A
seguir, a diretora de Desinformémonos fala sobre esse projeto
internacional e a experiência acumulada em anos junto aos zapatistas.Brasil de Fato – Pode nos falar um pouco de como nasceu o projeto Desinformémonos?
Gloria Muñõz – Consideramo-nos
uma ferramenta de luta por um mundo melhor, ou seja, por um mundo
justo, livre e democrático. Aderimos às batalhas que se passam “abajo y
a la izquierda”, à margem do poder e dos poderosos. Estamos do lado da
autonomia dos povos, pelo direito a decidir sobre nossos próprios
destinos. Somos, sem ambiguidades, fruto de uma luta que, desde 1º de
janeiro de 1994, nos transformou: o levantamento do Exército Zapatista
de Libertação Nacional (EZLN). E é no terreno da “desinformação” que
atuaremos.
Por que “Desinformémonos”?
Pegamos
o nome emprestado de Mario Benedetti [poeta e escritor uruguaio morto
em maio do ano passado]. Estávamos preparando esse projeto quando fomos
surpreendidos pela triste notícia de sua morte. Pusemos pra tocar um CD
com seus poemas, gravado para La Casa de las Américas, como uma singela
homenagem a esse grande poeta e lutador das causas justas. De repente,
no meio da incipiente edição dessa revista, lá estava o poema:
desinformémonos hermanos/ hasta que el cuerpo aguante/ y cuando ya no
aguante/ entonces decidámonos/ carajo decidámonos/ y revolucionémonos.
Depois,
veio o jogo de palavras. Desinformar-se e enfrentar a investida dos
grandes meios de comunicação capitalistas, aqueles que nos dizem o que,
como, quando, onde e por que, do ponto de vista – e para benefício –
dos poderes políticos e econômicos, dirigido àqueles que se creem os
donos do mundo. “Desinformémonos”: desfazer-nos do que nos oferecem e
munirmo-nos de Outra Informação, geralmente invisível, na qual os
depoimentos dos “ninguéns”, como diz Eduardo Galeano [jornalista e
escritor uruguaio] são o que nos dá sentido e corpo, horizonte e
destino. Os povos têm suas próprias vozes e eles mesmos se encarregam
de que os demais as escutem.
O que nos propusemos em
Desinformémonos é ser olhado e ouvido… caixinhas de ressonância.
Escutar, como diria o estimado escritor [inglês] John Berger, “as vozes
da terra… sempre em baixo”. Sem confundir, como ele mesmo nos alerta,
“a intenção deliberada de desinformar com o estar desinformado”. A
resistência, nos disse no processo de inauguração desse espaço, “está
em saber escutar a terra. A liberdade é descoberta pouco a pouco, não
do lado de fora, mas nas profundidades da prisão”.
Quem são os colaboradores do projeto?
Bom,
somos pessoas de muitas partes do mundo. Nosso ponto de vista pretende
ser global e abarcar lutas e resistências dos cinco continentes.
Atualmente, tocam esse projeto homens e mulheres do México, Argentina,
Brasil, Estados Unidos, Alemanha, França, Espanha e Itália, com
colaboradores na Grécia, Palestina, Turquia, Irã, Bélgica, Chile, Grã
Bretanha, República Árabe Saaráui e Honduras.
Em sua
experiência junto aos zapatistas, foi possível acompanhar como eles
utilizaram de maneira muito hábil a internet para comunicar suas
posições para todo planeta. Como isso se deu?
A ideia
do uso da internet pelos zapatistas nasceu como um mito que, em muitos
sentidos, persiste ainda hoje. Em 1994, a internet ainda era algo muito
incipiente e os primeiros comunicados do EZLN eram xerox distribuídos a
nós jornalistas na cidade de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas.
Com o tempo, um exército de mulheres e homens anônimos se incumbiu de
difundir as palavras zapatistas pela internet. Na selva em que vivem os
zapatistas, não havia sequer luz, que dirá um computador. Assim, o
mérito da difusão da palavra zapatista no ciberespaço não é
propriamente zapatista, mas de todos que acreditaram nesse movimento e
fizeram circular seus comunicados e pronunciamentos. Atualmente,
algumas comunidades em resistência têm acesso à internet, mas isso é
algo relativamente novo e não pode ser generalizado.
De que maneira a internet pode fazer frente aos meios de comunicação tradicionais em favor dos movimentos sociais?
Esse
ciberespaço, ainda que criado pela elite, tem servido de ferramenta,
vínculo e ponte para os setores da base nos últimos quinze anos. As
lutas e a resistência dos povos campesinos e indígenas, dos migrantes,
trabalhadores, estudantes, jovens e um longo etcétera, transitam pela
rede produzindo identificações onde menos se esperava, isso apesar do
acesso à internet ainda estar longe de ser uma realidade, ao menos nos
países do chamado Terceiro Mundo. Mas isso não é necessariamente uma
carência. Provavelmente não necessitam dessa “conexão”.
O que
desejamos com Desinformémonos é aproveitar esse espaço virtual, não
apenas por falta de recursos para nascer em papel, como gostaríamos,
mas porque reconhecemos nesse meio uma alternativa para conhecer o
outro, a outra, suas histórias e tragédias, de um lado ao outro do
planeta. Desejamos, como diria o mestre do jornalismo [bielo-russo]
Ryszard Kapuscinski, “converter-nos imediatamente, desde o primeiro
momento, em parte de seus destinos”. Afinal, somos os mesmos, as
mesmas. E estamos na mesma situação. Entretanto, a internet, ao menos
no México e em muitos países da América Latina, não é um meio acessível
para toda a população. Nas áreas rurais e nos bairros de periferia, as
pessoas não estão conectadas à rede. Essa é a razão, creio, de que o
principal meio de comunicação popular, por excelência, continua sendo o
rádio e de que, até agora, não haja espaço para se substituir a
comunicação alternativa em papel. Insisto que estou falando do mundo
dos de baixo.
É por isso que na Desinformémonos criamos uma
revista de bairro e comunitária em PDF, com o objetivo de que seja
distribuída em comunidades que não têm acesso à internet. Essa singela
revista pode ser distribuída como “folhas soltas” ou pregada em algum
muro como jornal-mural.
Com
a dificuldade de transmitir mensagens ao grande público, como os
movimentos sociais são mostrados hoje nos grandes meios de comunicação
mexicanos?
Os movimentos sociais não aparecem nos
grandes meios de comunicação do México e, quando aparecem, são
satanizados e desprestigiados. Poderia dizer que apenas o jornal La
Jornada (considerando os meios de comunicação massiva, não os marginais
nem alternativos) dá espaço para as lutas sociais do país. É por isso
que, cada vez mais, os movimentos vêm criando seus próprios meios, para
que sua palavra seja conhecida. Ao mesmo tempo, crescem os meios
alternativos, livres e independentes, ainda que com muitas limitações.
Nas revoltas de Oaxaca, a tomada das rádios foi a primeira ação dos movimentos mobilizados. O que isso pode significar?
A
Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) não apenas tomou as
rádios e até mesmo a televisão comercial; ela criou uma rede de meios
de comunicação. Essa rede serviu não só para difundir suas causas, mas
para convocar, organizar as barricadas e as marchas e, sobretudo, a
defesa da ocupação que mantiveram no centro da cidade. Tomar as rádios
e a televisão foi muito significativo para mostrar a força popular do
movimento, mas foi ainda mais relevante a forma como conseguiram
conduzir a relação com as rádios alternativas, principalmente com a
Radio Plantón, que é hoje um exemplo do grande poder que um meio dessa
natureza pode significar, de “abajo y a la izquierda”, de dentro do
próprio movimento.
Você acredita que os movimentos de esquerda conhecem a importância da comunicação em um processo de mudança?
Acredito
que os movimentos de esquerda estão cada vez mais conscientes da
importância de uma comunicação do e para o movimento. Entretanto,
acredito que enfrentamos grandes desafios, pois muitas vezes não
comunicamos entre nós mesmos o que está acontecendo, não fazemos grande
esforço para ultrapassar as barreiras impostas e fazer com que nossa
palavra chegue “a outros como nós”. Na minha opinião, esse é um grande
desafio, e devemos nos preocupar em não estar à margem, mas em atingir
cada vez mais gente, sem preconceitos nem esteriotipização. Nunca
sabemos onde ou quando haverá ressonância, temos que procurar por isso
permanentemente. Ao mesmo tempo, acredito que outro desafio é a
manipulação da linguagem feita pelos movimentos sociais de esquerda.
Acho que devemos nos arriscar mais, jogar com as palavras e com as
imagens, não ser tão sérios, mas ter a capacidade de rirmos, de sermos
irônicos, de dar espaço ao jogo e à palavra lúdica. Esse, finalmente,
foi outro dos ensinamentos dos zapatistas que, desde o princípio,
comunicam-se com uma linguagem diferente, que incluem desde um conto,
até uma piada ou uma canção.