abril foi o primeiro grande conglomerado [de
comunicação] brasileiro a abrir seu capital legalmente. É bom lembrar
que o grupo tem investido bastante também na área da educação, e por
isso a privatização do ensino continua sendo uma meta a atingir.
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email Aconteceram várias edições do “Fórum Nacional” no período em que faz sua análise. Por que Veja defendeu com tanto afinco as resoluções, especialmente econômicas, saídas desse Fórum? O
Fórum Nacional tem vários títulos. Eles [os integrantes do Fórum] foram
se colocando ao longo dos anos, desde 1988, como intelectuais que
pensam o Brasil e defendem programas de ação – as formas específicas de
construção de um projeto sócio-econômico, que mudaram ao longo dessas
duas décadas. Não existe um vínculo orgânico da revista com o Fórum, ao
menos não o comprovamos, mas existe uma afinidade de programa de ação.
A tentativa de reforma da Constituição em 1993 foi um bom exemplo,
conforme desenvolvo no livro.
No livro, você aponta
que a Veja “comprou” as idéias no Fórum Nacional, transformando-as numa
verdadeira cartilha econômica para salvar o Brasil no começo dos anos
90. Quais seriam os principais tópicos desta “cartilha”? O
Fórum Nacional surgiu em 1988 como uma forma de organizar o pensamento
e ação dominante. Ele se constituiu um verdadeiro aparelho privado de
hegemonia, buscando apontar caminhos para a forma da hegemonia nos anos
1990. E existe até hoje, fazendo o mesmo. Portanto, ele não é apenas
uma fórmula econômica, mas de economia política. Tratou de temas
relevantes como “modernidade e pobreza”, “Plano Real”, “Segurança”,
“estratégia industrial”, “política internacional”, sempre trazendo
intelectuais considerados “top” do pensamento hegemônico para
ver, a partir de suas pesquisas, quais caminhos deveriam ser seguidos,
não apenas pelos governos, mas também pela sociedade política, ditando
os rumos da economia.
Essa “cartilha” econômica foi atualizada? Você se recorda de alguma campanha recente em que a revista tenha tomado a frente? A
atualização é constante, mas não é uma cartilha. O Fórum e a revista
são independentes um do outro, ao que parece, não há um vinculo
orgânico. Mas Veja assumiu várias campanhas, sendo a
principal delas a manutenção do programa econômico de Fernando Henrique
durante todo o governo Lula. A blindagem feita ao presidente Lula da
Silva foi imensa, especialmente se compararmos com o que foi feito do
caso do mensalão ao que ocorreu no governo Fernando Collor. O que
explica isso parece ser claramente a política econômica [de FHC e
reproduzida por Lula] que garantiu lucros enormes aos bancos e a livre
circulação de capitais, além de outras políticas complementares.
Qual foi a importância da revista para a corrente neoliberal desde Collor? Dá para mensurar? Foi
muito importante, mas não dá pra mensurar. É importante que tenhamos
claro que o neoliberalismo não é uma cartilha, por mais que se baseie
em documentos como o Consenso de Washington, por exemplo. Ele não foi
“aplicado”. Foi construído como projeto de hegemonia desde os anos
1980. A grande imprensa participou da efetivação de padrões de consenso
fundamentais: as privatizações, o ataque ao serviço público, a suposta
falência do Estado. É importante olharmos hoje, pós crise de 2008, para
ver que muitos desses preceitos são defendidos como saída da crise.
Qual a importância de Veja para as privatizações? Difícil medir dessa forma. Posso falar da importância das privatizações para Veja:
elas precisavam acontecer de qualquer forma. E isso era um compromisso
com o projeto que representava e com os seus interesses capitalistas
específicos, do Grupo Abril. É bom lembrar que a criação de consenso em
torno desse ideal foi importante para que o grupo pudesse abrir seu
capital oficialmente ao capital externo.
Veja deixa
de ser neoliberal para ser neoconservadora? Digamos assim, amplia sua
atuação do debate econômico, fundamental à implantação do
neoliberalismo, e passar a fazer campanhas também em outras pautas
conservadoras? Não vejo essa distinção. Neoliberalismo foi
um projeto de hegemonia, uma forma de estabelecer consenso em torno de
práticas sociais específicas. A forma do capitalismo imperialista,
portanto, não se restringe à economia. A política conservadora sempre
esteve presente no neoliberalismo, haja visto a experiência de [Ronald]
Reagan [presidente dos Estados Unidos] e [Margareth] Thatcher
[primeira-ministra da Grã-Bretanha], a destruição do movimento
sindical, a imposição do chamado pensamento único. Por esse caminho
chegou-se a dizer que a história tinha acabado e que a luta de classes
não fazia mais sentido. Os movimentos sociais foram duramente
reprimidos e, além disso, se buscou construir consenso em torno de sua
falência, o que foi acompanhado pelo transformismo dos principais
partidos de esquerda, especialmente no Brasil. O que vemos hoje é a
continuidade dessa política. Os dados dos movimentos sociais denunciam
permanentemente o quanto tem aumentado a sua criminalização ao passo
que os incentivos ao grande capital do agrobusiness só aumenta.
Existem diferenças muito contundentes entre a Veja de 89, a de 2002 e a de hoje? Há
diferenças claro. Havia, em 1989, um grau um pouco mais elevado de
compromisso com notícias, com investigações jornalísticas, o que parece
ter se perdido totalmente ao longo dos anos. A revista se tornou uma
difusora de propagandas, tanto de governos como de produtos (basta ver
as capas sobre Viagra ou cirurgias plásticas).
Já nos
primeiros capítulos do livro, você chama atenção para o fato de Veja
ser muito didática e panfletária quanto ao liberalismo. Ela deixou de
fazer apologia ao neoliberalismo de maneira tão clara? Teria
que analisar mais detidamente. Essa é uma coisa importante: sentar e
ler detidamente, semanas a fio, pra podermos concluir de forma mais
segura a posição da revista.
Em algum momento do período analisado a revista foi muito atacada por alguma cobertura específica? Sim, a revista teve embates, especialmente com a IstoÉ e, posteriormente, com a Carta Capital. Essas revistas talvez tenham ajudado a tirar uma ou outra assinatura de Veja em conjunturas especiais. O caso Collor não é simples como parece. A revista Veja
fazia campanha nas capas mostrando o movimento das ruas e dentro do
editorial ia dizendo que o governo deveria ser mantido em nome da
governabilidade. Foi quando isso se tornou insustentável que ela
defendeu a renúncia do presidente (e não o impeachment). Mas depois,
construiu uma bela campanha publicitária. A Abril colocou luzes verde
amarela em seus prédios, lançou boton comemorativo, pra construir
memória, dizer que foi ela que derrubou o Collor. O importante é a
gente perceber que não é esse o movimento mais importante. O importante
é a gente ter instrumentos contra-hegemônicos que nos permitam
construir uma visão efetivamente critica do que está acontecendo. É
importante ressaltar que ela [Veja] sempre fala como se fosse
a porta-voz dos interesses da nação, do país, da sociedade, e como se
não fosse portadora de interesses de classe.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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