Entrevistas
"Situação dos EUA é insustentável no longo prazo" - diz Domenico Losurdo
No
plano estratégico, a fraqueza dos Estados Unidos emerge de alguns dados
elementares: com 5% da população mundial e 20% do PIB (Produto Interno
Bruto) mundial, eles representam 50% das despesas militares do planeta!
A longo prazo esta situação é insustentável, sobretudo se se leva em
conta que o percentual estadunidense do PIB mundial tende a diminuir,
enquanto continua a crescer a dívida pública. A avaliação é do filósofo
italiano Domenico Losurdo que, em entrevista exclusiva à Carta Maior,
analisa a situação da maior potência do planeta e a possibilidade do
surgimento de uma alternativa à atual hegemonia norte-americana.
Por Emir Sader - Carta Maior
Marcando o lançamento de A linguagem do Império – léxico da ideologia estadunidense,
a Boitempo traz ao Brasil o filósofo Domenico Losurdo, para uma série
de conferências em universidades brasileiras. Em entrevista concedida à Carta Maior, Losurdo fala sobre alguns dos temas que debaterá no Brasil.
Você consideraria que a hegemonia imperial dos Estados Unidos está em decadência ou mantém sua predominância hoje no mundo?
Domenico Losurdo: O declínio dos EUA é inegável e isso se
tornou ainda mais evidente com a crise econômica que explodiu em 2008.
E, no entanto, seria um erro grave subestimar a força e o perigo
daquela que é ainda hoje a única superpotência mundial. Os EUA estão
presentes em todos os lugares com seus navios de guerra e com suas
bases e, graças à enorme vantagem militar que acumularam, com
arrogância teorizam seu direito de intervir e ditar leis em todas as
partes do mundo. Na cultura estadunidense tornou-se agora lugar comum a
reivindicação do império romano: este se teria dado nova vida mais além
do Atlântico, já sem as limitaçoes geográficas e temporais do passado,
para consagrar o domínio perene da “única” nação “eleita por Deus”.
Com a vitória triunfal conseguida pelos EUA no transcurso da
guerra fria, verificou-se uma mudança radical do quadro internacional.
Não estamos mais na presença de um contraponto à hegemonia dos EUA ou
de uma aliança com uma força mais ou menos equivalente (como aconteceu
no século passado). Nos nossos dias, ao contrário, uma superpotência
declara sozinha de forma explícita, não tolerar rivais, querer
fortalecer-se mais o predomínio militar ao ponto de torná-lo
insuperável. E, no entanto, o declínio continua e até se acentua nos
planos econômico e político. É para tratar de remediar esta situação
que foi eleito Obama, que, no entanto, não pretende, de forma alguma
renunciar aos objetivos de fundo do imperialismo estadunidense.
Quais são os pontos fortes e os pontos fracos dessa hegemonia?
DL: O elemento de força militar, que eu já assinalei. Mas isso
não é tudo. Os EUA se constituíram como uma superpotência militar
também no plano ideológico. Apoiando-se no monstruoso aparato
multimidia que eles controlam, os governantes de Washington reivindicam
ser os preceptores e os juízes do gênero humano; pretendem decidir de
forma soberana quem são os “terroristas”, quais são os “direitos
humanos” e quais são os países que os respeitam e os países que os
violam. A Casa Branca não pára de proclamar que, diante dos
responsáveis por crimes contra a humanidade, as fronteiras e a
soberania estatal tornaram-se irrelevantes; e agora se trata de
promover a criação de tribunais ad hoc para julgar os dirigentes dos
países derrotados (como no caso da Iugoslávia). Além disso, enquanto na
Europa emerge a aspiração pela criação de um tipo de Tribunal Penal
Internacional, Washington proclama uma advertência: não poderiam estar
submetidos a ele nenhum dirigente estadunidense, nem qualquer soldado
ou empresa contratada pelos norteamericanos. A soberania estatal fica
superada para todos os países, salvo por aqueles chamados a exercer a
soberania mundial.
E, além disso, a credibilidade de Washington claramente
diminuiu depois da revelação dos horrores de Guantanamo, de Abu Graieb
e dos campos de concentração no Afeganistão, comparados por alguns
jornalistas ocidentais até mesmo com Auschwitz. No plano estratégico, a
fraqueza dos EUA emerge de alguns dados elementares: com 5% da
população mundial e 20% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial, eles
representam 50% das despesas militares do planeta! A longo prazo esta
situação é insustentável, sobretudo se se leva em conta que o
percentual estadunidense do PIB mundial tende a diminuir, enquanto
continua a crescer a dívida pública.
Que outra hegemonia pode estar surgindo como alternativa à norteamericana?
DL: A superação da hegemonia estadunidense (e ocidental) não
significa a emergência de uma hegemonia distinta. Estamos assistindo ao
fim de uma época histórica. A partir do descobrimento-conquista da
América, o Ocidente dominou ou aniquilou as outras civilizações. Mas
este impulso expansionista recebeu um ponto final na Revolução de
Outubro primeiro e depois na derrota imposta ao Terceiro Reich que,
retomando e radicalizando a tradição colonial pretendia encontrar na
Europa o seu Far West (os eslavos teriam que substituir o papel dos
peles vermelhas). O processo de descolonização está fazendo reemerger
antigas civilizações: é o caso da China, da Índia, da América Latina. O
Islã, que no Oriente Médio continua a sofrer a opressão de Israel e dos
EUA, não encontra ainda o caminho. E tenta encontrar seu caminho até a
África, onde profundas e ainda abertas estão as feridas produzidas pelo
domínio colonial.
Um dos temas centrais do século XXI será, de um lado, a
liquidação do imperialismo e das ambições imperiais, e, de outro, a
realização de um diálogo entre as diversas civilizações dos diferentes
países. Neste âmbito, a China terá sem dúvida um papel de primeiro
plano, e não apenas pela dimensão do seu território, da sua população e
da sua economia. É um país que, por milênios, ocupou uma posição de
vanguarda na história da civilização humana; a partir da guerra do ópio
e da agressão colonial imperialista, ela sofre um século terrível de
saqueio, empobrecimento e humilhação. Agora vemos o prodigioso
desenvolvimento econômico e tecnológico da China e seu brilhante
retorno na cena mundial.
Qual o papel dos processos de integração latinoamericana no plano internacional?
DL: Historicamente, a ascensão do imperialismo americano
avançou paralelamente não apenas com a submissão, mas também com a
humilhação da América Latina. "Os olhos", de John Sullivan, o teórico
do século XIX do “destino manifesto”, com base no qual os EUA eram
chamados por Deus para dominar o continente inteiro. Os conquistadores
da América Latina cometeram o erro de se misturar com os indígenas e
com os negros; surgiu uma população “com sangue misto e híbrido”, que
fazia parte da própria população de cor chamada a questionar a
supremacia branca e o controle dos governantes de Washington. É a
partir dessa tradição que Theodore Roosevelt, retomando e radicalizando
a doutrina Monroe, teoriza em 1904 um “um poder de polícia
internacional” para cuidar da “sociedade civilizada” no seu conjunto e
dos EUA no que se refere à América Latina.
A revolução cubana de 50 anos atrás foi um primeiro golpe
duro assentado na doutrina Monroe, agora cada vez mais desacreditada.
Mas os países e os povos da América Latina sabem que, para conquistar
uma independência real, não basta romper com o conrtrole militar do
imperialismo, é preciso romper tambem com o controle econômico. Neste
marco se inserem os acordos de integração e cooperação econômica e, em
perspectiva política, que estão desenvolvendo a América Latina em
outras partes do Terceiro Mundo (por exemplo na União Africana).
Qual o papel do marxismo para decifrar o mundo contemporâneo e construir alterantivas ao neoliberalismo e ao capitalismo?
DL: Entre os tantos motivos de inspiração que podemos ter no
marxismo, quero destacar dois. Podemos ler uma tese fundamental: A
profunda hiprocrisia, a intrínseca barbárie da civilização burguesa
estão escancaradas, não apenas nas grandes metrópoles, onde assumem
formas respeitáveis; voltam também seu olhos para as colônias e
pretendem ser a mais antiga democracia do mundo. Praticaram por séculos
a escravidão e a opressão dos negros, além da deportação e do
aniquilamento dos peles vermelhas. Os EUA, que durante a guerra
pretenderam representar a causa da liberdade, se opuseram tenazmente ao
processo de descolonização, impondo ferozes ditaduras militares na
América Latina e em outras partes do mundo. Atualmente ainda ”a
intrínseca barbárie da civilização burguesa” emerge com clareza se
olhamos para Guantanamo, para Abu Ghriab e para os campos de
concentração afegãos, ou ao interminável martírio imposto ao povo
palestino ou aos embargos desastrosos (por exemplo, contra Cuba),
colocados em prática pelos EUA, apesar da oposição e da condenação
expressa pela quase totalidade dos paises nas Nações Unidas.
Naruralmente, não devemos perder de vista a condição das
massas populares nas metrópoles. No seu tempo, nos anos 70 do século
XX, Friedrich August von Hayek, criticando a teorização dos “direitos
sociais e econômicos” contida na Declaração Universal dos Direitos
Humanos adotada na ONU em 1948, esceveu: “Este documento é abertamente
uma tentativa de fundar os direitos da tradição liberal ocidental com a
concepção completamente diversa da revolução marxista russa”. Assim,
pelo explícito reconhecimento do patriarca do neoliberalismo, o Estado
social existente no Ocidente não pode ser pensado sem o impulso e o
desafio proveniente do pensamento de Marx e da revolução de Outubro.
De fato, ao enfraquecimento e diluição daquele impulso e
daquele desafio corresponde no Ocidente a negação dos direitos sociais
e econômicos e o desmantelamento do Estado social. São trágicas as
consequências disso para as massas populares, ainda mais agora com a
crise econômica. “A intrínseca barbárie da civilização burguesa” começa
agora a se mostrar, sem disfarces, também no Ocidente.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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