Entrevistas
"Mediação não visa tirar poder dos juízes", diz magistrada
Por Maria Mello
Nesta semana, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar
Mendes, afirmou que as propostas do 3° Plano Nacional de Direitos Humanos
(PNDH-3) são incompatíveis com a Constituição. Uma delas é, por exemplo, a que exigiria mediação prévia antes da concessão de liminares de
reintegração de posse. O cacique do
Supremo disse ainda que condicionar liminares a audiências públicas pode ser
uma "medida abusiva".
Na opinião de Dora Martins, Juíza de Direito e membro do Conselho
Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD) , "o que parece
incompatível com a nossa Constituição ou o que, de verdade, a ofende, é seu
descarado descumprimento e a não observância de seus consagrados
princípios".
Para ela, o que se propõe é que se discuta, em projeto de lei, o uso da
mediação para tentar a solução de conflitos agrários e urbanos de modo pacífico.
"Juízes conscientes, comprometidos com a democracia, não têm por princípio ouvir
as partes envolvidas em um conflito antes de tomar uma decisão?", questiona.
Leia abaixo a íntegra da entrevista.
MST - O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar
Mendes, afirmou que propostas do PNDH-3, como a que exigiria mediação prévia
antes da concessão de liminares de reintegração de posse, são incompatíveis com a
Constituição. A senhora concorda?
Dora Martins - O que me parece incompatível com a nossa
Constituição ou o que, de verdade, a ofende, é seu descarado descumprimento e a
não observância de seus consagrados princípios.Toda essa grita surgida após
assinatura do PNDH faz parecer que muitos não leram o texto direito, ou o leram
com modos tortos. O plano, em seu Objetivo Estratégico V, que dispõe sobre a
"Modernização da gestão e agilização do funcionamento do sistema de justiça",
traz, dentre outras, a seguinte disposição: "d) Propor projeto de lei para
institucionalizar a utilização da mediação como ato inicial das demandas de
conflitos agrários e urbanos, priorizando a realização de audiência coletiva com
os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público local,
órgãos públicos especializados e Polícia Militar, como medida preliminar à
avaliação da concessão de medidas liminares, sem prejuízo de outros meios
institucionais para solução de conflitos". Ora, o que se propõe é que se
discuta, em projeto de lei, o uso da mediação para tentar, num primeiro momento,
a solução de conflitos agrários e urbanos de modo pacífico e consensual. No "diz
que diz que" surgido em torno do PNDH, o senhor Ministro, com sua fala, em nada
contribuiu com o debate e lançou mais dúvidas do que esclarecimentos.
MST - Condicionar liminares a audiências públicas pode ser uma medida
abusiva?
Juízes conscientes, comprometidos com a democracia, não têm
por princípio ouvir as partes envolvidas em um conflito antes de tomar uma
decisão? Como dito acima, o PNDH é um plano de ações programáticas, que hão de
ser cumpridas, após discussão pelos poderes competentes, especialmente o
Legislativo.
Assim, a proposta de se (1) "institucionalizar" a mediação, como ato
inicial das demandas que envolve questões agrárias ou urbanas, e (2) priorizar
(e não obrigar) a realização de audiência coletiva, como prévia ao momento de se
decidir sobre o pedido liminar, não tem nada de abusivo. E, ademais, juizes e
juízas, bem como membros do Ministério Público e da defensoria pública,
conscientes de seu papel de garantidores dos princípios constitucionais e dos
direitos humanos, assim já atuam.
Um juiz, preocupado com os fins sociais do processo que está sob seu
julgamento, ouve as partes, em audiência que busca a conciliação, e pode fazer
vistorias no local do litígio, para conhecer a verdade material daquilo que está
a julgar.
MST - A Associação dos Juízes Federais de Rio de Janeiro e Espírito Santo
(Ajuferjes) divulgou uma nota crítica à mediação como medida preliminar à
concessão de liminares. Para o presidente da entidade, a proposta significa uma
“invasão no poder geral de cautela dos juízes”. A senhora concorda? Por
quê?
Li a nota da Ajuferjes e não concordo com ela. A bem da
verdade, a nota segue esse tom que vem sendo repetido pelos grande jornais. Fala
e pouco diz, ou não diz tudo. Distorce o assunto. A mediação não visa tirar
poder dos juízes. É uma outra cultura de composição de conflitos, com base no
diálogo e não na decisão "de cima para baixo". O poder geral de cautela dos
juízes não sofrerá abalo. E, se a mediação não der resultado positivo, o
conflito seguirá para o Judiciário. A proposta do PNDH não tem o propósito de
acabar com o poder de ninguém. Quer, a meu ver, apoderar o cidadão de seu
direito de diálogo e busca de soluções pacífica, por consenso.
MST - No caso de áreas ocupadas, o juiz perderia o poder de
“restabelecer a ordem”?
Não creio ser essa a intenção, o espírito da proposta do PNDH.
A partir da afirmação posta na pergunta, estaríamos a considerar que uma
ocupação é sempre uma desordem?! Este nosso país varonil ainda não encarou, como
devia, sua obrigação perante a prometida Reforma Agrária. Cada caso é um caso.
E, quando há o envolvimento de interesses vários e de diferentes quilates, é
possível, para garantir o que diz a Constituição Brasileira, ("erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais",
artigo 3o. III)) decidir-se pela legitimidade de uma área ocupada. Assim, essa
animada e apressada análise do PNDH, vendo nele demônios que não existem, em
nada contribui para a garantia dos direitos humanos.
MST - O Congresso colocará em votação Projetos de Lei que surgirem a
partir do programa. Os movimentos sociais e as entidades de direitos humanos
devem ter algum tipo de expectativa?
Sob uma análise otimista, usando lentes cor de rosa, espera-se que o
Congresso discuta e vote os projetos que devem nascer do PNDH, sem fazer ouvidos
moucos ao povo brasileiro que deve ser ouvido e poder opinar. Agora, não se pode
fingir que os interesses políticos e econômicos não contam, especialmente em
tempos de disputa eleitoral. Mas, enfim, vale considerar que com a aprovação do
PNDH deu-se um passo, importante, para a luta incansável em prol dos direitos
humanos no Brasil. Luta antiga, lenta, e que tem que persistir.
MST - No final do ano passado, a AJD prestou uma homenagem ao MST
pela sua atuação na área de direitos humanos, o que gerou polêmica. Como a
senhora vê essa reação?
A AJD apenas manifestou seu apreço pelos milhares de
brasileiros e brasileiras que formam esse Movimento que, nas últimas décadas,
fez a História deste Brasil. Houve, de fato, até ofensas pesadas à AJD, por
conta desse gesto. Mas, nosso gesto foi livre, consciente e feliz, e, ainda
perfeitamente harmonizado com nossos sonhos e nossa luta. Temos, dentre nossos
princípios "a promoção da conscientização crescente da função judicante como
proteção efetiva dos direitos do Homem, individual e coletivamente considerado,
e a conseqüente realização substancial, não apenas formal, dos valores, direitos
e liberdades do Estado Democrático de Direito". Essas são palavras que estão em
nosso estatuto. A homenagem ao MST foi apenas uma forma de traduzir palavras em
ação. E as críticas que recebemos apenas nos confirmam que estamos em nosso
caminho escolhido e bom.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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