Cidades
Chuvas e desabamentos trazem de volta fantasma de remoção
A vida não vai ser nada fácil, ou melhor, vai ser mais difícil ainda, para quem mora em favelas no Rio de Janeiro. É que o temporal que desabou sobre a cidade nos primeiros dias de abril deu novo gás aos defensores da remoção dos pobres das áreas valorizadas da cidade. É como se fosse a reprise de um filme que não valesse a pena ser visto de novo. Quatro dias após a enchente, tão comum aos cariocas nesta época do ano que inspirou o maestro Tom Jobim a compor “Águas de Março”, o prefeito Eduardo Paes publicou no Diário Oficial um decreto em que declara 158 áreas do Rio, afetadas por deslizamentos de terra, em situação de emergência. Com a medida, a prefeitura passa a ter o poder de usar a força retirar as famílias destes locais.
A televisão e os jornais criaram o colchão macio em que o discurso das autoridades pudesse se acomodar facilmente e passasse a ser repetido nas ruas do Rio. Os pobres moradores dos locais afetados foram responsabilizados pela tragédia. Levaram a culpa também os governantes que levaram algum tipo de beneficiamento a estas comunidades. O jornal carioca O Globo abre a sua lista com o nome de Leonel Brizola. Para o historiador Guilherme Marques Soninho (IPPUR-UFRJ) culpar as vítimas, quando acontecem tragédias, é sempre fácil. “É o discurso que as classes dominantes gostam. O Globo adora esses discursos. No editorial do Globo de hoje (08.04), eles fazem uma forte defesa das remoções forçadas. O decreto do prefeito Eduardo Paes diz que as famílias que residem em áreas de riscos poderão ser removidas à força. Mas o decreto podia dizer também que vão ser construídas novas e boas casas para essas famílias. Mas isso nem o decreto nem o Globo dizem. Deveria ser considerado crime culpar as vítimas dessas tragédias”, afirma Soninho em entrevista à jornalista Sheila Jacob. O fato de uma das favelas afetadas pelas chuvas ter sido construída sobre um lixão afetou ainda mais o imaginário coletivo a favor das remoções, inflado pela mídia. “Quem vai pagar por isso?’ perguntava indignado o jornal O Globo, no dia 9 de abril, para, sem seguida, afirmar: “Governantes permitiram ocupação e fizeram melhorias em comunidade erguida sobre lixão”. No dia seguinte o jornal foi obrigado a reconhecer que os locais onde funcionam a Prefeitura do Rio de Janeiro e a UFRJ, na Ilha do Fundão, também foram aterros de lixo. Pode ser que este também seja o caso da Fundação Osvaldo Cruz, em Manguinhos. Ou seja, não são só os favelados que moram sobre o lixo. Aliás, o primeiro lixão da cidade funcionou onde hoje fica o Campo de Santana. Depois passou para a Cidade Nova, bairro onde funciona a Prefeitura. Prática autoritária Os cariocas de alguma idade trazem na memória as lembranças de outras enchentes e de remoções. De acordo com o geógrafo Paulo Alentejano, a remoção é “uma das práticas mais autoritárias levadas a cabo na construção do espaço urbano de nossas grandes cidades e que longe de proteger “os pobres” acentuou as nossas mazelas sociais.” Alentejano lembra que as favelas removidas do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas deram lugar a prédios de alto luxo enquanto a população que lá residia foi deslocada para lugares como a Cidade de Deus. Remoção funciona como forma de empurrar a pobreza para longe dos olhos da classe média e dos ricos. No Rio de Janeiro, historicamente tem sido assim. Removido duas vezes O presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo, Altair Guimarães, estava entre os despejados naquela ocasião. Da Cidade de Deus foi novamente removido, e hoje, luta com sua comunidade para permanecer onde está. É que o projeto para os Jogos Olímpicos prevê a remoção dos moradores da Vila Autódromo. A justificativa usada é por estar localizada em uma “área de segurança”. Mas, para Canagé Vilhena, um dos arquitetos envolvidos na elaboração da contra-proposta, essa justificativa é falsa: trata-se apenas de “higiene social”, já que a comunidade fica na Barra da Tijuca, área nobre do Rio de Janeiro. “Para mim está claro que essa é uma questão de especulação imobiliária, e não ‘segurança’, como eles estão justificando”, opina. O caso de Altair pode nos ajudar a pensar sobre a questão da moradia para os pobres. Como pode uma pessoa ser removida três vezes de onde mora? Essas pessoas têm opção? Qual opção de moradia segura pode ter alguém que recebe R$ 300,00 de aluguel social ou que, ao ter casa desapropriada, receber algo em torno de R$ 10 mil? Há casos em que as remoções são feitas para lugares ainda piores do que os de origem. Remover as pessoas sem alternativas sérias de moradias, que, como propõe Alentejano, podem ser os prédios públicos abandonados na zona portuária do Rio de Janeiro, é mudar as vítimas violentamente de lugares, arrancando suas raízes e aguardar até que as águas de março cheguem novamente e leve com elas a vida de gente pobre. De gente que não tem opção. E para quem as águas de março não são promessas de vida. [Colaborou Sheila Jacob]
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