Por NPC Entrevista com Jon Blair e Tom Phillips, diretor e co-produtor do filme Dançando com o Diabo
Foto por: Bruna Barbosa
Jon Blair e Tom Phillips, em entrevista para o BoletimNPC
Por Sheila Jacob
O BoletimNPC entrevistou o jornalista
e cineasta Jon Blair, diretor do filme Dançando
com o Diabo. O documentário, recém lançado no Festival do Rio, aborda a
realidade das favelas cariocas, com foco no Complexo da Coréia, Zona Oeste do
Rio. Também participou da entrevista o jornalista Tom Phillips, correspondente
do The Guardian e co-produtor do
longa. Nessa entrevista, ambos falam sobre a responsabilidade social do
jornalismo, as visitas às favelas do Rio, os contatos com traficantes,
policiais e pastores, e a importância de se humanizar e dar oportunidade de
todos esses atores se manifestarem. Para Blair, muitas vezes essas pessoas são
tão desumanizadas “que até nos esquecemos de que eles também têm mães”. Como
ele lembra, muitas vezes a mídia trata do tema da favela ou tráfico com
adjetivos pejorativos, como “diabólico” e “mau”. Tom conta que a ideia desse
documentário é mostrar o outro lado, já que o seu diferencial “é mostrar os
olhos desses personagens”, como diz. Leia a entrevista.
BoletimNPC: Jon, vamos falar um pouco sobre a sua vida. Sabemos que você nasceu na
África do Sul e foi para a Inglaterra quando tinha 16 anos porque não queria
trabalhar para o regime do Apartheid. Que lembranças você guarda dessa época? Poderia
falar um pouco sobre essa fase da sua vida?
Jon
Blair: Quando eu era muito, muito criança, crescendo na África
do Sul, nunca havia sido um problema para crianças pretas e brancas brincarem
juntas. Então eu, um branco, podia brincar com os filhos dos empregados. Mas aí
quando você começava a ir para a escola, mais ou menos com 4 ou 5 anos, a
separação racial começava. E isso me assustava muito, principalmente por
começar tão cedo. Comecei a achar estranho e a questionar: por que uma
sociedade se organiza dessa maneira? Quando cheguei à adolescência, eu não
poderia mais conceber essa injustiça. Isso provavelmente por dois motivos
familiares. O primeiro era minha irmã mais velha que teve que sair do paíspor ser envolvida em uma organização “terrorista”
sul-africana que explodia linhas elétricas e trilhos de trem. Eu tinha muito
orgulho dela, por isso.
Também tem a minha mãe que era acadêmica, e era muito
progressista. Estava envolvida em uma revista que promovia contribuições
multirraciais, o editorial também defendia o convívio multirracial. Lembro que
na África do Sul, por volta de 1950, 1960, tudo isso era muito perigoso, o que
é ridículo. Ela trabalhava na mesma publicação que Nadine
Gordimer, a famosa escritora sul-africana que recebeu o prêmio Nobel por atuar
contra o Apartheid. Então tenho tudo isso como antecedente.
Assim que eu terminasse a escola, por volta dos 17
anos, eu teria que entrar no exército. Mas eu sabia que não poderia fazer isso.
Por motivos pessoais, políticos, físicos, eu sabia que não poderia sobreviver
àquele regime. Então eu fui passar um pequeno feriado na Inglaterra, e fiquei
por lá.
BoletimNPC: E lá então você se tornou jornalista...
JB: Isso. Então me tornei jornalista e cineasta... Você
não separa essas coisas na sua vida, a política é parte da sua vida e consequentemente
parte de sua profissão. E apesar de eu não estar agora tão envolvido em
questões de esquerda, eu penso que essas atitudes e esses sentimentos me
acompanham profissionalmente. Quando conheci Tom (Phillips, o produtor de Dançando com o Diabo) alguns anos atrás,
eu estava pensando em fazer outro filme, um que tratasse da escravidão no
Brasil. Eu estava obviamente interessado em falar sobre o passado racial do
Brasil, mas não apenas para contar uma historinha, mas sim para mostrar como isso
influenciou a formação do Brasil de hoje. Uma das coisas que nós conversamos
foi como muitas pessoas de classe baixa são negras, e como as classes que
comandam o país são brancas. Tom me contou sobre uma revista (Isto É ou Época) que mostrava as 100 pessoas “mais importantes”, “mais
influentes” no Brasil. Daquelas 100, me lembro que apenas duas eram negras. Então
fomos conversando. Tom me contou que trabalhava por dois anos como jornalista no
Complexo da Coréia (localizado na Zona Oeste do Rio, formado pelas comunidades
Coréia, Jabour, Rebu, Taquaral e Vila Aliança). Tom falou como foi ganhando a
confiança dos moradores de lá, primeiro do pastor e depois dos próprios traficantes.
Ambos concordamos que isso daria um excelente documentário. Foi aí que surgiu a
ideia de Dançando com o diabo.
BoletimNPC: Mas antes de vir ao Brasil, você teve uma história escrevendo para Direitos
Humanos, filmou Anne Frank Remembered…
Você poderia contar alguma história que tenha presenciado e que tenha te
marcado muito?
JB: Bem,
em 1975 eu estava em Angola durante a guerra civil. Logo depois da Revolução
dos Cravos, em Portugal, o novo governo português reconheceu a independência das
colônias (Moçambique, Angola, Guiné, São Tomé e Cabo Verde). Em Angola
seguiu-se uma guerra civil muito séria. Nessa época três organizações estavam
disputando o poder. Unita, MPLA e FNLA. O primeiro apoiado pelos chineses; o
segundo pela Rússia; e FNLA, por fim, pelos estadunidenses. Essas organizações
lutavam entre si para ver quem conseguia hegemonia. Eu tinha chegado
recentemente em Luanda para cobrir a guerra, era verão de 1975. Eu fui até onde
estava o MPLA para mostrar minhas credenciais de imprensa. Enquanto esperava, notei
uma multidão se formando, e eu vi dois soldados do MPLA trazendo um prisioneiro
para fora de uma casa. Eles atravessaram a rua com eles, passaram pela
multidão, e levaram para uma outra casa do MPLA. A multidão foi ficando
furiosa. Alguns minutos depois uma segunda pessoa foi trazida pelos policiais.
E então as pessoas começaram a xingar e tentar atingir os prisioneiros. Quando
trouxeram mais dois prisioneiros, a multidão finalmente atacou. Eu tirei
algumas fotos, e pensei como agir nesse momento... Nessa guerra civil, eu
simpatizava com o MPLA, como o grupo que mais representava a população, politicamente
defendiam o que eu pensava também. Se eu escrevesse sobre esse evento para os
jornais que eu representava, The Sunday Times,
The Economist, como isso seria observado pelo resto do mundo? Porque não
permitiria pensar criticamente sobre isso. O fato é que algumas pessoas foram
mortas pela multidão.
BoletimNPC: E o que você fez?
JB: Eu
acabei escrevendo sobre isso. Sabe por quê? Porque eu pensava que, se queriam
começar a construir uma nova democracia, precisavam construir com igualdade e
justiça para todos. Isso me fez pensar também na minha relação com a África do
Sul. Naquele momento, cerca de nove anos depois de ter deixado meu pais, eu pensei
que poderia retornar se lá houvesse uma real democracia.
Bem, eu penso que como jornalista, documentarista,
enfim, como amigo da sociedade que meu dever é criticar; é mostrar o que está errado
para ser consertado. Isso tem sido o que eu tenho tentado fazer com minha
carreira ao longo desses anos. Fazendo trabalhos em defesa dos direitos
humanos, percebi que racismo, anti-semitismo, preconceitos em geral, problemas
econômicos e sociais, todos esses são assuntos que interessam a todos nós como
seres humanos. Se eu puder contar pequenas histórias de pessoas envolvidas
nessa situação, eu acredito que talvez possamos mostrar o que nunca aparece, e talvez
tentar mostrar como fazer desse mundo um lugar melhor.
BoletimNPC: Bem, e você escolheu fazer filmes para isso. Vamos começar a falar de Dançando com o Diabo. Como vocês
chegaram até os personagens do filme?
JB:
Acho que o Tom pode contar melhor como foi isso. Afinal essa história é
dele, não é minha.
TomPhillips: Bem,
no final de 2006, início de 2007 eu conheci um traficante do Rio bem famoso na
década de 1980/1990. Eu já o havia conhecido quando ele estava preso, mas dessa
vez ele estava vestido de evangélico. Aí eu perguntei o que tinha acontecido.
Daí ele quis me apresentar “o cara responsável por salvá-lo” e por ele ter
entrado na Igreja. Esse era o Johnny, o pastor do filme. Eu peguei os contatos
dele, e algumas semanas depois eu me encontrei com ele.
BoletimNPC: Como chegou até ele? Já estava no Brasil?
TP: Eu
sou jornalista correspondente do The
Guardian, e estou no Brasil há uns seis anos. Procuro contar pequenas
histórias como o Jon falou. Então eu fui conhecer esse pastor, o Johnny, com a ideia
de fazer uma matéria para o Guardian
sobre ele, e foi o que eu fiz. Fiz acompanhado do Douglas, fotógrafo que
trabalha comigo, acompanhando o trabalho dele, visitando as comunidades...
BoletimNPC: A ideia dele é salvar os outros como
foi salvo?
TP: Exato.
E então começamos a perceber que tínhamos acesso a realidades que a grande
maioria das pessoas, e principalmente dos jornalistas, nunca viu. Conversando
sobre isso, tivemos a impressão de que tínhamos a chance de mostrar algo que
muita gente não tem a oportunidade de ver. Então eu e o Douglas (Enes), fotógrafo
que trabalha muito comigo, começamos a ir lá muito, toda semana, várias vezes
por mês. Fomos acompanhando, com a ideia
de começar a filmar algumas coisas, ele fotografando, registrando, e eu escrevendo
algumas coisas sobre o que via. Foi nessa época que eu conheci o Aranha, um dos
chefes da comunidade. Passou um ano e pouco...
BoletimNPC: Você se assumiu sempre como jornalista?
TP: Sempre,
nunca menti. Eu acho que tinha uma facilidade maior por ser jornalista de fora
do que qualquer repórter daqui, principalmente os dos jornais cariocas, que não
têm acesso. Um dia eu fui lá, fui apresentado ao Aranha, me apresentei, contei
que estava fazendo um trabalho sobre a comunidade, ele apertou minha mão e
disse que eu era bem vindo porque estaria levando o bem para a comunidade.
Então eu conheci o Jon, que me chamou para trabalhar nesse primeiro filme sobre a
herança da escravidão – que acabou não acontecendo. Saímos para jantar um dia,
e ele se interessou por esse meu projeto.
BoletimNPC: Quando Jon veio primeiro ao Brasil?
JB: Em
dezembro de 2007. Vim para esse projeto sobre a escravidão, sentamos em um bar e
então Tom me contou sobre este outro trabalho com o pastor Jonny. Foi assim que
começamos a trabalhar juntos. Chegamos a ir a Salvador para o primeiro filme,
que nunca chegou a acontecer por falta de dinheiro.
BoletimNPC: O que viram em Salvador?
JB: Visitamos
partes históricas da cidade, conversamos com pessoas envolvidas com Direitos
Humanos, afrobrasileiros envolvidos em políticas públicas. Passamos por lugares
por onde os escravos eram transportados. Não conseguimos dinheiro suficiente,
mas alguma verba. Então minha companhia completou essa quantia, e decidimos
fazer esse filme sobre essa situação nas favelas. Não podíamos demorar muito
com isso, porque quanto mais esperássemos, mais as coisas mudariam. Isso ficou
claro quando um dos principais personagens do nosso filme, um traficante
chamado “Jogador”, foi assassinado pela polícia. Essa era a situação difícil de
sempre. Por isso tivemos que correr.
BoletimNPC:Li que muitos dos que aparecem no filme morreram.
JB: Exato.
Eu e Tom concordamos que seria impossível fazer esse filme de novo. Sei que
muitos jornalistas se arriscam para fazer matérias parecidas com essas. Já que
nós, estrangeiros, estamos tendo acesso a coisas que os daqui não podem, então
temos a responsabilidade de mostrar algo que ninguém tem a oportunidade de ver.
Fico muito feliz quando José Junior (coordenador do Afro Reggae) diz que esse
filme deve ser visto por todos os brasileiros. Apesar de documentário, tem um
forte valor de ficção ao contar histórias. Ele é muito visual, e a trilha
sonora é muito forte. Em meu trabalho como cineasta, penso que as pessoas devem
querer assistir e, quando verem, sentirem que valeu a pena, que tem seu valor. Ninguém
tem que assistir a nada, é uma escolha que temos que estimular.
BoletimNPC: No filme você entrevista pessoas
reais, que se emocionam, são sinceras... Eu penso que é uma abordagem diferente
da usual, porque você humaniza essas pessoas...
JB: O
que eu posso dizer é que este filme não está tentando contar a história a
partir do nosso ponto de vista. Tenta dar a essas pessoas a oportunidade de
contar suas próprias histórias, a partir de seus lugares. Frequentemente,
quando se abre um jornal sempre que se fala sobre favela ou tráfico há um
adjetivo negativo, como “violento”, “diabólico”, “mau”, qualquer outra palavra.
Às vezes esses termos também se referem à polícia, eu sei. E nós não fizemos
isso. Deixamos essas pessoas, traficantes, policiais e pastores mostrarem seus
próprios sentimentos. O que descobrimos, acredito, é que são todos seres
humanos. Eles sabem que não são os vencedores nessa batalha. Não é uma questão
individual. O tráfico pode mandar alguns homens; a polícia pode matar alguns;
mas nenhum deles é um vencedor. Quem diz isso é o Hélio Luz, na época chefe de
Polícia Civil, que foi entrevistado nesse filme. Eu concordo quando ele fala
que essa “guerra” nas favelas é na verdade uma questão de status quo, para manter as coisas do jeito que estão. Os dois
lados, polícia e traficantes, são vítimas nessa história.
BoletimNPC: Qual você diria que foi a razão
para se fazer esse filme?
JB: Quando
Tom me contou sobre esse acesso que tinha, me pareceu que isso era um
privilégio. Nossa ideia foi fazer um filme importante e, ao mesmo tempo,
interessante. A melhor maneira de se fazer esse filme e contar essa história é
dar voz a eles, aos próprios personagens. Você tem que ser honesto com essas
pessoas, conquistar a confiança deles. Não quero que eles assistam ao filme e
se sintam infelizes depois. Quero ter a tranquilidade de mostrar que eu fiz o
que eu disse que ia fazer. Acredito que consegui fazer isso. TP: O interessante é fazer com que
se reconheçam no filme, dizendo as coisas em que acreditam.
Boletim NPC: Você, Tom, que esta há mais tempo aqui no Brasil, qual a diferença que
sente entre esse filme e outros que tratam das favelas? Você vê alguma
diferença entre esse documentário e outros filmes sobre essa temática?
TP:
Eu não gostaria de comparar esse filme com nada. Acho que o que é novo é que,
pela primeira vez, você pode ver os olhos dessas pessoas. Não acredito que haja
outro documentário em que se veja o brilho no olhar deles. E também é possível saber
como é a vida deles. Um jornalista me disse recentemente que “é uma pena porque
na maioria das imagens o Aranha não estava carregando um grande fuzil”. Bem,
essa é a grande questão. Essas pessoas não vivem carregando suas armas: eles
têm filhos, têm mães, gostam de comer sopa, tem que dormir, ir ao banheiro...
JB:
Uma das cenas mais poderosas para mim tem mais ou menos 1 minuto e meio, talvez
não mais do que isso. É uma entrevista com a mãe do Aranha. E eu achei aquilo verdadeiramente
emocionante, porque as pessoas se esquecem de que cada um desses caras têm uma
mãe. Essa é a realidade. É muito fácil vê-los como apenas crianças com armas, assassinos
ou psicopatas. Mas eles são também filhos de alguém, e essa história é a que quero
mostrar. É uma história do Brasil mas que não é única, pertence a diversos
outros países que têm o mesmo problema com a violência, como os Estados Unidos,
México etc. Eu acho que mostramos algo que não se vê normalmente em filmes
sobre favelas. Há dois outros filmes sobre esse tema que eu sei que estão
passando aqui nesse Festival. Um deles é como “surfar” para fora da favela; e
outro como você pode ser excepcional e sair de lá por causa desse talento
incrível, sendo, por exemplo, jogador de futebol, um cantor fenomenal ou então
dançarino clássico... Enfim, muitos dos filmes sobre favela focam em exceções,
como ser diferente. Mas essa não é a regra geral, e esse filme não faz isso. Mostra
os problemas, como, por exemplo, as soluções que o Estado brasileiro tem usado
para lidar com os problemas de droga. Se você assistir ao filme, e continuar
acreditando nas atuais soluções policiais, militares ou da milícia, então você
perdeu a mensagem.