Entrevistas
Daniel Bensaïd: um lutador irredutível
Por Mariana Santos Brasil de Fato
O filósofo e militante comunista Daniel Bensaïd morreu em
janeiro aos 64 anos, em Paris, lutando, como em maio de 1968, pela
união das esquerdas contra o capitalismo, com a fundação do Novo
Partido Anticapitalista (NPA). Professor de Filosofia da Universidade
de Paris VIII, foi fundador da Juventude Comunista Revolucionária, em
1966, e da Liga Comunista Revolucionária, em 1969, e dirigente da
Quarta Internacional.
Nesta entrevista, concedida durante o
lançamento do livro Os irredutíveis (Boitempo), em São Paulo (SP), em
2008, Bensaïd discute a força simbólica das lutas operárias e
estudantis de 1968 na França, as conseqüências da aliança da
socialdemocracia com o Estado neoliberal, a crise capitalista e a união
das esquerdas anticapitalistas. Um dos fundadores do Fórum Social
Mundial, Bensaïd sugeria uma nova palavra de ordem sob a pressão da
crise capitalista: “outro mundo é necessário e urgente”.
Brasil de Fato – Como o senhor avalia as manifestações de maio de 68 na França? Daniel
Bensaïd – Acho que muitas vezes o maio de 1968 é lembrado insistindo
muito no aspecto estudantil. Então nós que fomos estudantes, somos
conhecidos, mas isso tende a esconder o que faz de 68 uma data
simbólica. Eu acho que a característica foi a greve geral. Em proporção
à população, é a mais importante pelo menos da história da França.
Quase 10 milhões de trabalhadores em greve durante três semanas. Por
outro lado, também porque participa de uma série de acontecimentos
internacionais. Não se pode pensar em 68 francês sem relacioná-lo com a
ofensiva de fevereiro no Vietnã, a Primavera de Praga, o movimento dos
estudantes no México e no Paquistão. É um conjunto de muita carga
simbólica. Isso eu acho que tem certa importância, porque a greve – não
digo que poderia ser feita uma revolução socialista, mas derrubar o
governo como na greve geral – abria um cenário, não só para a França,
mas para Europa, totalmente distinto durante os anos 70.
Quem são os irredutíveis, hoje? Os
que lutam. São muitos, das mobilizações da juventude, que conquistaram,
dois anos atrás [em 2006], uma das poucas vitórias sociais dos 15
últimos anos. A grande mobilização da juventude conseguiu a retirada da
lei chamada de contrato de primeiro emprego, que precarizava o trabalho
da juventude, mas tem que ver também com um contrato parecido para os
desempregados. Tem começado a aparecer coletivos de jovens
desempregados que estão ocupando os supermercados para repartir comida,
não no sentido Robin Hood, mas para denunciar a alta dos preços. São os
trabalhadores que se mobilizam contra a privatização, o fechamento de
fábricas. Tem muitas atividades sociais com poucas ou muito
excepcionais vitórias. A mobilização sobre pensões, seguro social, ou
educação, tanto em 1995, com as grandes greves, como em 2003, foram
derrotados, e também a última, a mobilização juvenil do ano passado
[2007] sobre a reforma da universidade. Tudo isso se perdeu, mas há
possibilidade de se recompor um espaço não só de resistência social,
mas também de radicalidade política. Isso em formas distintas significa
quase em todos os países da Europa, uma remobilização social sem
vitórias e o início de recomposição política até com certo impacto
eleitoral. Isso tem a ver também com a crise, a quase desaparição dos
partidos comunistas, e um debilitamento da social-democracia.
O senhor acredita que os valores neoliberais foram desmistificados com essa crise econômica? Não
quero generalizar, mas na França agora quase ninguém se diz liberal.
Liberal parece sinônimo de capitalismo mau, mafioso, desonesto, imoral.
Então, todo mundo, o governo primeiro, fala que é necessário moralizar
o capitalismo, reinventar, refundar o capitalismo. Então, isso é
importante no sentido simbólico. Todo discurso nos 25, quase 30 últimos
anos de legitimar o capitalismo, de fetichismo de mercado, tudo isso de
fato eu acho que feriu de morte o deus mercado. Agora, não significa
que automaticamente tenha alternativa a isso e tampouco se sabe que
tipo de novo discurso se pode inventar do lado do governo ou da
socialdemocracia. A crise é muito recente, é só o início, mas já abalou
a socialdemocracia. Então, tem mudado o discurso, alguns que pedem a
nacionalização dos bancos. O próprio governo tem desistido agora da
privatização do Correio que estava prevista para este ano [2008]. Está
claro que é indecente, porque o motivo, o pretexto para privatizar era
para atrair 3 bilhões de euros da iniciativa privada, enquanto o
governo acaba de encontrar 40 bilhões de euros para salvar os bancos.
Então, isso também está deslegitimado no momento. Vai ser muito
difícil, por exemplo, seguir com a reforma do seguro social com a
falência dos Fundos de Pensão nos Estados Unidos. Então não sei que
discurso vão inventar para tentar encontrar uma nova legitimidade.
Ademais, um problema que tem a Europa é que qualquer discurso, não digo
revolucionário, mas de reforma um tanto sério, imediatamente se choca
com o conjunto dos tratados da Constituição européia. Então, não vai
ser uma crise econômica, mas também uma crise política da Constituição
européia. Com que saída, ninguém sabe, depende das lutas e a crise vai
ter efeitos contraditórios, de um lado intentos de dar um passo adiante
na construção política da Europa. Por exemplo, criar o que [o
presidente francês Nicolas] Sarkozy reivindica: um fundo soberano, uma
reserva comum financeira européia. Mas, por outro lado, a crise provoca
tendências centrífugas, porque cada país tenta salvar seus bancos, como
a Alemanha, a Irlanda. Então, o que vai prevalecer das tentativas vai
depender muito das lutas sociais.
Como o senhor avalia hoje o
contexto internacional, a crise na Europa, o crescimento do fascismo e
a articulação dos partidos de esquerda? Eu acho que a
esquerda européia é distinta da América Latina, é organizada desde os
anos 1920 praticamente, em torno de corrente comunista stalinista e a
socialdemocracia. Os partidos comunistas, com a desaparição da União
Soviética, estão muito debilitados, alguns agonizando. Por outro lado,
a socialdemocracia – que necessitaria confirmar minha hipótese – tem
participado durante 25 anos do desmantelamento do Estado social, que é
sua base de sustentação, porque é um mecanismo de manutenção da paz
social, para assegurar um certo crescimento do nível de vida. Nesse
processo, foi se destruindo metodicamente tanto o sistema de seguro
social, como os serviços públicos e as empresas públicas com as
privatizações. As lideranças, as cúpulas da socialdemocracia também têm
mudado muito. Não são só funcionários de Estado, com em um certo
sentido do serviço público, agora são organicamente associados ao
capital financeiro e industrial. São os gerentes de confiança do
capital. Isso eu duvido que será reversível. A conseqüência de tudo
isso, o debilitamento dos PCs e a mudança da socialdemocracia, é a
abertura de um espaço à esquerda da esquerda tradicional. Um espaço que
não é ocupado de forma homogênea. A posição é que, para um futuro
previsível pelo menos, haja uma total independência da
socialdemocracia, nenhuma coligação, nem a nível de prefeitura, nem de
governo etc. Isso parte da idéia de que saímos de uma derrota histórica
no século 20. Então, é um início de reconstrução e, se queremos
reconstruir algo sólido, não se pode confundir desde o início com
operações táticas que confundem a gente. Tem que traçar para médio ou
longo prazo uma perspectiva de reconstrução de verdade. Ora, a crise
facilita, de certo modo, porque mostra quem quer reconstruir ou
refundar o capitalismo e quem quer destruí-lo. É um ponto de divisão de
águas bastante visível. Digamos que a nova esquerda, na Europa, está
paralisada. Eu acho que tem um espaço da esquerda em disputa, tem
várias opções. O que tentamos fazer é agrupar, não conclamar um
partido, mas uma esquerda anticapitalista européia, para tentar fazer
com nome comum a campanha à eleição européia de 2009. Com chapa na
Polônia, Espanha, Itália, França, Inglaterra vai ser complicado, mas
isso começa a firmar não só uma opção anticapitalista na França, mas
dar, já jogando com um desenvolvimento desigual, uma perspectiva
européia.
Na sua opinião, pode-se ter alguma perspectiva de
uma retomada revolucionária nesse contexto de crise econômica
internacional? Quais as tarefas da esquerda? De um lado,
digamos que a palavra simbólica de ordem dos fóruns sociais “outro
mundo é possível”, hoje teria de ser mudada: “outro mundo é necessário
e urgente”, o problema é fazê-lo possível, mas aqui tem que ser lúcido
também. Se a hipótese seria de que o ponto de partida é uma derrota,
não qualquer, mas uma derrota histórica das esperanças de libertação do
século 20, se pode imaginar o início de um processo de reconstrução.
Falo para a Europa. Revolução social do “dia para a noite” com a
correlação de força atual..., porque não se trata só de reconstruir uma
esquerda política, mas também de reconstruir os movimentos sociais. É
preciso saber que na França os sindicalistas são apenas 10% da força de
trabalho. É muito minoritária. Então se trata verdadeiramente de uma
reconstrução, depois de uma derrota política, e em condições difíceis,
porque o obstáculo não é só ideológico. Os efeitos da individualização
do salário, do emprego, do seguro de pensão e flexibilização, tudo isso
obstaculiza a organização coletiva. Então a reconstrução, a crise pode
favorecer por um lado, mas vai ter efeitos contraditórios, gente que
vai tentar salvar-se por si mesmo. Então é uma batalha política aberta.
Na América Latina pode ser diferente. Que efeito vai ter a crise no
processo bolivariano? Se vai retroceder, ou avançar, se a convergência
Bolívia e Equador se fortalece, que resposta à crise, que uso do Banco
do Sul, tem aparecido o tema de uma moeda latino-americana para
desvincular-se do dólar, e não sofrer com o enfraquecimento do dólar.
Tudo isso está em aberto. Eu acho que a mudança com a crise é que o
discurso sobre o socialismo, o comunismo, está ganhando legitimidade. A
ideia de que o capitalismo era o fim da história agora terminou. Eu
acho que ninguém pode imaginar ou pretender saber que forma vão tomar
as revoluções do século 21. Ninguém sabia em 1789 que ia haver uma
revolução em Paris. Dizer que tem uma oposição quase sistemática entre
uma lógica do capital, de concorrência, de todos com todos, de ganância
privada, de egoísmo, falta de solidariedade, privatização do espaço
público etc. E uma lógica alternativa que é de reconstrução do espaço
público, defesa do serviço público, dos bens comuns da humanidade, como
terra, água, ar etc., uma política solidária de energia, que tem também
mais que uma dimensão ecológica, porque o que está em crise na
realidade é a lei do valor como forma de organizar a vida social, que
se traduz por uma crise social e ecológica. Não é para fazer manobras
políticas, mas é o núcleo de um programa alternativo. Logo se vai ter
essa envergadura de 1968, fazemos propaganda para isso, mas não depende
de propaganda, acontece ou não acontece. Veremos. Mas, o importante é
já convencer a gente que outra coisa é possível, o capitalismo não é
fatal, não é o estado terminal da história, e que há outra lógica
possível.
Núcleo
Piratininga
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