Direitos Humanos
Máquina Mortífera
Por Marcelo Salles Publicado na Caros Amigos
Hanry Silva voltava da casa de uma colega, numa favela chamada Boca do
Mato, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O nome tem sua razão de ser. O
lugar dá para uma montanha, no bairro Lins de Vasconcelos, onde a
vegetação nativa ainda é preservada. Em vez de retornar pela rua, ele
decidiu fazer o trajeto mais curto: pelo alto do morro. Assim,
caminhando próximo aos postes de energia do topo da montanha, Hanry
cruzou pouco mais que 1 Km. A vista abrevia ainda mais a viagem: com
tempo bom é possível ter uma visão panorâmica da cidade, emoldurada
pela Ponte Rio-Niterói e pela Baía de Guanabara. Eram cinco da tarde
quando se aproximava de sua casa, no Morro do Gambá – também conhecido
como Nossa Senhora da Guia.
O estudante já estava bem perto, nem 100m faltavam. Ao chegar, tomar
banho, trocar de roupa e seguir para o colégio. Estava de bermuda preta
e sem camisa. Vinha balançando a chave de casa, despreocupado, fazendo
um caminho ao qual já se habituara. No entanto, aquele 21 de novembro
de 2002 seria diferente. Hanry foi surpreendido por policiais do 3º
Batalhão de Polícia Militar e arrastado uns 20m abaixo. Foi posicionado
entre uma pedra de 2m x 1,5m e um arbusto com folhagem densa e
suficientemente grande para encobrir o resto de visão que alguém
poderia ter do lugar. A casa mais próxima dali fica a uns dez minutos
de caminhada, em mata semifechada.
Por volta de 17h40, um estampido ecoou no Morro do Gambá. Aos
dezesseis anos de idade, Hanry foi assassinado com um tiro certeiro no
coração. Tinha 1,65m, era mulato, corpo seco. Cursava o primeiro ano do
ensino médio – nunca repetiu – e sonhava ser jogador de futebol, como
tantos outros garotos.
No dia seguinte sua mãe acordou preocupada. O filho não havia
dormido em casa. Márcia Jacintho percorreu a favela toda atrás de
notícias, quando teve a ideia de ir ao hospital mais próximo. No
Salgado Filho ficou momentaneamente aliviada: apenas dois jovens haviam
sido encaminhados pela polícia na noite anterior, ambos descritos como
traficantes que já chegaram mortos. Márcia continuava a busca quando
alguém ligou do IML: “Vem pra cá porque acho que mataram seu filho”.
Chegando lá, Márcia começou a morrer em vida. A dor é tanta que
hoje, quase sete anos depois, ela ainda chora quando recorda a cena:
“Meu filho não teve velório. Tava inchado, um cheiro muito forte, muito
escuro, ninguém o reconheceu”. Márcia começou a morrer por um lado, mas
de outro nasceu uma guerreira que iria lutar com unhas e dentes para
fazer justiça. Suas razões de viver passaram a ser basicamente essas:
provar que seu filho não era traficante, como acusara a polícia, e
responsabilizar os assassinos.
Inicialmente, Márcia fez o trabalho de investigação sozinha, pois a
autoridade competente alegava não dispor dos recursos necessários.
Então ela voltou ao local do crime, fez a primeira reconstituição com
as próprias sandálias, fotografou, encontrou testemunhas. Até o boletim
ambulatorial do hospital ela foi pegar, já que a Delegacia de Polícia
não se mexia.
Foto por Fernanda Chaves
Essa história ela me conta enquanto vasculhamos os arredores de onde
Hanry foi assassinado. Do pé ao topo, demoramos quase uma hora de
subida bastante puxada. O Morro do Gambá tem centenas, talvez milhares
de casas, de todos os tipos: alvenaria, madeira, compensado ou tudo
misturado. Aqui, a maior parte da população é negra. E pobre. Serviços
públicos como coleta de lixo demoram a chegar, deixando o chão imundo,
sobretudo nas partes mais altas. Ao lado da pequena quadra de futebol,
de terra batida, há um barranco imenso, uns cem metros quadrados de
sacos plásticos, restos de comida e sujeira de todo tipo.
Conforme subimos, percebo que o adensamento populacional vai se
reduzindo, até que cruzamos a última casa – um compensado de madeira de
uns 20m quadrados, no máximo, de onde saem seis pessoas. Uma mulher
idosa, uma criança bem pequena e os demais, adolescentes. Márcia
arrisca o caminho da esquerda, mas o mato está muito fechado. “Tem
certeza que é aí?”, pergunto. “É sim, é que não venho aqui faz tempo”.
Continuo seguindo, meu receio em franco contraste com o seu destemor.
Até que um dos adolescentes da última casa, um negro bem preto, se
aproxima e fala: “Tia, não é por aí, não. É pelo outro lado”. E nos
mostra o caminho.
Passaram-se dois anos e nove meses até que a perícia oficial agisse.
A partir daí, apareceram várias contradições na versão dos policiais,
que alegaram, por exemplo, troca de tiro com bandidos que estariam em
cima de uma pedra, levando a crer que o disparo teria vindo de baixo
para cima (e não o contrário, como foi comprovado pelo laudo
cadavérico). O horário alegado pelos policiais também não batia. Como
poderia haver uma troca de tiros às 19h40 no alto do morro se a entrada
do garoto no hospital teria sido às 20h08? Seria como enfrentar seis ou
sete bandidos fortemente armados, como argumentaram os policiais,
recolher o corpo baleado, descer o morro inteiro carregando o fardo,
colocá-lo na viatura e deixá-lo no hospital, que fica a vinte minutos
dali. Nem o The Flash.
Seis anos depois, Márcia conseguiu levar a julgamento dois dos onze
policiais militares que havia acusado. Marcos Alves da Silva foi
condenado a nove anos de prisão por homicídio doloso e fraude
processual (simulou apreensão de arma e droga com Hanry) e Paulo
Roberto Paschuini a três anos pelo último crime. Os dois vão recorrer,
sendo que o segundo em liberdade.
O caso de Hanry foi um dos 9.179 óbitos registrados como “autos de
resistência” – quando a polícia mata um opositor em legítima defesa –
entre 2000 e 2009 (até maio), de acordo com o Instituto de Segurança
Pública, órgão vinculado ao Executivo Estadual. Uma média de 2,67
mortes por dia. É como se em dez anos toda a população do bairro da
Glória sumisse do mapa. Por outro lado, foram registrados 59.949
homicídios dolosos, no mesmo período; crimes que o Estado não foi capaz
de evitar.
O número de “autos de resistência” dá à polícia do Rio o título de
campeã de letalidade. Entre todas as outras corporações similares no
mundo, é a que mais mata – e também a que mais morre (dado que, por si
só, evidencia uma política de segurança equivocada). Até o relator da
ONU para execuções sumárias e extrajudiciais, Philip Alston, declarou,
após recente visita ao Rio de Janeiro: “no Brasil os policiais matam
tanto em serviço como fora de serviço e nenhuma investigação é feita já
que todos os índices se justificam a partir de ‘autos de resistência’
ou ‘mortes em confronto’”.
A origem da ferramenta jurídica “auto de resistência” está na Ordem
de Serviço “N”, nº 803, de 2/10/1969, da Superintendência da Polícia
Judiciária, do antigo estado da Guanabara. O dispositivo afirma que “em
caso de resistência, [os policiais] poderão usar dos meios necessários
para defender-se e/ou vencê-la” e dispensa a lavratura do auto de
prisão em flagrante ou a instauração de inquérito policial nesses casos.
Registre-se: não são raras as situações em que os policiais
necessitam usar a força como resposta a ações hostis de traficantes
varejistas. É como explica o delegado Marcus Nunes, coordenador da
CORE, unidade de elite da Polícia Civil: “Somos muitas vezes recebidos
a tiros. Geralmente o policial entra numa comunidade em tese hostil
porque é controlada por um grupo fortemente armado, querendo fazer de
tudo pra não ser preso, usando todos os esforços necessários, às vezes
com equipamentos de primeira geração, munição em fartura, granadas”. No
entanto, como reconhece o delegado, essa situação de extrema pressão
sobre o policial, aliada a outros fatores, pode levar a execuções
registradas como autos de resistência.
“Me chamava a atenção a diferença no preenchimento dos ROs
[Registros de Ocorrência]”, comenta a antropóloga Ana Paula Miranda,
que foi diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública. Por um
lado, havia falta de cuidado nos registros em geral, mas aqueles
referentes aos autos de resistência “vinham bem montados, com
informações padronizadas e a falta de testemunhas que não fossem
policiais”, diz a pesquisadora da Universidade Federal Fluminense. Ana
Paula chama a atenção para a escalada da violência da polícia, que cada
vez mata mais e prende menos (ver quadro na página 31).
A polícia do Rio de Janeiro atua com muito pouco controle, interno
ou externo. A Corregedoria nem sempre atua com a isenção desejada, as
armas utilizadas em operações dificilmente são identificadas e os
policiais que se envolvem em troca de tiros não recebem atenção
especial do governo – em outros Estados, como São Paulo, já existe uma
política assistencial voltada para esses profissionais da segurança,
como auxílio psicológico. No entanto, engana-se quem acredita que a
polícia é a única responsável pelo atual estado de coisas. Quando se
registra uma ocorrência como “auto de resistência”, o delegado tem
trinta dias para investigar e, então, deve enviar suas conclusões para
o Ministério Público Estadual.
O MP é o titular da Ação Penal e, diante do relatório, o promotor
deve decidir se retorna o material para a delegacia solicitando novas
apurações, se oferece denúncia contra o policial ou se encaminha o
processo com pedido de arquivamento para o juiz. Neste caso, se o
magistrado concordar, o processo é arquivado. Se discordar, a decisão
final passa à Procuradoria Geral de Justiça, cujo titular é indicado
pelo governador do Estado.
Para esclarecer os dados, procurei o Ministério Público. Fiz o
primeiro contato no dia 17 de agosto. Na assessoria de imprensa, fui
atendido por Paolla Serra, depois por Lívia Monteiro. Não me deram
retorno. No dia 14 de setembro, voltei a insistir. Dessa vez falei com
Leonardo, que também não me respondeu. Alguns dias antes eu havia ido
ao Tribunal de Justiça, onde conversei com três defensores públicos.
Eles disseram que recebem pouquíssimos inquéritos em casos de autos de
resistência, às vezes nem um por mês, o que indica poucas denúncias do
MP contra policiais.
O pioneiro a analisar os pareceres do Ministério Público sobre os
autos de resistência foi o desembargador Sérgio Verani, no livro
“Assassinatos em nome da lei” (entrevista à página 31). Na apresentação
da obra, o jurista Evandro Lins e Silva anota: “Examinando dezenas de
inquéritos, alguns deles em que funcionou como juiz, Sérgio Verani pôde
identificar uma uniformidade ideológica que conduziu ao arquivamento ou
à absolvição, em todos eles, dos policiais acusados do assassinato de
42 pessoas”. Nesta cesta ideológica encontra-se o pedido de
arquivamento, assinado por um promotor, que classifica a vítima da ação
policial como “micróbio social”. O caso é de 1982, mas permanece atual.
Vinte e dois anos depois, a 21a Promotoria de Investigação Penal de
Bangu acusou os bandidos que teriam enfrentado a polícia de
“verdadeiros soldados do mal”.
“No ano passado aquele comandante [coronel Marcos Jardim] de certa
forma repetiu isso: ‘[a PM é o melhor] inseticida social’. Inseticida
social!”, recorda Sérgio Verani: “Como também uma expressão usada
quando foi preso o Elias [Maluco, acusado de matar o jornalista Tim
Lopes]. E aí foram expedidos mandados de busca e apreensão e
o juiz escreveu na decisão dele que o Grupo do Elias era um ‘lixo
genético’. O juiz escreveu isso: ‘lixo genético’! Que é a mesma coisa
de ‘micróbio social’, ‘inseticida’. O desprezo com a vida. Uns podem
viver, mas esses desclassificados não”.
“Quem mata é a Polícia, mas quem enterra é o Judiciário”
Outro indicativo de descaso do Poder Judiciário é que em muitas
sentenças o magistrado abre mão do despacho fundamentado e passa a usar
uma mera etiqueta adesiva, tipo essas da marca Pimaco, para determinar
o encerramento do processo investigatório. Como consta da decisão
assinada em 10 de janeiro de 2005, a respeito de três mortes causadas
por policiais na favela do Rebu, em Senador Camará: “Na forma de
promoção do MP de folhas retro, determino o arquivamento do presente
feito. Dê-se baixa e arquive-se”.
Por essas razões, o delegado de Polícia Civil Orlando Zaccone,
mestre em Ciências Penais, não tem dúvidas em afirmar: “Quem mata é a
polícia, mas quem enterra é o Judiciário”. Profundo conhecedor da
Criminologia Crítica, Zaccone alia a teoria à prática. Foi ele quem
conduziu as investigações que solucionaram a Chacina do Borel, em 2003,
em que os crimes foram inicialmente registrados como autos de
resistência. É com essa autoridade que ele analisa: “O que vai definir
o arquivamento dos autos ou o processo dos policiais pela morte da
vítima é se a vítima está ou não definida como ‘inimigo’, traficante,
gerando uma ‘legitimidade’ na ação da polícia”.
Marcelo Salles é jornalista e coordenador da Caros Amigos no Rio de Janeiro
salles@carosamigos.com.br
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