Direitos Humanos
Os vencidos não se entregam
Por Luana Lila, de Iaras Carta Capital
No acampamento Rosa Luxemburgo, como em tantos outros ligados ao MST, as
condições de vida são precárias. As lonas esquentam em demasia durante o dia,
falta água e energia elétrica. Mas o que mais incomoda as 180 famílias acampadas
nos arredores de Iaras, no sudoeste de São Paulo, são as tempestades. “Você
nunca sabe se vai deitar e amanhecer em pé ou não. Tudo sai voando, eu tenho um
medo terrível. Se cai granizo é pior ainda, porque você vê que a lona não vai
resistir. Depois que passa, a gente sai para ver o que sobrou, todo mundo tem de
se ajudar para reconstruir”, afirma Rosalina Beatriz de Oliveira, acampada há
cerca de um ano.
A fazenda Agrocentro, que dá lugar ao acampamento, foi
declarada improdutiva pelo Incra e aguarda a conclusão do processo de
desapropriação. Para chegar lá, depois de três horas pelas modernas estradas do
estado, o progresso do agronegócio se faz mais tímido e grandes buracos no
asfalto dificultam a circulação dos veículos. Em seguida, o carro segue
derrapando na areia grossa, ao longo de 32 quilômetros de estrada de terra
cercada de plantações de eucalipto e cana.
Na fazenda o pasto deu lugar
aos barracos de lona que surgem no horizonte. Com o sol forte na cabeça e a
terra fervendo sob os pés, o olhar insiste na busca por um abrigo, mas são
poucas as árvores que sobraram. No interior dos barracos a temperatura é
insuportável.
Na varanda improvisada com um puxadinho de lona está Marta
Pereira da Silva, que mora há oito meses no acampamento. Marta parece ter bem
menos idade do que os 40 anos que sua certidão de nascimento aponta, mas está
doente. Tem pressão alta e diabetes e toma mais de vinte comprimidos por dia.
Quando vai ao pronto-socorro, em Bauru, sempre ouve que a primeira coisa a
fazer, se quiser continuar viva, é deixar o acampamento o mais rápido possível.
Os médicos sabem que, da próxima vez que passar mal, ela pode não chegar a tempo
ao hospital. Dependerá da boa vontade de um companheiro de carro ou da polícia,
que já foi acionada em momentos de emergência e não apareceu. Marta prefere
correr o risco: “Os médicos falam para eu sair daqui, mas e a minha terra, e a
minha luta? ”
O acampamento Rosa Luxemburgo não está ali por acaso. Na
região existem 50 mil hectares de terras públicas indevidamente ocupados por
particulares. A história começou em 1920, quando a União adquiriu a área, que
abrange os municípios de Águas de Santa Bárbara, Iaras, Borebi, Lençóis Paulista
e Agudos, para a colonização de famílias de imigrantes. O problema é que as
terras não foram discriminadas regularmente e, com o passar do tempo,
particulares começaram a tomar conta e registrar as áreas em
cartório.
Foi só a partir de 1994 que o Incra começou a fazer um
levantamento da área pública total, conhecida como Núcleo Colonial Monção. Em
2002, o Instituto passou a identificar os ocupantes irregulares, concluindo que
os atuais proprietários não são os mesmos que tomaram as terras originalmente,
pois, ao longo dos anos, elas foram vendidas diversas vezes. Isso acaba dando
bases para longas disputas judiciais, enquanto o Incra solicita a devolução das
terras à União, mediante indenização. Ele se baseia em artigo da Constituição
que determina que as terras públicas devem ser prioritariamente direcionadas à
reforma agrária.
Para complicar ainda mais, além das terras públicas,
existem na região onze fazendas, cerca de 15 mil hectares, que já foram
vistoriadas e consideradas improdutivas pelo Incra, mas aguardam uma certidão de
uso e ocupação do solo da prefeitura de Agudos para que o processo de
desapropriação tenha início. Mas o prefeito Everton Octaviani, que por enquanto
concedeu o documento apenas para a fazenda Agrocentro, afirma que, dos onze
imóveis, ao menos quatro proprietários entraram com ações na Justiça contra o
laudo de improdutividade. Quanto aos outros, o prefeito explica a demora na
emissão do documento: “Eu ainda não emiti porque não quero que venham para o
município essas famílias de outras localidades, que são do MST. Eu tenho
negociado com o Incra e exijo que sejam colocadas ali famílias da minha cidade,
famílias de trabalhadores que vão fazer um bom uso da terra, que vão produzir.
Eu não posso dizer que só quero agudenses, mas preferencialmente de Agudos, e
que não sejam do MST”.
No meio desse entroncamento de interesses estão
centenas de pessoas que, após uma história de despejos violentos e promessas não
cumpridas, aguardam um lote para se estabelecer. Rosalina é uma delas.
Aposentada, ela trabalhou em Bauru durante muitos anos como atendente de
enfermagem. Sua experiência é útil ao acampamento, assim como os ensinamentos
familiares sobre o uso de ervas medicinais. “O tradicional do hospital não serve
para nada aqui.”
Enquanto as famílias vivem no acampamento, as pequenas
hortas pipocam lá e cá, fartas. São plantações de mandioca, abóbora, chuchu,
almeirão e alface. Mesmo com a situação indefinida, eles já podem se alimentar
do que plantaram, mas não expandem o cultivo por medo de ser expulsos a qualquer
momento, como aconteceu diversas vezes com Francisca Ângela dos Santos: “Quando
acontece o despejo, a gente tem de levar a casa inteira nas costas. A minha casa
está toda aqui, você já pensou se for para sair dentro de 24 horas, o que vou
fazer com isso? Eu tenho de levar os animais, o que não puder ir
fica”.
As primeiras ocupações do MST na região datam de 1995, quando o
movimento percebeu a complexidade agrária do local e vislumbrou uma
possibilidade para o assentamento de suas famílias. Desde então, a disputa
judicial entre o Incra e os fazendeiros rendeu alguns frutos aos trabalhadores.
Segundo o superintendente do Incra em São Paulo, Raimundo Pires Silva, entre
Iaras e Bauru existem cerca de mil famílias assentadas. Algumas empresas
preferiram fazer acordos de permuta nos quais cedem à União uma área equivalente
à que ocupam, mas em outro local, para não perder as benfeitorias já instaladas.
O mesmo tipo de acordo foi discutido durante seis meses com a Cutrale, mas ela
decidiu continuar o processo judicial.
Para Paulo Beraldo, dirigente
regional do MST, isso explica a ação do movimento na fazenda Santo Henrique, no
início de outubro: “Ocupamos em 2008 em busca de um acordo para passar uma área
equivalente para que a Cutrale não tivesse de mexer nas laranjas. Tendo o
acordo, a gente respeitava aquela área como deles, só queríamos saber onde seria
a nossa”.
O MST alega ainda que as acusações de depredação das
benfeitorias da empresa e o roubo de funcionários não foram ações efetuadas por
eles, e, sim, nas palavras de Paulo, por “alguém que se aproveitou da situação
e, como estava lá, saiu na conta do movimento”. Segundo ele, alguns tratores
destruídos estavam danificados na própria oficina da fazenda.
Enquanto
as investigações sobre o caso não são concluídas, o superintendente do Incra
critica a ação do MST na fazenda da Cutrale: “A reforma agrária não é um
processo de revolução para fazer o socialismo. A reforma agrária implica um
debate sobre a nossa dívida social. Estamos empregando uma família, dando
condições de vida, de cidadania”.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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