Entrevistas
Caros Amigos entrevista Carlos Nelson Coutinho
“Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia” Por Caros Amigos Carlos Nelson Coutinho, um dos intelectuais marxistas mais respeitados do Brasil, recebeu a Caros Amigos
em seu apartamento no bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro, para uma
conversa sobre os caminhos e descaminhos da esquerda brasileira, sua
decepção com o governo Lula e as possibilidades de superação do
capitalismo.Estudioso
de Antonio Gramsci, Coutinho defende a atualidade de Marx e reafirma o
que disse em seu polêmico artigo “Democracia como valor universal”,
publicado há 30 anos: “Sem democracia não há socialismo, e sem
socialismo não há democracia”. Participaram: Hamilton Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino.
Hamilton Octávio de Souza- Queremos saber da sua história, onde nasceu, onde foi criado, como optou por esta carreira... Carlos Nelson Coutinho - Nasci na Bahia, em uma
cidade do interior chamada Itabuna, mas fui para Salvador muito
pequenininho, com uns 3 ou 4 anos. Me formei em Salvador, e as opções
que eu fiz, fiz em Salvador. Eu nasci em 1943, glorioso ano da batalha
de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade
Federal da Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais
do que a maioria dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu
pai era advogado e foi deputado estadual durante três legislaturas da
UDN. Publicamente ele não era de esquerda, mas dentro de casa ele tinha
uma posição mais aberta. Eu me tornei comunista lendo o Manifesto
Comunista que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto,
tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu
precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento. Eu devia
ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por dois anos porque
era a faculdade onde se fazia política, e eu estava interessado em
fazer política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer política era
me tornando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista
Brasileiro, que naquela época tinha presença. O primeiro ano da
faculdade foi até interessante
porque tinha teoria geral do Estado, economia política, mas quando
entrou o negócio de direito penal, direito civil, aí eu vi que não era
a minha e fui fazer filosofia. Renato Pompeu - Mas quais eram as suas referências intelectuais? Em
primeiro lugar, Marx, evidentemente, mas também foram muito fortes na
minha formação intelectual o filósofo húngaro George Lukács e Gramsci.
Eu tenho a vaidade de ter sido um dos primeiros a citar Gramsci no
Brasil, porque aos 18 anos eu publiquei um
artigo sobre ele na revista da faculdade de Direito. Aí eu vim para o
Rio e fui trabalhar no Tribunal de Contas. Me apresentei ao João Vieira
Filho para trabalhar e ele me falou: “Meu filho, vá pra casa e o que
você precisar de mim me telefone”. Eu fiquei dois
ou três anos aqui sem trabalhar, mas a situação ficou inviável. Pedi
demissão e fui, durante um bom tempo, tradutor. Eu ganhava a vida como
tradutor, traduzi cerca de 80 ou 90 livros. Em 76, eu fui para a
Europa. Passei 3 anos fora, não fui preso, mas senti que ia ser, foi
pouco depois da morte do Vlado. Então morei na Europa por três anos,
onde acho que aprendi muita política. Morei na Itália na época do
florescimento do eurocomunismo, que me marcou muito. O primeiro texto
que publiquei é exatamente este
artigo da “Democracia como valor universal” que causou, sem modéstia,
um certo auê na esquerda brasileira na época. Até hoje há citações de
que é um texto reformista, revisionista. Enfim, voltei do exílio e
entrei na universidade, na UFRJ, onde eu estou há quase 28 anos. Passei
por três partidos políticos na vida. Entrei no PCB, como disse antes,
aos 17 anos, onde fiquei até 1982, quando me dei conta que era uma
forma política que tinha se esgotado. Nesse momento, surge
evidentemente uma coisa que o PC não esperava e não queria, que é um
partido realmente operário, no sentido de ter uma base operária. O
mal-estar do PCB contra o PT no primeiro momento foi enorme. Eu saí do
PCB, mas não entrei logo no PT. Só entrei no PT no final da década de
80, entrei junto com o [Milton] Temer e o Leandro Konder. Fizemos uma
longa discussão para ver se entrávamos ou não, e ficamos no PT até o
governo Lula, quando nos demos conta que o PT não era mais o PT. Saí e
fui um dos fundadores do PSOL, que ainda é
um partido em formação. Ele surge num momento bem diferente do momento
de formação do PT, de ascensão do movimento social articulado com a
ascensão do movimento operário. E o PSOL surge exatamente em um momento
de refluxo. Nessa medida, ele é ainda um partido pequeno, cheio de
correntes. Eu sou independente, não tenho corrente. Podemos dizer o
seguinte: eu tinha um casamento monogâmico com o PCB, com o PT já me permitia traições e no PSOL é uma amizade colorida. Tatiana Merlino - Em
uma entrevista recente o senhor falou sobre o avanço e o triunfo da
pequena política sobre a grande política dentro do governo Lula. Você
pode falar um pouco sobre isso? Gramsci
faz uma distinção entre o que chama de grande política e pequena
política. A grande política toma em questão as estruturas sociais, ou
para modificá-las, ou para conservá-las. A pequena política de Gramsci
é a política da intriga, do corredor, a intriga parlamentar, não coloca
em discussão as grandes questões. Durante algum tempo, o Brasil passou
por uma fase de grande política. Se a gente lembrar, por exemplo, a
campanha presidencial de 89, sobretudo o segundo turno, tinha duas
alternativas claras de sociedade. Não sei se, caso o PT ganhasse, ia
cumpri-la, mas, do ponto de vista do discurso, tinha uma alternativa
democrático-popular e uma alternativa claramente
neoliberal. Até certo momento, no Brasil, nós tivemos uma disputa que
Gramsci chamaria de grande política. A partir, porém, sobretudo, da
vitória eleitoral de Lula, eu acho que a redução da arena política
acaba na pequena política, ou seja, que no fundo
não põe em discussão nada estrutural. Eu diria que é a política tipo
americana. Obviamente o Obama não é o Bush, mas ninguém tem ilusão de
que o Obama vai mudar as estruturas capitalistas dos Estados Unidos, ou
propor uma alternativa global de sociedade. Então, o que está
acontecendo no Brasil é um pouco isso, dando Dilma ou dando Serra não
vai mudar muita coisa não. Até às vezes desconfio que o Serra pode
fazer uma política menos conservadora, mas depois vão me acusar de ter
aderido a ele. Eu até faço uma brincadeira, dizendo que a política
brasileira “americanalhou”, virou essa coisa... Então, neste sentido eu
entrei no PSOL até com essa ideia de criar uma proposta realmente
alternativa. Infelizmente o PSOL não tem força suficiente para fazer
essa proposta chegar ao grande público, mas é uma tentativa modesta de
ir contra a pequena política. Renato Pompeu - Você não acha que esse americanalhamento aconteceu na própria pátria do Gramsci? Ah,
sem dúvida. A predominância da pequena política é uma tendência
mundial. Me lembro que logo depois da abertura eu escrevi uns dois ou
três artigos em que dizia que o Brasil se tornou uma sociedade
complexa. O Gramsci a chamaria de ocidental, que é uma sociedade civil
desenvolvida, forte e tal. Mas há dois modelos de sociedade ocidental -
um modelo que eu chamava de americano, que é este onde há sindicalismo,
mas o sindicalismo não se põe nas estruturas, há um bipartidarismo, mas
os partidos são muito parecidos, e o que eu chamava de modelo europeu,
onde há disputa de hegemonia. Ou seja, se alguém votava no partido
comunista na Itália, sabia que estava votando em uma proposta de outra
ordem social. Se alguém votava no Labour Party na Inglaterra durante um
bom tempo, pelo menos o programa deles era socialista, de socialização
dos meios de produção. E quem votava no partido conservador queria conservar
a ordem. O Brasil tinha como alternativa escolher um ou outro modelo.
Por exemplo, havia partidos que são do tipo americano, como o PMDB, mas
havia partidos que são do tipo europeu, como o PT. Havia um
sindicalismo de resultado e um sindicalismo combativo (CUT, por
exemplo), mas tudo isso era naquela época. Depois a hegemonia
neoliberal, em grande parte, americanalhou a política mundial. A Europa
hoje é exatamente isso, são partidos que diferem muito pouco entre si.
Há um “americanalhamento”. É um fenômeno universal e é uma prova da
hegemonia forte do neoliberalismo. Tatiana Merlino - Então o avanço da pequena sobre a grande política está sendo mundial? É
um fenômeno mundial, não é um fenômeno brasileiro. Mas veja só, começam
a surgir na América Latina formas que tentam romper com este modelo da
pequena política. Estou falando claramente de Chávez, Evo Morales e
Rafael Correa, ainda que eu não seja um chavista, até porque eu acho
que o modelo que o Chávez tenta aplicar na Venezuela não é válido para
o Brasil, que é uma sociedade mais complexa, mais articulada. Mas
certamente é uma proposta que rompe com a pequena política. Quando o
Chávez fala em socialismo, ele recoloca na ordem do dia, na agenda
política, uma questão de estrutura. Tatiana Merlino - Então é um socialismo novo, do século 21. Que socialismo é esse? Eu não sei, aí tem que perguntar para o Chávez. Olha, eu não gosto dessa expressão “socialismo do século 21”, eu diria “socialismo no século 21”. Renato Pompeu - E como seria o socialismo no século 21? Socialismo
não é um ideal ético ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O
socialismo é uma proposta de um novo modo de produção, de uma nova
forma de sociabilidade, e nesse sentido eu acho que o socialismo é,
mesmo no século 21, uma proposta
de superar o capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o
Manifesto Comunista, como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio
na caracterização do capitalismo. A ideia da globalização capitalista
está lá no Manifesto Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial,
expande e vive através de crises. Essa ideia de que a crise é
constitutiva do capitalismo está lá em Marx. Mas há um ponto
que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações, que é o
seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir uma nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um
sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele
supunha, inclusive, que ela se tornaria maioria da sociedade. Acho que
isso não aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente
todas as profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se
configurou a criação de uma classe operária majoritária. Pelo
contrário, a classe operária tem até diminuído. Então, eu diria que
este é um grande desafio dos socialistas hoje. Hoje em dia tem aquele
sujeito que trabalha no seu gabinete em casa gerando mais-valia para
alguma empresa, tem o operário que continua na linha de montagem... Será
que este cara que trabalha no computador em casa se sente solidário com
o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um grande
desafio. Como congregar todos estes segmentos do mundo do trabalho
permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada
de classe e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do
capital? Renato Pompeu - Aí tem o problema dos excluídos... Eu
tenho sempre dito que as condições objetivas do socialismo nunca
estiveram tão presentes. Prestem atenção, o Marx, no livro 3 do
“Capital”, diz o seguinte: O comunismo implica na ampliação do reino
da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa para além da
esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino onde os
homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora.
Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro “A Ideologia Alemã”
que o socialismo é o lugar onde o homem de manhã caça, de tarde pesca e
de noite faz crítica literária, está liberto da escravidão da divisão
do trabalho. E ele diz que isso só pode
ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo
desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma
possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o
problema do desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria
emprego para todos os outros. E por que isso não acontece? Porque as
relações sociais de produção capitalista não estão interessadas nisso,
não estão interessadas em manter o trabalhador com o mesmo salário e
uma jornada de trabalho muito menor. Então, eu acho que as condições
para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto, se crie
espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens,
são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições
subjetivas são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho
se modificou muito. Muita gente vive do trabalho com condições muito
diferenciadas, o que dificulta a percepção de que eles são membros de
uma mesma classe social. Então, esse é um desafio que o socialismo
no século 21 deve enfrentar. Um desafio também fundamental é repensar a
questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em grande parte, o
mal chamado “socialismo real” fracassou porque não deu uma resposta
adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só
socialização dos meios de produção - nos países do socialismo real, na
verdade, foi estatização - mas é também socialização do poder político.
E nós sabemos que o que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político,
uma burocratização partidária que levou a um ressecamento da
democracia. A meu ver, aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que
os países socialistas não realizaram o comunismo, não realizaram sequer
o socialismo e temos que repensar também a relação entre socialismo e
democracia. Meu texto, “Democracia como valor universal”, não é um
abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vínculo
entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a
ditadura que
ainda existia e contra uma visão “marxista-leninista”, o pseudônimo do
stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que este foi
o limite central da renovação do partido. Para ler a entrevista completa e outras reportagens confira a edição de dezembro da revista Caros Amigos, já nas bancas.
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