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Saudades das quarteladas
Por Luiz Gonzaga Belluzzio
No episódio hondurenho, as classes dominadoras e bem falantes do Brasil
varonil retiraram seus coturnos do armário e enfiaram a botas num
pântano semântico. As tormentosas trapalhadas com o significado das
palavras marcaram os comentários, pronunciamentos e conexos a respeito
“da remoção compulsória e involuntária de Manuel Zelaya do exercício
das funções presidenciais”. Aqui me arrisco a mimetizar as cautelas
nativas que perambulam entre o “quase golpe”, golpinho, governo de
fato, governo provisório.
Essas são ape nas algumas, entre
tantas teratologias semânticas banhadas no caldo da hipocrisia genética
e generalizada da turma do andar de cima, outrora chamada, nas colunas
sociais, de anedota e champanhota.
Desde a transição democrática
de meados dos anos 80, esse povo anseia pelo desfecho da desperança sem
mudança ou, como dizia um crítico de Adorno, “a realização das
esperanças do passado”. Assim os senhores da terra concebem o
progresso. A história relata que as eleições diretas sucumbiram diante
das artimanhas e salamaleques do colégio eleitoral. A nau de Ulisses
encalhou nas praias do transformismo à brasileira e os náufragos do
regime militar saltaram alegremente a bordo. O episódio hondurenho
mostra que, ainda hoje, os quase afogados navegam à solta, despojados
das culpas que simulavam depois da derrocada do regime autoritário,
fórmula em que apostavam para consolidar a democracia brasileira. Há
que compreender, portanto, os pruridos linguísticos nascidos,
provavelmente, da negação coletiva e inconsciente da conivência com as
tropas que pisotearam a democracia e o Estado de Direito, desde a
quartelada levada a cabo naquele distante, mas inesquecível 1º de abril
de 1964.
Revisitadas as raízes dos engasgos semânticos, convém
retornar aos fatos ocorridos na República de Honduras. Em sua irritante
persistência, os fatos relatam que Zelaya, alta madrugada, foi retirado
da cama, enfiado no avião e despachado para fora do país. Em qualquer
região civilizada do globo habitada por cidadãos acostumados ao
exercício da democracia e ao respeito às regras do Estado de Direito,
tal cometimento dos gorilas de Honduras, fardados ou não, seria chamado
de golpe.
Há quem argumente, como justificativa para suas
vacilações e tremeliques, que Zelaya preparava um plebiscito para
legitimar sua reeleição, prática expressamente proibida, em cláusula
pétrea, pela Constituição. É certo que a Constituição de Honduras não
permite tais manobras. Mas também é certo que ela apresenta os remédios
legais e não violentos para a destituição da autoridade seduzida pelo
continuísmo.
O professor Pedro Estevam Serrano, da PUC de São
Paulo, em artigo publicado na Folha de S.Paulo mostra que “a alínea 6
do artigo 42 e diversos outros dispositivos da Constituição hondurenha
determinam que a perda de cidadania deve ser aplicada em processo
judicial contencioso e com direito a ampla defesa, observado o devido
processo legal, o que não aconteceu de modo algum no procedimento
adotado pelos golpistas e seus apoiadores.” Ademais, continua o
professor de Direito, “o artigo 102 da Constituição estabelece
expressamente que nenhum hondurenho pode ser expatriado nem entregue
pelas autoridades a um Estado estrangeiro. Ter detido Zelaya ainda de
pijama e tê-lo posto para fora do país de imediato atenta gravemente
contra tal dispositivo”.
A maioria – comentaristas, articulistas
e assemelhados – esmerou-se em escancarar suas reticências ou dúvidas
lancinantes diante da natureza notoriamente truculenta e ilegal das
ações dos beleguins do senhor Micheletti. Resta-nos o conforto de
celebrar as honrosas exceções. Entre elas, raríssimas, está artigo do
jornalista Elio Gaspari, de 30 de setembro, quarta-feira. Gaspari cuida
dos acontecimentos hondurenhos com a simplicidade e a clareza dignas
dos melhores momentos da crítica política e do jornalismo independente.
A posição da diplomacia brasileira fundou-se nos princípios e
práticas consagrados no “nomos da terra”. Cuidou de respeitar as
instituições internacionais e, sobretudo, o direito de asilo, a
despeito das indisciplinas e inconveniências do comportamento do
abrigado."
FONTE: Carta Capital
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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