Entrevistas
As tragédias são frutos das opções políticas
Por Carlos Rizzo, Glauco Faria e Renato Rovai Publicado na Revista Fórum
Tendo em vista os últimos acontecimentos, com tragédias como a da Ilha Grande, desabamentos na Serra do Mar, enchentes e alagamentos em várias cidades, como poderíamos relacionar esses casos com a falta de planejamento urbano no Brasil? Raquel Rolnik - O que estamos vivendo hoje nas cidades brasileiras é um indicador da crise do modelo de desenvolvimento urbano no Brasil, do modelo de ocupação do território, e não acho que seja uma crise passageira. Diante de eventos extremos como uma grande quantidade de chuva concentrada numa determinada época isso aparece claramente. E essas chuvas não são absolutamente incomuns. Claro que este ano isso foi mais exacerbado, mas dentro de uma situação que já acontece e daí surgem os efeitos da vulnerabilidade desse modelo, que levou a um duplo colapso: um colapso da mobilidade, não apenas na cidade de São Paulo e na região metropolitana, que talvez sejam a face mais aguda da questão, mas também em muitas outras cidades brasileiras. E, de outro lado, as perdas de vidas humanas e prejuízos econômicos que foram decorrentes dos deslizamentos e das inundações. Essas duas coisas estão relacionadas, o tema da mobilidade, assim como o da fragilidade socioambiental das nossas cidades, está diretamente relacionado a um modelo de desenvolvimento urbano que, ao contrário do que o senso comum considera, representam opções de políticas públicas adotadas pelos governantes brasileiros e pelo poder constituído ao longo da sua história. Esse modelo não decorre de falta de planejamento, mas sim pela presença de um planejamento voltado para determinados objetivos, foram políticas urbanas desenhadas para atingir determinadas metas e interesses. Esse momento que estamos vivendo não é coincidência, é uma situação onde aqueles elementos que já estavam presentes em termos de vulnerabilidade, impossibilidade, insustentabilidade do nosso padrão de desenvolvimento urbano vão ficar cada vez mais presentes . Resumindo, é uma questão estrutural, que veio para ficar e que foi fruto de opções políticas.
É um modelo baseado na estruturação do capitalismo e do poder econômico, mas não é contraditório já que, ao mesmo tempo que privilegia o ganho pelo capital, pode gerar desastres como esses? R.R. - Sim e é nessa contradição que nós estamos apostando, porque está claro que esse modelo não funciona, o que é possível ver por meio da agudização desses processos que atingem a todos, inclusive o próprio capital e as próprias condições de desenvolvimento econômico. Acho que um exemplo mais imediato e mais fácil de relacionar com a questão econômica é a mobilidade. Quer coisa mais importante para o capital do que as condições de circulação de mercadorias e pessoas? Isso aqui é básico e está muito comprometido hoje porque a matriz básica de circulação baseada no transporte sobre pneus, que não é só o carro, é o rodoviário, o conjunto carro, caminhão para carga e ônibus como opção de transporte coletivo. Essa política de estruturação do território, uma opção rodoviarista, começa a acontecer nos anos 30 e se consolida nos anos 50 com a entrada da indústria automobilística no país. A cadeia produtiva da produção do automóvel tornou-se um dos elementos essenciais do modelo de desenvolvimento econômico. Ela representa hoje mais de 20% do PIB total do país, segundo o ministro da Fazenda.
Essa opção é muito complexa. É um capitalismo baseado na produção do automóvel, na matriz energética do petróleo e que tenta hoje se reconverter para a base do etanol e de combustíveis renováveis, mas que também têm enormes impactos. Por isso que, ao invés de dizer “ah, tudo foi interesse do capital” temos que ser um pouco mais precisos, pegando, por exemplo, o tema da mobilidade. Em nome da opção rodoviarista, se estrutura o território como um todo, as estradas e toda a logística do país e se estruturam as cidades. Isso tem um efeito, do ponto de vista do uso e ocupação do solo, fatal, porque a opção rodoviarista se combinou com uma outra, que foi a opção, também política, de histórica exclusão do tema da moradia e do acesso à moradia como pauta fundamental de uma política social ou de um suposto Estado de bem-estar social. E desde a primeira determinação do salário mínimo nesse país – nós estamos falando exatamente desse modelo de transição, nos anos 30 – o custo da moradia foi expulso de qualquer tipo de cálculo do salário, e ele passou a ser absorvido – esse é o verdadeiro modelo brasileiro de política habitacional – pelo próprio trabalhador, por meio da autoconstrução, da auto-produção da sua casa e do seu bairro. Isso combina perfeitamente com a opção rodoviarista porque você tinha cidades estruturadas em torno do trem e do bonde e a habitação operária naquele período, habitação popular, habitação dos pobres é predominantemente de aluguel numa casa completa ou num cômodo de cortiço num padrão de altíssima densidade. O próprio trem ou o bonde define, pela própria natureza do tipo de modal, uma densidade muito grande porque você não pode usar distâncias muito longas do lugar onde está o trilho e as estações.
A cidade de São Paulo, por exemplo, nos anos 30, tinha uma densidade de 100 habitantes por hectare (uma quadra), bastante alta. Era todo mundo ali pertinho, tudo junto das linhas de trem e de bonde. Quando a cidade parte para o circular, e tem toda a história do plano de avenidas do Prestes Maia, que quis se contrapor a um projeto da Light de construir metrô e continuar com o sistema sobre trilhos, é o momento que se decide “vamos sair dos trilhos, vamos para rodovias”. Decide-se isso localmente, em São Paulo e em outras cidades, e o sistema ferroviário foi decaindo de lá pra cá. Nesse momento, a cidade, com o ônibus e o carro, parte para a expansão horizontal ilimitada, com a constituição de loteamentos na periferia. Então se loteia sem nenhuma infraestrutura, e o trabalhador, a população de menor renda, compra o terreno barato e constrói a sua própria casa e é assim que nós erguemos nossas cidades.
Junto com isso, a política urbana, o que fez? Regulou (por meio da legislação, do planejamento urbano) as partes consolidadas da cidade, aptas para urbanizar, reservando-as para mercados de alta renda, fazendo com que essas áreas pudessem ser usadas intensamente para empreendimentos imobiliários de média e alta renda e a produção de moradia da maioria passou a ser a esfera da não regulação, do não planejamento. Então o efeito disso é o que temos hoje, um modelo excludente, que jogou a habitação para a informalidade, para a precariedade, para a autoprodução e aí, essa questão da “regularidade” também se torna uma coisa nebulosa nessa história. O que é irregular, o que é regular? Uma parte dessa produção de moradia é ocupação de terrenos de outros, públicos ou privados, e a pessoa só vai lá, ocupa e constrói. Uma parte é isso, mas outra parte é o loteamento irregular. É uma terra privada que se recorta, mas não deixa área pra nada, não coloca escola, infraestrutura, então o loteamento é irregular, clandestino. Às vezes, olhando na paisagem você não consegue diferenciar o que é favela, o que é loteamento irregular, porque a marca da precariedade urbanística está presente nos dois. E aí entra o terceiro elemento nessa história, que é o político - essa é a história da ambigüidade - como são espaços autoproduzidos, irregulares, não obedeceram às normas, então não se colocar infraestrutura, não se pode investir. Mas lembre-se que a pessoa vota, e aí pode-se aceitar excepcionalmente investir ali com infraestrutura, consolidando um modelo político extremamente perverso na nossa democracia e que está presente até hoje. Mantém-se um padrão excludente, o povo vai lá e auto-constrói, o poder público negocia comunidade a comunidade, loteamento a loteamento, bairro a bairro, as intervenções no sentido de ir integrando o local à cidade. Mas nunca de uma vez, sempre a conta-gotas, de modo que isso renda quatro, cinco, seis eleições, que é mais ou menos o tempo que um bairro demora para se consolidar, porque tudo isso é visto como um favor, uma concessão do governante porque em princípio é ilegal. Então é fantástico esse sistema que mantém concentrado o poder e a renda na cidade e reserva, ao mesmo tempo, uma base popular que vota, que o sustenta.
Cidades com essa complexidade de problemas, estruturadas a partir da lógica do automóvel, com ocupações irregulares, muitas delas em áreas ambientalmente necessárias que fossem preservadas como mananciais, encostas, têm solução? R.R- Vamos por partes, a primeira questão é a seguinte: temos um enorme passivo socioambiental, não é por acaso que a maior parte das áreas mais frágeis do ponto de vista do meio ambiente estão teoricamente protegidas e são vetadas a ocupação e a urbanização. Se não estão vetadas, se define um modelo de ocupação de baixa de densidade, com pouca gente, quase não mexendo. Ora, modelo de baixa densidade com gente não mexendo é modelo de alta renda porque pobre compra um terreno e mora com muitas pessoas junto. É um modelo de lote mínimo de mil, cinco mil metros quadrados, só para o mercado de média e alta renda.
Desde 1965 o Código Florestal já diz que não pode ocupar nada na beira do rio, tem que se preservar uma faixa. Rio, lago, lagoa etc., não pode ocupar encosta com mais de 40% de declividade, não pode ocupar topo de morro, tudo está no Código Florestal de 1965. Quanto aos mananciais, há legislações estaduais e outras locais para proteger recarga de aqüíferos, represa etc. A legislação fez isso desde os anos 60 e mais intensamente nos anos 80 e 90, quando houve um avanço no ambientalismo e nessa questão. Entretanto, a pergunta que não quer calar é: muito bem, não pode ocupar aqui, onde pode ocupar? Onde é que os pobres vão morar, onde a classe média baixa vai morar? Em que padrão, em que terra, em que local? E como vamos garantir que esses locais sejam destinados para a construção de moradia popular? Em todos os países do capitalismo civilizado do planeta - porque tem lugar que já passou por um processo de capitalismo civilizatório, que não é o caso do Brasil - você inclui como pauta fundamental do planejamento uma reserva de solo para moradia popular. É uma reserva de solo como parte do próprio processo de desenvolvimento imobiliário privado, como uma obrigação, do mesmo jeito que aqui, quando você loteia, é obrigado a deixar uma praça, um local para a escola, no mundo civilizado, quando você loteia, obriga-se a deixar uma parte da terra para produção de moradia popular. Porque se a melhor terra, as áreas aptas para urbanizar, não puderem conter a população de menor renda, ela vai para as áreas que são proibidas para o mercado formal ou que são muito restritas e e esses locais, como os mananciais, perdem o interesse para o mercado. O problema é que a gente tem sinais contraditórios na nossa política e os sinais mais fortes nunca são os de preservação. Veja a situação de São Paulo, a área de proteção aos mananciais, na zona Sul. Define-se que ali é uma área de proteção mas cria-se uma zona industrial, das principais da cidade exatamente ali, na zona Sul. E tudo que fica acima da zona industrial está zoneado, legislado para um padrão de produção de classe média alta, verticalizado. Bairro destinado para verticalização é bairro para a classe média. Produção vertical popular não dá, porque é caro. Então não pode pobre, mas tem que ter trabalhador morando ali perto daquelas fábricas, são as oportunidades econômicas que a cidade oferece, são reais. O povo não é bobo, vai morar no lugar onde estão as oportunidades e essas oportunidades se traduzem em emprego, em escola, em hospital, em acesso à cultura; é estar em um lugar cosmopolita, e as pessoas migram porque estão interessadas nessas oportunidades de desenvolvimento humano.
Há esse problema da concentração de oportunidades em poucos pontos do território. Quanto mais distribuídas essas oportunidades, menos tudo vai estar concentrado em um lugar só. Então tem a ver, sim, com uma política de desenvolvimento de oportunidades e acho que isso é uma coisa interessante da ação mais recente no Brasil e no governo Lula, que teve uma política muito forte para tentar descentralizar oportunidades econômicas nos territórios. Isso é muito bom, aumentam as opções – posso ir para Petrolina, posso vir para cá, posso ir para a cidade ao lado ou até ficar na minha cidade, porque também tenho mais oportunidades. Tudo isso é muito importante para não condenar todo mundo a ter que migrar para poucos lugares. Agora, vai me dizer que não cabe a população que está em São Paulo ou no Rio de Janeiro? Claro que cabe. Mas você tem que ter uma política urbana includente. E quando se faz uma política includente, diminui o lucro de determinados setores econômicos que vivem dessa política excludente. O que obviamente não interessa a muito setores... R.R. - Dá pra reverter todo esse passivo de ocupações irregulares? Claro que dá. Porque estamos falando de uma situação, por exemplo, de São Paulo, que é a cidade mais importante da América do Sul, tem mais dinheiro do que em qualquer outra cidade. O problema é onde a gente vai investir, em que direção. Precisa remover toda a população quando você vai trabalhar com esse passivo?
E existem alguns projetos de remoção aqui em São Paulo, como um grandioso nos bairros-cota de Cubatão. R. R. - Precisa intervir nessa situação? Sim. Tem duas maneiras de intervir: urbanizar e consolidar ou remover. Em qualquer circunstância, o direito à moradia tem que ser respeitado. Isso significa que é uma decisão custo-benefício. Às vezes a consolidação é mais cara do que a remoção e o produto da consolidação pode ficar não tão bom. São decisões caso a caso, situação a situação. Mas o que eu acho absolutamente chocante é que se fala em remoção mas onde estão os novos locais urbanizados, adequados, bem localizados, para que essa população que vai ser removida vá se mudar? Essa que é a questão. No caso do Jardim Pantanal, no Jardim Romano, na zona Leste de São Paulo, que ficou em evidência em função das enchentes a ideia é remover essa população e aí tem o projeto do Parque da Várzea do Tietê. Mas onde está o projeto dos novos bairros para onde essa população vai? Cadê? Já foi licitado? Não tem nem projeto, não tem nem projeto... Quer dizer, remove primeiro e “depois” vai resolver. “Depois” é nunca! Então entendo perfeitamente a posição dos moradores do Jardim Romano que não estão querendo sair, porque primeiro é preciso construir o bairro novo, perto, não no quinto dos infernos. As pessoas têm direitos constituídos naquele lugar e o reconhecimento do direito de posse está lá também, está tudo definido e legislado, mas não se aplica. Porque se for levar até as últimas conseqüências, remover essas famílias das várzeas, quero saber se nós vamos remover tudo que está em várzea, o Alto de Pinheiros... Um bairro de classe média alta. R.R. - Essa região está inteira na Várzea do Pinheiros. Eu quero saber se nós vamos interromper a operação urbana Barra Funda, que está removendo favelas para adensar a Barra Funda no último pedaço não ocupado urbano da Várzea do Tietê na cidade de São Paulo. Estamos falando de fazer um parque, tirar a população da várzea, no mesmo momento em que o governo estadual anuncia um alargamento da pista da marginal do Tietê, repetindo o mesmo modelo, fazendo com que a atratividade daquele lugar seja cada vez maior, ou seja, promovendo uma ocupação da várzea.
Mesma coisa o Rodoanel. A Dersa está removendo famílias em Mauá, no Jardim Oratório, famílias que estão ali há 40 anos na luta pela consolidação – trabalhei com aquelas famílias quando era estudante na Faculdade de Arquitetura, é uma área regularizada e estão sendo removidos, e nem tem um plano para onde essas famílias vão. Então como é que é feito? Dão um cheque. Quando questionei, seu presidente falou “como eles não são donos da terra, a gente só tem que pagar a benfeitoria, não tem que pagar desapropriação, não”. Então dá 3 mil, 5 mil, 8 mil, 10 mil, 15 mil reais pra família que está lá há 40 anos, já tem neto nascido lá, já tem a vida inteira constituída lá, tem escola... Ali na zona Leste de São Paulo tem um CEU, que é simplesmente o melhor equipamento educacional da cidade. Mais do que vamos remover ou não, que acho que é uma discussão pertinente que tem que ser feita, caso a caso, é como vamos respeitar o direito à moradia, com remoção ou não. Porque às vezes em projetos você necessita remoções, mas mesmo assim esses direitos têm que ser respeitados e não é o que tem sido feito. Isso é o passivo que nós temos na área habitacional. Se não enfrentarmos a máquina de exclusão territorial, vamos passar o resto da vida enxugando gelo. Nas últimas décadas, com o fortalecimento dos movimentos de moradia popular, a emenda popular da reforma urbana, o Estatuto das Cidades, não foram abertas possibilidades para começar a enfrentar todo esse passivo a que a senhora se refere? R.R. - A resposta é mais complexa que isso porque se fizermos um balanço do que se avançou a partir da emenda popular da reforma urbana, de toda a organização do movimento de reforma urbana, dos movimentos de moradia em relação à questão desse modelo de desenvolvimento, vamos perceber que tem coisas que avançaram e que são bastante importantes. Por exemplo, nas décadas de 60, 70, ninguém falava em urbanizar favela, em integrar, regularizar, só se falava em remoção. A política era remoção e ponto, nada mais. Então acho que a ideia do direito à regularização, de que as ocupações mesmo de posseiros merecem ser consolidadas, é algo que começou a fazer parte das políticas públicas e hoje existem muitas políticas de urbanização de favelas, locais, e o PAC das favelas nacional não teria existido, assim como a regularização fundiária nacional se não fosse toda a pressão desse movimento também. A pauta da necessidade de subsídios para produção de moradia, a ideia de que você tem que ter recurso governamental a fundo perdido para produzir moradia, que está presente hoje na política habitacional no governo federal, também vem dessa luta e conseguiu se colocar na agenda. O que é mais difícil e aquilo que é um dos enormes desafios para que a gente possa realmente ter uma reforma urbana no país? É conseguir implementar o princípio, que está na Constituição, que é fruto dessa pressão dos movimentos populares, de que o solo urbano tem uma função social e que esta é inerente à própria existência da propriedade, e não a sua negação. E implementar os instrumentos que a Constituição e depois o Estatuto das Cidades disponibilizaram para que o planejamento urbano possa incidir sobre o mercado de terras. Instrumentos como, por exemplo, parcelamento compulsório em áreas subutilizadas, IPTU progressivo sobre imóvel vazio, estabelecimento de instrumentos de captação de mais-valias imobiliárias que dirigissem recursos a um fundo público... Esses instrumentos, embora eles tenham entrado nos planos diretores dos municípios, não são implementados e com isso temos um enorme estoque de imóveis vazios e/ou subutilizados em áreas aptas, boas para urbanizar.
E por que esses instrumentos não foram implementados? Porque há uma reação contrária a qualquer restrição a lucro e ganho imobiliário.E aí volto para a questão colocada no início, nós construímos uma maldita equação política já estruturada em torno do modelo da cidade excludente, porque não deixar construir na irregularidade e na ilegalidade e depois transacionar com isso se rende dividendos políticos. E por outro lado, a coalizão que produz a cidade formal e regular, empresarial, é uma coalizão entre Estado e setor privado e é muito importante hoje do ponto de vista da classe política, sobretudo para o financiamento das campanhas. Os maiores e mais importantes financiadores de campanhas políticas nas cidades são empreiteiras de obras públicas, é o setor de produção – empreiteiras de produção de viários, de infraestrutura etc -, e os prestadores de serviços públicos do tipo coleta de lixo, aterro, concessionários do transporte coletivo e os promotores, incorporadores e loteadores.
Quer dizer, financiamento público de campanha seria importante também para o ordenamento das cidades... R. R. - Reforma política. Não se pode resolver o ordenamento da cidade sem reforma política. Há o financiamento de campanha de um lado, que vem desse setor e dessa matriz; de outro lado, o voto popular, que vem da distribuição de benefícios, benesses e favores, já que se constitui um espaço ambíguo em relação ao direito. A combinação dessas duas coisas, a totalidade do sistema partidário brasileiro. É uma equação maldita e ela se soma a um terceiro fator, a necessidade de uma reforma tributária. Também no Brasil não existiu uma reforma do Estado na área de desenvolvimento urbano, como a que ocorreu na área da saúde, da educação. Podem fazer todas as críticas possíveis ao SUS, mas no processo de democratização brasileira foi constituído um sistema de saúde onde o município, o estado e a União têm um papel, onde a sociedade civil tem um controle, onde se busca a universalidade do atendimento, e há um processo de transferência obrigatória, fundo a fundo, per capita, baseado na necessidade. Mesmo com tudo que tem que se aperfeiçoar, é um sistema público pelo menos estruturado, que atravessou gestões. Na área de desenvolvimento urbano, o modelo é exatamente igual ao período autoritário, com financiamento baseado no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, que agora finalmente se colocou subsídio atrelado para fazer com que chegue mais perto de quem não tem. Isso é a grande mudança, mas o dinheiro está concentrado ali num banco, hoje, a Caixa Econômica Federal (passamos do BNH para a Caixa). Os recursos para investimento estão setorializados: saneamento, habitação, transporte, e nada na mão do município, nada.
Os municípios não têm recurso para produzir, para fazer urbanização. Dependem de transferência ou da União, principalmente, ou do Estado. Essas transferências são voluntárias, quer dizer, 100% intermediadas politicamente. Este é o critério. É diferente de transferência fundo a fundo, per capita, com controle. Isso quer dizer o seguinte: não tem raio de planejamento que se sustente, porque se você faz um plano que diz “eu vou investir em tal área, para evitar ocupação de mananciais, vou criar essa área, vou urbanizar, vou pegar dinheiro do subsídio para habitação popular e vou colocar nela”não tem dinheiro. Para fazer isso vai ter que conseguir dinheiro de emenda parlamentar ou de programa do governo federal via edital: “tem um edital para quadras no Ministério do Esporte”, todo mundo corre atrás. Com muita sorte, se o edital for lícito, ninguém fizer nenhuma maracutaia, consigo o dinheiro da quadra, mas o que adianta a quadra? Eu não precisava só da quadra, precisava da quadra, da escola, do saneamento. “Ah, mas não temos edital para escola no momento...” Não, isso não existe. A reforma urbana aconteceria, como foi sinalizado quando o presidente Lula assumiu o governo, a partir da criação do Ministério das Cidades, mas houve problemas. O que aconteceu? R. R. - A ideia ao criar o Ministério era criar também uma política nacional de desenvolvimento urbano com critérios, estratégias, um sistema nacional que fosse capaz de implementar essa política e esse foi todo o impulso original, com a liderança do Olívio Dutra e da Ermínia Maricato. Eu também fui convidada para compor o Ministério, fui secretária de Programas Urbanos, a minha área era justamente política urbana, territorial, fundiária, planejamento urbano. A ideia era trilhar esse caminho, ao invés de ficar meia dúzia de técnicos imaginando isso lá em Brasília sentados, trabalhar através de um processo amplo, de construção dessa política com municípios e estados, com a sociedade civil e com todos os segmentos que compõem o desenvolvimento urbano, tanto os empreiteiros quanto os incorporadores, os engenheiros, os arquitetos e os técnicos, os movimentos por moradia. Foi a partir daí que, desde o primeiro ano, se lançou o processo de conferências para se discutir e se elaborar políticas, elegendo um conselho para pensar isso e trabalhar.
Entretanto, essa trajetória foi interrompida no momento em que Olívio Dutra foi substituído e a secretária executiva Ermínia Maricato pediu demissão e saiu. Entrou um ministro [Márcio Fortes] indicado pela base aliada, na época pelo Severino Cavalcanti (PP). Isso se deu depois da eleição da Câmara, quando o Severino se tornou presidente, no auge da crise do mensalão, quando claramente ele ameaçava o presidente com a possibilidade de aceitar processos de impeachment. Ali, ou o presidente Lula constituía uma base aliada dentro do Congresso ou ficava seriamente ameaçado porque a campanha do mensalão e tudo aquilo que estava gerando a partir dali estava sendo amplamente utilizado contra o governo Lula para derrubá-lo. Essa opção – e não sei se foi opção ou uma falta de opção, não tenho a menor condição de julgar do ponto de vista político - foi um dos preços que tivemos que pagar para que o governo pudesse continuar, mas infelizmente esse preço significou a interrupção de uma trajetória no Ministério das Cidades e a consolidação de uma prática do ministério ser uma espécie de gestor de distribuição de recursos, inclusive usando todo o seu potencial político.
Entretanto, continuam existindo as conferências, os conselhos, mas descarnados de qualquer poder ou capacidade de influência. O processo decisório de construção da política não passa por ali, não passa pelas conferências, o conselho apesar disso trabalhou, lutou para intervir, conseguiu aprovar o sistema nacional de habitação de interesse social. Daí sai um programa como o Minha casa, minha vida, não tem nada a ver com o sistema nacional de habitação de interesse social. Nada. É um recurso para produção de moradia num modelo totalmente fora, embora estivesse começando a ser implantado uma política habitacional de longo prazo para a habitação. A política estava pronta e ela não foi sequer levada em consideração no momento em que se faz o Minha casa, minha vida, que tem uma outra origem: medida antirecessão, contra crise econômica, que vem do Ministério da Fazenda como uma ideia de dinamização da economia, do setor privado, e não da trajetória que vinha sendo construída. Tem uma frase que eu adoro, de uma colega minha, professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Alagoas, a Regina Bentes. Ela diz o seguinte: você está ali no interior de Alagoas, chega numa venda e pergunta “tem caneta Bic?” e a menina responde “tem... mas tá faltando...”. O que vemos no Ministério das Cidades é o “tem... mas tá faltando...”. Existe o Ministério, o Estatuto, as conferências, os conselhos, o sistema de Habitação Social? Tem tudo, mas não tem. Porque a verdadeira grana, o poder, não passa por ali, passa por outro caminho. Claro que não dá pra dizer que a trajetória da reforma urbana acabou no dia que o Ministério das Cidades mudou de comando. Não é verdade, ela continua nas lutas locais, continua internamente ali, agora o mainstream da política urbana do governo Lula não foi a reforma urbana. Isso quer dizer que o governo não incorporou coisas importantes da pauta da agenda da reforma urbana? Incorporou sim. Isso quer dizer que o governo Lula foi um governo medíocre em relação a política urbana? Nunca. Não havia investimento em urbanização e saneamento ambiental há anos e foi feito um investimento grande, importante, para urbanizar favelas, não havia nada disso... Enfim, acho que tem avanços ali, agora, tem limites. Outros ministérios avançaram muito mais. Acho que isso faz parte da característica do próprio governo Lula. E esses limites podem ser estendidos em um outro futuro governo, por exemplo, ou seria necessária essa reforma política? R. R. - Não estou vendo possibilidades disso hoje em nenhuma das candidaturas colocadas sobre a mesa, na candidatura Serra, Dilma ou Marina, um compromisso visceral com a reforma política e com uma reforma tributária que permita aos municípios serem mais autônomos do ponto de vista financeiro. Talvez ao longo do processo da campanha e da crise urbana isso possa aparecer. Em relação à questão do modelo de circulação e transporte, certamente o tema será pautado pela candidatura da Marina; o Serra, como governador já teve oportunidade de mostrar na prática uma opção radical por um novo modelo e, embora o governo esteja investindo no transporte sobre trilhos, aumentando metrô, acelerando a modernização da CPTM e a integração desse sistema, dá sinais contraditórios: vai uma no cravo outra na ferradura. Faz uma obra como o Rodoanel, que é o contrário disso, a ampliação da marginal do Tietê, continua colocando mais dinheiro na opção rodoviarista. Com ele na presidência duvido que a mudança modal fundamental possa acontecer, que é um dos elementos importantes da política urbana.
Mas, falo de novo: isso, diante da crise que nós estamos vivendo, pode mudar durante a campanha - dependendo do quanto o tema entrar na pauta e na agenda - e isso a candidatura da Marina poderá fazer - poderá ser incorporado por exemplo pela Dilma. Reforma Urbana? Quem sabe num futuro governo, talvez eventualmente um novo governo Lula depois que passar o próximo, poderia avançar no sentido de um compromisso mais intenso nesta direção... Mas para tanto a gente tem que ter um movimento da sociedade muito claro nessa direção. E isto depende da posição das novas gerações que vem por aí. Falando em Bogotá, há elementos que podem ser reproduzidos nas cidades daqui? R. R. - Não gosto desse negócio de “Miss Urbanismo”, antes era Curitiba, agora é Bogotá, Portland... Acho que começar a falar de exemplos e modelos é desconhecer a complexidade que são as cidades. As cidades são legais justamente porque elas são super complexas e porque cada uma é uma, o tecido econômico, político, sociocultural, territorial de cada uma é totalmente distinto, a história é distinta, a política é distinta E quando se conta o milagre não se conta o santo do milagre, né? É essa a questão. O que não quer dizer que não existam políticas interessantes do ponto de vista técnico que podem e devem ser replicadas, experimentadas, mas nenhuma cidade é bem sucedida por completo. E não se conta, por exemplo, em Bogotá, que fez uma intervenção urbanística muito importante dando prioridade para o transporte coletivo e para o pedestre, algo incrível: quando visitei a cidade, vi que a urbanização da periferia começa primeiro fazendo a calçada com árvore, arborizada, iluminada, linda, ciclovia na calçada, equipamentos públicos, escola, biblioteca, etc. e só depois pavimentava a via. Pavimentação é 50% do custo total de uma urbanização. Ninguém fala, né? As coisas que realmente a gente precisa, calçada, escola, praça, árvore, custam menos que a pavimentação. Quem precisa de pavimentação é o carro, a maior parte do povo não precisa.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Revista Fórum 82. Nas bancas.
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