Entrevistas
Entrevista com a jornalista Sandra Mayrink Veiga
Por Marília Gonçalves “Tenho orgulho de dizer a minha idade que é de 66 anos, até porque me deu um trabalhão conseguir chegar até aqui”. Hoje, o Boletim do Programa de Redução da Violência Letal traz entrevista com a jornalista Sandra Mayrink Veiga. Ela foi dirigente regional da Ação Popular Marxista Leninista (APML), coordenadora de comunicação da FASE até 2006 e, hoje, trabalha com projetos de extensão universitária na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sandra estava, aos 20 anos, filmando as minas de carvão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em Criciúma (RJ) quando foi presa pelos militares. Aqui, a jornalista comenta o tratamento dado pelo terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) a essa fase ainda obscura da história do país. 1. Você sofreu ou conhece alguém que tenha sofrido violações dos direitos humanos no período da ditadura militar no Brasil? Sim, conheço muitas pessoas que sofreram violação de seus direitos, que foram presas, torturadas e assassinadas. Eu também fui presa política. 2. A diretriz 23 do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos sugere a criação de uma Comissão Nacional de Verdade, “composta de forma plural e suprapartidária”, que seria responsável por requisitar documentos públicos e requerer ao Judiciário o acesso a documentos privados que dizem respeito a esse período da história do país, entre outras coisas. Qual a importância do acesso a esses documentos? Primeiro penso que seja importante reafirmar que o PNDH 3 é resultado de um processo democrático de ampla discussão entre Estado e sociedade civil. Durante o ano de 2008 foram realizadas dezenas de conferências regionais, 27 conferências estaduais e, em dezembro, a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos em Brasília, envolvendo quase 15 mil participantes, representantes de inúmeras instituições e movimentos sociais. Gostaria ainda de ressaltar que no governo do Lula foram feitas ao todo 60 Conferências com diferentes temas, sendo que, destas, 11 foram sobre os Direitos Humanos. O Brasil nunca teve uma tradição de discussão sobre os Direitos Humanos. Basta olharmos as plataformas de lutas dos movimentos sociais e dos sindicatos e veremos que não há menção aos Direitos Humanos. Foi a partir do processo Constituinte que se começou a debater o tema. Depois, no governo do Fernando Henrique Cardoso, este tema começou a tomar corpo quando em 1993, na Conferência Mundial da ONU em Viena, saiu uma recomendação para que os países criassem uma secretaria para cuidar dos direitos humanos através de um programa próprio. E assim foi criada a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) no Brasil, que elaborou o I e o II PNDH. O Brasil deu importantes passos nos governos de FHC e Lula com respeito aos Direitos Humanos. O grande embate que houve agora no PNDH 3 começou em torno da Comissão da Verdade e do Direito à Memória e à Verdade, mesmo que em diversos outros pontos tenha havido também resistência dos setores mais conservadores (direito ao aborto; casamento entre pessoas do mesmo sexo; proposta de marco legal e criação de um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios dos Direitos Humanos; reconhecimento de que o modelo do agronegócio é um sistema potencialmente responsável por violações de direitos humanos etc.). Foi assombrosa, no meu modo de entender e dentro dos meus princípios democráticos, a reação que se espalhou pelo país, sobretudo nos meios de comunicação. É impressionante como este país tem uma “elite” retrógrada e antidemocrática. Elite aqui está no sentido sociológico da palavra – minoria prestigiada e dominante no grupo, constituída de indivíduos mais aptos e/ou mais poderosos. Refiro-me aos setores que têm voz e que historicamente violaram (e violam) os direitos humanos das mulheres, dos jovens, dos negros, das populações de favelas, das populações tradicionais, dos pequenos agricultores da agricultura familiar, dos camponeses, dos indígenas, dos trabalhadores, dos quilombolas, das crianças e adolescentes, dos deficientes, dos idosos, dos mortos e desaparecidos políticos. Você sabia que vai haver uma turma que se formará na Academia das Agulhas Negras e cujo nome será Emílio Garrastazu Médici? Eu não entendo como jovens podem homenagear a um ditador. Como podem homenagear alguém que praticou crime de lesa-pátria? Mas agora respondendo diretamente à sua pergunta. Sem desconhecer a Lei 6.683/79 (Lei da Anistia) e nem passar por cima dela, o PNDH 3 reconhece a importância da memória histórica como fundamental para a construção da identidade social e cultural de um povo. Assim, prevê a criação de um grupo de trabalho interministerial para elaborar um projeto de lei com o objetivo de instituir a Comissão Nacional da Verdade no eixo “direito à memória e à verdade”. Na comissão de Anistia, a cada vez que a anistia é concedida a um requerente, um membro da Comissão se levanta e lhe pede desculpas em nome do Estado porque o que houve foi um terrorismo de Estado praticado pelos militares e seus algozes. Na minha opinião, cada brecha de barbárie que fica aberta e impune abre a possibilidade de seu retorno. Não tenho nenhum sentimento de vingança, e não acho que as outras pessoas que foram presas e torturadas tenham, mas temos sim o sentimento de que é imprescindível que se faça justiça e que esses torturadores e seus mandantes sejam julgados, e se possível peçam perdão aos que tiveram seus direitos violados e seus corpos e mentes danificados, e peçam perdão também ao Brasil por esta vergonha. Todos os brasileiros e brasileiras devem conhecer a história real do país e não somente a história dos vencedores, sempre contada e recontada como única, fazendo com que tudo fique de cabeça para baixo e tenhamos, segundo dizia Nelson Rodrigues essa “síndrome de vira-lata” em vez do orgulho e da grandeza da resistência, da preservação da diversidade e do pluralismo que há 500 anos constrói este país. 3. Existe alguma desvantagem em trazer à tona essa história? Nenhuma desvantagem, ao contrário, trará a reconciliação do país com sua história e a democracia, isto é, um regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição equitativa do poder, que demanda um exercício a ser praticado todos os dias pelas instituições, pelo poder público em todas as suas instâncias, mas, sobretudo, por nós, cidadãos e cidadãs brasileiros. 4. Ainda na diretriz 23, aparece como atribuição da Comissão de Verdade “apresentar recomendações para promover a efetiva reconciliação nacional”. A Lei da Anistia não promoveu a reconciliação nacional? Por que? Claro que a Lei da Anistia não poderia ter promovido a reconciliação nacional porque justamente não levou ao banco dos réus os que violaram todos os direitos humanos. Essa ferida tem que ser curada para que haja a reconciliação nacional. Quem torturou e matou tem que prestar contas, a verdade tem que aparecer, assim como os ossos dos desaparecidos. Você sabia que, em 1989, quando eu e meu companheiro Isaque Fonseca publicamos o livro Volta Redonda Entre o Aço e as Armas, eu e meus filhos fomos ameaçados por telefone durante meses? Quem você acha que estava ligando? Oscar Niemeyer fez de graça o projeto de um memorial em homenagem aos três operários assassinados pelo Exército. O memorial foi inaugurado. Às 03h15min da manhã uma bomba da IMBEL (de uso exclusivo das Forças Armadas) de grande potência destruiu o memorial. É disso que eu falo de deixar brechas abertas pela barbárie. Aliás, esse livro foi reeditado em novembro de 2008, por ocasião dos 20 anos da greve, pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos com apoio do PNUD exatamente na coleção Memória Viva. 5. A diretriz 24 trata da “Preservação da memória histórica e a construção pública da verdade”. Está entre suas ações programáticas a “criação de centros de memória sobre a repressão política”, “criação de museus, memoriais e centros de documentação sobre a resistência à ditadura”, entre outras. Essas medidas dizem respeito à área dos Direitos Humanos? Por que? Com certeza! É necessário que relembremos os momentos de barbárie, eles não podem ficar esquecidos e para isso é imprescindível que haja alguém responsável por esta memória. Devemos estar sempre vigilantes, atentos aos seus primeiros sinais de retorno para tomarmos as providências necessárias para barrá-la. Os judeus depois do holocausto entenderam isso muito bem. 6. Qual a sua avaliação sobre o tratamento dado ao período pelo PNDH 3? Este é o plano mais avançado que já tivemos, precisamos nos mobilizar em sua defesa com todas as nossas forças. O PNDH 3 está em plena consonância com todos os documentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro. Eu fiquei contente de ver que o Congresso do PT aprovou por unanimidade o PNDH 3 na sua íntegra. Concordo com a nota da FASE em apoio ao PNDH 3 quando diz: “No momento em que toda a sociedade brasileira deveria empreender esforços para a implementação dos direitos humanos dispostos no PNDH 3, tais esforços têm que ser direcionados na resistência contra a modificação do plano, que significa o consenso da sociedade civil brasileira no que diz respeito aos direitos humanos. Tal fato deixa claro que ainda estamos longe de um Estado Democrático de direito, em que os direitos humanos sejam prioridade”.
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