M%EDdia Dênis de Moraes fala sobre a crise entre Clarín e Governo Kirchner
O
jornalista Paulo Henrique Amorim, do blog Conversa
Afiada, entrevistou o professor Dênis de Moraes, do Departamento de
Estudos Culturais e Mídia da UFF. Ele é autor do livro A Batalha
da Mídia, em que apresenta uma pesquisa feita sobre as políticas de
comunicação propostas e implementadas por governos progressistas da América
Latina. Acompanhou países como Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina, e
até iniciativas mais tímidas como Uruguai e Chile. Na entrevista,
Dênis comenta sobre a crise entre o governo Cristina Kirchner e o grupo Clarín.
Para ele, o pano de fundo é o projeto enviado por Kirchner ao Congresso que
constitui em "uma das mais avançadas e democráticas legislações de
comunicação, elaborada a partir de amplas consultas aos mais diversos segmentos
da sociedade civil argentina". Confira a entrevista.
Professor
Dênis, você evidentemente viu nos jornais a notícia de que os fiscias da
Receita Federal entraram em dependências do grupo Clarín, na Argentina. O fato
foi interpretado imediatamente como represália da presidente
Cristina contra o que o Clarín tem feito como opositor do governo. Eu
gostaria que você mostrasse a origem dessa tensão permanente...
A
gente precisa entender o quadro argentino e latinoamericano de maneira
mais abrangente para nos situarmos. Esse fenômeno de enfrentamento dos governos
progressistas da América Latina aos grandes grupos midiáticos está se
alastrando pelo continente. A gente tem casos semelhantes ocorrendo no Equador,
Bolívia, Venezuela, Argentina, Uruguai, Chile... Portanto há um processo de
resistência da chamada grande mídia a medidas que estão sendo tomadas nos
diversos países, com intensidades diferentes, para tentar pelo menos introduzir
parâmetros novos nos sistemas de comunicação do continente. O caso da Argentina
não me surpreende. Não fico surpreso porque o grupo Clarín, como os demais
grupos, vai ser afetado por essa nova lei de comunicação que a Cristina enviou
ao Congresso. Uma das legislações de comunicação mais avançadas nesse momento
em termos de regulação democrática dos meios de comunicação.
Quais
são os pontos principais desse projeto?
Esse
projeto tem uma metodologia de trabalho extremamente democrática, porque a Casa
Rosada consultou em audiências, inclusive muitas delas presididas por Cristina,
diversos segmentos da sociedade civil, inclusive o empresariado da mídia.
Igreja, sindicato, associações profissionais, federação de jornalistas, mães de
maio, centrais sindicais... Portanto, houve um processo amplo e aberto de
consulta aos diversos segmentos sociais a respeito de que tipo de comunicação o
país precisava. E, seguramente, não é o modelo que está em vigor
lamentavelmente na América Latina, que é um modelo de forte concentração
da mídia, informações e entretenimento, nas mãos de um grupo reduzido de
grandes empresas. Então esse processo gerou um anti-projeto, agora convertido
em Projeto de Lei. Baseia-se em 21 pontos definidos por uma entidade da
sociedade civil, chamada Coalizão para uma Radiodifusão Democrática, que prevê,
por exemplo, a possibilidade de não haver mais a concentração de outorgas
de rádio e TV nas mãos de um mesmo grupo, e também permite regular
negócios de internet... Portanto é uma lei que cobre tanto os meios
tradicionais quanto os novos meios da convergência digital. Impede que haja a
continuação deste modelo em que um mesmo grupo continue tendo não sei quantas
emissoras de TV, rádio, provedores de internet, assim como reserva 1/3 para o
setor públicos; 1/3 para o empresariado privado; e 1/3 para a área social.
Ou seja, propõe um equilíbrio democrático, porque contempla os três grandes
atores.
Outra
medida é a possibilidade de descentralização da comunicação por meio de apoio
público a meios alternativos, comunitários, a TVs regionais, jornais e
rádios comunitários... Apoio bastante intenso à produção audiovisual e
independente. Portanto um conjunto que vai mexer de maneira profunda no sistema
de comunicação da mídia argentina. Isso evidentemente não é do agrado do
patronato latinoamericano da mídia. Por isso eu digo que é a "crônica de
um embate anunciado". Seguramente a resistência na Argentina é a mesma que
acontece no Equador contra as medidas democráticas na Bolívia, Venezuela,
e em países com governos de centro-esquerda mais tímidos, como é o caso de
Tabarez Vazques, do Uruguai, e Michelle Bachelet, do Chile, que também
estão tomando medidas mais tímidas, mais pontuais, mas não menos importantes.
Para
voltar um pouco ao caso da Argentina especificamente. Como você compararia o
alcance e o poder do grupo Clarín ao do grupo Globo no Brasil? É comparável?
Guardadas
as devidas proporções das economias da mídia e do audiovisual nos dois
países, eu coloco ambos em pé de igualdade. São grupos multimídias, com
interesses em praticamente todas as pontas no negócio de informação e
entretenimento.
Quem
é o dono do grupo Clarín?
O
Clarín não foge à regra do quadro latinoamericano das dinastias familiares
que controlam há décadas os negócios da mídia. Como eu mostro em meu livro (A Batalha da Mídia), a
gente observa esse fenômeno das famílias praticamente em todos os países,
inclusive na América Central, não apenas na América do Sul. Elas vão passando
de pai para filho, para sobrinho... Aliás aqui no Brasil isso é bem conhecido.
Na Argentina o Clarín é um desses grupos. Eu entendo que o Clarín joga com
a grande mídia um papel fundamental de desestabilizar o governo da Argentina.
Essa é uma ação articulada para poder permitir a volta de uma coalizão de centro-direita
ao poder na Argentina. Esse processo toma o governo Kirchner como o seu alvo
primeiro. Esse enfrentamento é midiático, é político e é institucional, porque
nas três frentes há esse processo de batalha contra o governo argentino.
Por que no Brasil não existe essa resistência dos governos que você menciona
nos outros países, como Argentina?
Eu
atribuo infelizmente à profunda timidez do governo Lula em seus dois
mandatos em termos de política de comunicação. Houve avanços muito localizados
no plano das políticas de comunicação no Brasil, principalmente na área do
audiovisual, em que efetivamente houve progresso. O governo Lula tem base
parlamentar de sustentação política muito grande. Aqui no Brasil temos o
fenômeno de que os segmentos de centro-direta apóiam e fazem parte do
ministério. Já na maior parte desses países isso não acontece. No Uruguai e no
Chile você tem o consevadorismo muito bem identificado fora da composição,
das coligações. Aqui Lula optou por medidas utópicas. Criou a TV Brasil que,
embora receba críticas preconceituosas por parte do conservadorismo, possui a
meu ver uma programação decepcionante... Então faltou uma visão primeiro
estratégica do Governo para enfrentar o dramático quadro de concentração da
mídia no Brasil, e o nosso caso é amplificado pelo tamanho e pela potência do
país.
O
Governo Lula, então, optou por um processo de convivência com uma legislação de
comunicação profundamente anacrônica no país. Ela favorece o grande
capital midiático, favorece o sistema extremamente perverso de concessões de
licença de rádios e TV -o chamado coronelismo eletrônico, que significa o
vínculo extremamente problemático entre política e concessões de rádio e TV.
Parece que houve um certo temor no Governo Lula nesses dois mandatos de
enfrentar essa questão fundamental que é a comunicação na sociedade
contemporânea. A maioria dos governantes latinoamericanos estão dando
exemplos, com proporção diferente, te de coragem para enfrentar isso.
Infelizmente nosso país está numa posição de retaguarda, muito atrasado com
isso. Estamos com uma certa convivência harmônica, mas na essência as grandes
questões não foram tocadas. E aí está, por exemplo, a legislação de
radiodifusão comunitária que é uma vergonha, uma tristeza. É a mais atrasada na
América Latina. Porque nada foi feito para atualizá-la, modificá-la
e democratizá-la