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Instituto Millenium: A Conferência de Comunicação particular da direita
Por Gilberto Maringoni
O Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) é totalitário", "o stalinismo
predomina no PT", "temos de ir para a ofensiva", "Vamos acabar com essa história
de ouvir o outro lado na imprensa", "governo cínico, cínico, cínico!",
"democracia não é só eleição". Frases assim, proclamadas com ênfase quase
raivosa, deram o tom no Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, realizado na
segunda (01/03), em São Paulo.
O evento, promovido pelo Instituto Millenium, foi uma espécie de Conferência
Nacional de Comunicação (Confecom) particular da direita brasileira, facção
grande mídia. Revezaram-se nos microfones convidados internacionais, donos de
conglomerados e seus funcionários de confiança. Fala-se aqui da Editora Abril,
da Rede Globo, da Rede Brasil Sul (RBS), da Folha de S. Paulo, do Estado de S.
Paulo e agregados.
Como se sabe, tais setores resolveram boicotar a I Confecom, um processo
democrático ocorrido em todos os estados da Federação, que culminou em uma etapa
nacional, realizada em dezembro último. Presentes nesta, cerca de 1300
delegados, entre empresários, movimentos sociais e governo. O total de pessoas
envolvidas em suas fases regionais envolveu cerca de 12 mil participantes.
Terceirizando a bílis
Pois o Instituto Millenium fez seu convescote para cerca de 180
participantes. Eram empresários, jornalistas e interessados, que desembolsaram
R$ 500 cada um, por um dia de atividades. Na mira dos palestrantes, os governos
de centro esquerda da América Latina, os movimentos sociais, o governo Lula e o
PNDH. As intervenções mais moderadas foram as de Roberto Civita (Abril) e de
Otávio Frias Filho (Folha), que buscaram, de certa forma, situar seus interesses
na cena política.
Externam o que se espera de proprietários de monopólios. Defendem a livre
iniciativa de "investidas antidemocráticas como o controle social da mídia" e
"menos legislação para o setor", no dizer de Civita. Roberto Irineu Marinho
(Globo) foi ainda mais discreto. Ficou na platéia e fez uma única pergunta por
escrito ao longo de todo o dia. Mantêm uma certa linha. Os três resolveram
terceirizar a artilharia pesada para seus empregados, que fizeram uma verdadeira
competição para ver quem seria o Carlos Lacerda (1914-1977) da Nova Era.
O ex-governador da Guanabara, como se sabe, se notabilizou entre o final dos
anos 1950 e início da década seguinte como o mais notável agitador, na TV e no
rádio, em favor do golpe de 1964. Dono de uma retórica incendiária, Lacerda
intimidava adversários e aglutinava seguidores para a derrubada do presidente
João Goulart.
Nessa toada, os conferencistas tiveram a inusitada ajuda do Ministro das
Comunicações Helio Costa e do deputado Antonio Palocci (PT), como se verá
adiante.
Visão particular da História
A primeira mesa trouxe três convidados externos, o argentino Adrian Ventura
(La Nación), o âncora da televisão equatoriana Carlos Vera (Ecuavisa) e o
venezuelano Marcel Granier (dono da RCTV, cuja concessão não foi renovada em
2007).
Arrogante e inflamado, Vera afirmou que em seu país "não existe liberdade de
expressão". Reclamou que seu canal de TV não recebe mais publicidade estatal e
acusou o presidente Rafael Correa – "um ditador" - de ter sido eleito "por
prostitutas".
Já Marcel Granier foi saudado como uma espécie de símbolo da luta pela
liberdade de imprensa pelo apresentador Marcelo Rech, diretor da RBS. O
proprietário da rede venezuelana denuncia "o autoritarismo do governo Hugo
Chávez". Desfia o que diz serem provocações, intimidações e a certa altura, de
passagem, fala da "renúncia" de Chávez. Em nenhum momento menciona o golpe de
Estado de 2002 e o papel da grande mídia de seu país. Parece que toda a tensão
em seu país nasceu por geração espontânea. Uma visão particular da História, sem
dúvida.
Granier e seus colegas de mesa não deixam de deplorar a existência de
aliados dos tais governos ditatoriais entre os empresários da mídia. Aliados,
não. "Cúmplices", sublinha o mediador Rech, com anuência dos convidados.
De costas para o governo
Logo após a mesa inicial, chega o convidado mais aguardado da manhã chuvosa,
o ministro das Comunicações Hélio Costa. Com seu inimitável penteado, o membro
do governo falou o que a "seleta platéia", conforme sua expressão, queria ouvir.
Buscou esvaziar a Confecom de qualquer significado maior. "Através de três
ministros, Luís Dulci, Franklin Martins e eu, o governo foi unânime em decidir
que em hipótese alguma se aceitará algum tipo de controle social da mídia". E
enfatizou: "Isso não foi, não é e não será discutido", enfatiza para gáudio da
maioria dos presentes. Genial. O membro do primeiro escalão confraterniza-se com
os que deploram seu governo como marcado por tendências discricionárias.
Libelu e Rolando Lero
A terceira mesa, intitulada "Ameaças à democracia no Brasil" foi a mais
trepidante de todas. Contou com Demétrio Magnoli, o Gustavo Corção da Libelu,
Denis Rosenfeld, o Rolando Lero na filosofia gaúcha, e Amauri de Souza,
sociólogo. Na mediação, Tonico Ferreira (Globo).
Ferreira é mais um daqueles que um dia foram de esquerda e transitaram
alegremente para a outra ponta do espectro político sem culpas. Chefe de redação
do semanário Movimento, no final dos anos 1970, Ferreira, de saída, denuncia o
caráter autoritário da lei eleitoral. "É censura", diz ele, antes de passar a
palavra a Magnoli.
Este não perde tempo. Logo faz um apanhado da história do PT e dispara: "A
relação do partido com a democracia é ambígua. Juntamente com o PSOL, apoiou o
fechamento da RCTV". Acusa a agremiação de Lula de fazer uma volta atrás em seu
ideário democrático. "Retomaram a idéia autoritária de partido dirigente e de
democracia burguesa", sentencia. E logo completa: "Este movimento, de
restauração stalinista, é reforçado pela emergência do chavismo e do apoio a
Cuba". Na platéia uma senhora murmura: "Que vergonha, nosso governo apoiar
isso".
O risco, para Magnoli, é um possível governo Dilma, supostamente mais
subordinado ao PT do que a gestão Lula. O fim das ameaças, para ele, só
acontecerá "com a vitória da oposição". Bingo! E culmina: "Não somos Venezuela e
Cuba! Temos de falar que nós somos diferentes!". Aplausos entusiasmados.
Rosenfeld vai pela mesma toada, mas busca elaborar uma "pensata" sobre o
"corpo e o espírito do capitalismo". Segundo ele, o corpo vai muito bem. "Os
grupos econômicos ganharam muito dinheiro nesses oito anos". O problema é o
espírito, "os bens intangíveis", revela o filósofo. A base material é garantida
pelo governo, nas palavras de Rosenfeld, "as metas de inflação, a autonomia
operacional do Banco Central e o superávit fiscal" mostrariam um rumo seguro.
Mas o espírito está sendo minado, alerta. Esse ectoplasma é "a liberdade de
expressão" que estaria ameaçada. E enumera os problemas, numa tediosa repetição:
"O PNDH, o MST, a questão dos quilombolas" etc. etc. etc.
A sutileza do sr. Basile
O seminário foi sumamente repetitivo, diga-se de passagem. No período da
tarde, os previsíveis Arnaldo Jabor, Carlos Alberto di Franco (Opus Dei) e
Sidnei Basile (diretor da Abril) tentaram dar novas roupagens ao samba de uma
nota só do evento. Basile, sob o olhar atento de Roberto Civita, seu patrão,
defende um regime de auto-regulação para a imprensa. "Algo semelhante ao Conar"
(Conselho de Auto-regulamentação Publicitária), formado pelas próprias agências,
ao invés de uma lei para o setor.
A proposta é ensandecida. Se aplicada a toda a sociedade, com cada um
supervisionando seu próprio setor, o mundo seria uma graça. Um exemplo. Não
haveria mais leis de trânsito, sinais, placas, mão e contramão. Os motoristas se
reuniriam e fariam um código de auto-regulação. Se os pedestres reclamarem,
basta acusá-los de tentar bloquear um dos mais sagrados direitos, o de ir e vir
dos motorizados. Todos se auto-regulariam e chegaríamos ao reino encantado de
Basile.
No meio de seu delírio anarquista, o executivo, sempre observado pelo
patrão, acusou a convocação da Confecom por parte do presidente da República
como um ato "cínico e hipócrita". Adendou: "Um conto do vigário". Basile é de
uma sutileza a toda prova.
Jabor, que aparentemente não preparou intervenção alguma, repetiu jaborices
pelos cotovelos. Populismo autoritário, jacobinos, bolcheviques e quejandos
formam o mundo a ser vencido. Homem experiente que é, contou mais uma vez já ter
sido comunista. E disparou diatribes a granel. Impossível não lembrar de uma
impagável frase do escritor paulistano Marcos Rey (1925-1999). Este dizia não
gostar de dois tipos de gente, ex-comunistas e ex-fumantes, "porque ambos são
metidos a dar conselhos".
Reinaldos Azevedos às mancheias
A quarta mesa – "Liberdade de expressão e Estado democrático de direito" –
contou com a participação de três luminares: Reinaldo Azevedo (Veja), Marcelo
Madureira (Casseta) e o Dr. Roberto Romano (Unicamp), os dois últimos tentando
ver quem era mais Reinaldo Azevedo que o próprio Reinaldo Azevedo.
O citado é um fenômeno da Natureza. Um criador de personagens. É uma espécie
de Walt Disney de si próprio. Disney inventou o Mickey, o Pato Donald, o Pateta
e uma plêiade de figuras inesquecíveis. Reinaldo Azevedo criou Reinaldo Azevedo.
"Sou de direita!", avisa de saída. "A imprensa tem que acabar com o isentismo e
o outroladismo, essa história de dar o mesmo espaço a todos".
Madureira foi mais um a alardear sua condição de ex-comunista. Fez
piadinhas, embora não se saiba se seu cachê incluía chistes e gags. Atacou
tendências autoritárias e "recadinhos" oficiais. "O governo pressiona os
editores com os anúncios da Petrobras e do Banco do Brasil. Isso é censura!" Com
a presença do patrão na platéia, logo sublinhou: "A Globo não nos censura".
Mas o humorista da tarde foi o Dr. Roberto Romano. Este revelou ao mundo uma
nova teoria, que vai pegar. É sobre a militância. Atenção: "O partido de
militantes causa a corrosão do caráter". Guardem essa! Depois de ‘A corrosão do
caráter’, de Richard Sennet, que fala dos vínculos trabalhistas e sociais tênues
e sua influência no comportamento humano, um livro sério, o Dr. Romano vem com
sua versão pândega. E explica: "No partido de militância não tem mais
jornalista, médico e nem nada. Tem o militante que se reporta ao chefe". Isso,
para as muitas luzes do Dr. Romano, corrói o caráter. Olha lá, Brasil! A partir
de agora, só se falará em outra coisa!
As pesquisas científicas do Dr. Romano o levaram a constatar, além de tudo,
que "90% das ONGs são totalitárias". Como o mediador William Waack prometeu
publicar a fala original do Dr. Romano no site do Instituto Millenium, o mundo
aguarda ansioso as fontes empíricas de tão bombástica revelação.
No fim de tudo, na última palestra, o deputado Antonio Pallocci veio
confraternizar com aqueles que malharam sem dó seu partido e o governo que
integrou até há poucos anos. Para agradar, também criticou o PNDH, no que foi
cumprimentado ao final.
Tendências não democráticas
O Fórum do Instituto Millenium, apesar de seu tom folclórico, não é
engraçado. Embora seja um direito democrático a organização de toda e qualquer
facção política, é forçoso reconhecer que estas nada têm de democráticas ou
plurais. Buscam se articular justamente para evitar reformas democratizantes no
país e no setor de comunicação.
Um ponto positivo é dado pela seguinte constatação: os monopólios de mídia
se desgastaram com o boicote à Confecom. O tema da democratização da comunicação
entrou na agenda nacional com força. O seminário é uma gritaria da direita. Sem
problemas. O duro é buscarem afirmar seus interesses contra a vontade e as
necessidades da maioria da população.
Agradecimento
Este obscuro jornalista agradece sinceramente ao Dr. Roberto Romano pela
menção ao texto "Instituto Millenium: toda a democracia que o dinheiro pode
comprar!" (http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4546/),
feita no calor de suas vibrantes intervenções. Apesar de ele ter recomendado às
pessoas taparem o nariz para lê-lo, só posso ficar envaidecido com tão ilustre
recomendação.
Gilberto Maringoni é jornalista.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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