Entrevistas
Virgínia Fontes: A luta popular hoje deve ser anticapitalista
Por Bárbara
Mengardo, Fernando Lavieri, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues,
Marcos Zibordi, Renato Pompeu, Tatiana Merlino, Wagner Nabuco Fotos: Jesus Carlos A historiadora, pesquisadora do CNPq, professora aposentada da Universidade Federal Fluminense(UFF)
e professora visitante na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
da Fiocruz, no Rio de Janeiro, Virgínia Fontes tem realizado excelentes
estudos e reflexões sobre o Estado, a democracia e o desenvolvimento do
capitalismo no Brasil. Sua contribuição para a compreensão da realidade
brasileira se expressa também nos cursos de formação política tanto nos
espaços acadêmicos e universitários quanto nas frentes de luta dos
movimentos sociais. Nesta entrevista exclusiva para a Caros Amigos,
ela analisa a crise estrutural do Senado, as mudanças processadas pelas
forças do capital nos governos de FHC e Lula, os motivos da
desmobilização dos sindicatos de trabalhadores, os partidos políticos,
as eleições e as possibilidades de avanço das lutas populares, as
quais, para ela, devem estar focadas na luta anticapitalista. Fiquem com a entrevista. Hamilton Octavio de Souza – Para começar, fale sobre você, onde nasceu e como se tornou historiadora e professora universitária. Virgínia
Fontes – Bem, eu sou filha de classe média modesta, aliás de um casal
quase bizarro, meu pai era filho de estivador do cais do porto, único
de uma família numerosa fazendo carreira no serviço público, e minha
mãe era filha de uma família rica decadente do nordeste. Era tudo
contraste. Estudei sempre em escola pública, nasci no Rio,
sou carioca bem brasileira, de pai carioca e mãe pernambucana. Meu pai
era do Banco do Brasil e depois passou para o Banco Central. Só estudei
em escola pública, que eu me lembre, meus filhos também, aliás, isso
foi uma questão de honra. Nasci num bairro muito modesto no Rio de
Janeiro que era Marechal Hermes, depois meu pai melhorou de vida e foi
para Laranjeiras, que é um bairro de zona sul, e aí teve muitos filhos,
não aguentou o tranco em Laranjeiras e foi pra Jacarepaguá. Nós somos 7
irmãos, 3 mulheres e 4 homens. Depois eu saí muito jovem de casa, em
plena ditadura, com 18 anos
e resolvi fazer História porque era uma paixão, era o que eu curtia,
queria entender o mundo, queria pensar o mundo. Quando eu
tinha uns 15 anos eu fui fazer um teste vocacional, porque não sabia
o que eu queria ser e aí o resultado do teste não me ajudou em nada,
dizia que eu era pluri apta, podia fazer o que quiser. Resolvi fazer
escola técnica para ganhar dinheiro, sofri três anos na escola técnica,
descobri que aquilo eu detestava e fui pra História.
Fernando Lavieri - Qual o curso técnico? Eletrônica,
na escola técnica federal, a primeira turma de mulheres, era uma coisa
divertidíssima, em plena ditadura, nessa época eu estava no PCB, saí
logo depois também.
Tatiana Merlino - Seus pais tinham alguma militância política? Não,
nenhuma. Fiquei um tempinho no PCB, bem jovem, entre os 17 e 22 anos,
depois me afastei, por várias razões. Tive filho, casei, separei, me
casei de novo, tive filho. Aí estudava, trabalhava, tinha dois empregos
mais filho mais estudo, então você imagina que era uma vida fácil. Eu
sei bem o que é mulher no mundo contemporâneo: acorda às 6 da manhã,
fica com filho até às 9, embarca para o trabalho, leva as crianças pra
creche, volta, pega as crianças, vai, estuda um bocadinho, enquanto
amamenta lê alguma coisa.
Lucia Rodrigues - A sua militância no PCB foi no movimento estudantil? Foi
no movimento estudantil secundarista. Pouco tempo depois eu me afastei,
esse é um período em que o PCB começa a ser muito perseguido, foi na
segunda metade dos anos 70, e quando começa também a mudar de perfil.
Eu era bastante rebelde, não cabia muito bem, digamos assim, nos
esquemas e me afastei, fiquei mais estudando. Passei uns 10 anos
afastada da militância e mais estudando. Sempre fui muito estudiosa,
então fiz a faculdade de História, depois o mestrado em História na
Universidade Federal Fluminense e depois o doutorado na França com
alguém que virou um grande amigo e que faleceu recentemente, que é o
Georges Labica, que escreveu aquele livro que está saindo pela Expressão Popular (Democracia e Revolução), que tem até uma introduçãozinha minha.
Marcos Zibordi - O que estudou no mestrado e doutorado? História
do Brasil Contemporâneo, Teoria da História e Marxismo, são áreas que
eu trabalhei. Eu continuo nelas até hoje, só que eu acrescentei mais
uma que é História Contemporânea. No mestrado eu fiz uma dissertação
sobre a questão habitacional, na época do fim do Banco Nacional da
Habitação. Depois no doutorado, na França, eu fiz uma tese sobre o
pensamento democrático no Brasil, e agora sou pesquisadora do CNPq. Só
para explicar o que eu estou fazendo há uns 10 anos, venho trabalhando
muito intensamente com formação política no movimento social,
principalmente com o MST. Aliás é uma das atividades da qual eu me
orgulho, é a participação nos cursos que o MST consegue nas
universidades e nos cursos da Escola Nacional Florestan Fernandes.
Trabalhei muitos anos na Universidade Federal Fluminense, onde eu fui
precocemente aposentada por engano da burocracia, não foi engano
malvado, foi engano burro, mas me aposentaram.
Lucia Rodrigues - Como analisa a crise do Senado? Dá para dizer que é uma crise institucional ou é uma briga entre caciques que se desentenderam por vários motivos? Eu
diria que tem as duas coisas, os dois processos não estão separados. Se
a gente for pensar em longo prazo, eu venho analisando isso da seguinte
forma: a partir de 89, mais ou menos, a condição de que seja possível
manter uma estrutura representativa tal como ela existe agora, depende
de conseguir figuras públicas aparentemente limpas, que tenham uma trajetória, não só aparentemente limpas, mas que vêm de
uma trajetória capaz de neutralizar os movimentos sociais, que é mais
importante ainda do que o aparentemente limpas. Vamos lembrar um
pouquinho pra trás que o Fernando Henrique Cardoso, quando foi
candidato, veio de uma trajetória da esquerda, embora a gente já sabia
que o FHC já tinha mudado esta trajetória, porém essa mudança ainda era
incipiente,
uma mudança inicial. Ninguém imaginava que o governo Fernando Henrique
fosse, por exemplo, investir contra os petroleiros da maneira como
investiu, isso era impensável, nem contra os direitos dos
trabalhadores. Portanto, Fernando Henrique neutralizou uma parcela da
intelectualidade de esquerda nessa ida dele para o governo, quem quis
se iludir se iludiu, mas em parte achava que Fernando Henrique já vinha
de uma associação com o PFL, a gente já sabia qual era a associação que
estava feita no começo. Mesmo assim isso permitiu neutralizar setores
de classe média incomodados com o processo, e alguns setores inclusive
de movimentos, de um tipo de movimento social
que é o que eu chamo da filantropia mercantilizada, que são movimentos
que começam populares e vão se tornando pouco a pouco militância paga
em entidades mais ou menos filantrópicas. É quando a questão das
classes sociais no Brasil deixa de ser um problema de classe e começa a
ser um problema de pobreza. Deixa de ser uma questão de luta comum e passa a ser uma questão de filantropia, um problema da pobretologia.
Renato Pompeu – E qual a ligação com o Senado? Isso
é para chegar ao Senado, né. O segundo movimento é o Lula, esse
movimento é mais importante ainda. Se o FHC já cumpre esse papel de
levar para o conjunto das instituições de representação política no
Brasil uma espécie de aparência limpa, apesar do
braço dado com o PFL, a eleição do Lula tem papel muito mais importante
para estabilizar o chamado jogo burguês no Brasil, uma vez que ela
consolida essa trajetória que já vinha sendo feita antes, mas agora com
mais cacife, pois agora traz a CUT,traz
uma parcela grande do PT, liquida politicamente o elo que este partido
tinha com os movimentos de base, não só liquida como converte
essa ligação numa ligação adequada para o jogo político. Lógico que em
todos os casos isso significa que há um adiamento das condições da
crise institucional e há um mergulho desses partidos limpos, entre
aspas, dessas pessoas limpas no mundo da representação razoavelmente
falseada. Acho que isso é um problema grave. Eu discuti isso num artigo
dizendo que o PT
se deslocou do papel ético-político – que o Gramsci sugere – para o
papel de definidor do que seria o papel moral, ainda no governo
Fernando Henrique Cardoso. O resultado disso é que ele perdeu o
horizonte ético, que era o horizonte principal e que devia
estar ligado com os movimentos de base. Portanto eu acho que o problema
do Senado é um problema estrutural nosso, primeiro nós temos uma
estrutura representativa problemática, nós temos um sistema bicameral
que é outro problema.
Lúcia Rodrigues - Você defende a extinção do Senado? Eu
não defendo a extinção do Senado instantaneamente. Do ponto de vista de
uma transformação real da sociedade brasileira isso não virá através
das instâncias eleitorais e nem das instâncias representativas. Nós já
sabemos disso, já temos a experiência, já vimos o que foi eleger o PT
e, sobretudo o Lula mais até que o PT, e ele simplesmente se
converter no mesmo, porque o jogo político é uma máquina de produzir o
mesmo. Então a luta popular tem de saber que ela tem de se manter para
além dos seus representantes, não ser subordinada à representação.
Renato Pompeu - Por que na Bolívia e na Venezuela foi possível surgirem governos transformadores a partir da luta eleitoral? OK,
eu vou chegar lá, deixa eu só terminar o nível do Senado porque eu
acho que isso é uma coisa importante. É pra extinguir o Senado? A
princípio eu acho que sim, eu acho que o Senado, para uma democracia
representativa burguesa limitada, tal como ela é, o Senado não é
necessário. É perfeitamente possível operar de forma unicameral, é
menos não democrático, pois não chega a ser necessariamente mais
democrático. O sistema bicameral é um sistema de controle de uma câmara
alta que controla uma câmara baixa, a câmara que é mais representativa
ela tem um papel menos importante, o filtro fica no Senado. Isso eu não
estou fazendo uma campanha pelo fim do Senado, a campanha que eu faço é
que os movimentos populares saibam que não vai ser via processo
eleitoral que eles vão resolver.
Agora a gente chega ao caso da Bolívia
e da Venezuela: eu acho que tem uma diferença grande sim entre Brasil,
Bolívia, Venezuela e Equador, uma diferença importantíssima que é o
grau de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, e junto com ele a capacidade de organização
burguesa brasileira. Acho que a gente não leva suficientemente em
conta, nós vivemos num país que ao longo do século 20 foram proibidas e
reprimidas na violência as formas de organização populares e dos
setores dos trabalhadores, porémfoi estimulada, apoiada assegurada e garantida a associatividade empresarial.
Marcos Zibordi – O que isso significa? Pra
gente ter idéia do que isso significa, no Estado Novo foi proibida a
livre associação quando o governo baixou o decreto do sindicalismo
corporativista, o decreto também valia para todo sindicato patronal e
de trabalhadores. Enquanto para os sindicatos de trabalhadores esta lei
foi imposta a ferro e fogo, os sindicatos que tentaram se manter contra
o corporativismo foram fechados e os seus sindicalistas perseguidos.
Para o patronato isso nunca aconteceu e eles tinham placa na porta,
eles tinham, têm, pois até hoje existem Fiesp e Ciesp, Firjam e Cirjam.
Em suma, eles mantiveram uma dupla representação, uma que era oficial
institucional e outra paralela, a paralela pode para eles. Então a
gente tem aqui uma violência seletiva popular.
Hamilton Octavio de Souza - O que diferencia a situação brasileira? A
gente tem hoje uma forma de organização burguesa no Brasil que foi
justamente capaz, a partir da década de 90, não apenas de atacar a
espinha dorsal do movimento popular e do movimento dos trabalhadores na
virada dos anos 80 para os anos 90, como
em parte incorporar uma parcela destes movimentos. Isso que eu acho o
mais dramático. Qual foi a estratégia que se usou para isso que nos
distingue bastante da Venezuela e da Bolívia? A estratégia primeira foi
a formação da Força Sindical, que foi a cunha que impôs à CUT uma
adequação na massa. Essa foi a primeira, feita com o apoio patronal. A
segunda foi o volume de demissões na década de 90. A terceira foi a
precarização do trabalho como forma normal. E a quarta, que não é
irrelevante e que tem a ver com o jogo político parlamentar, embora não
apareça, foi exatamente o empresariamento das formas de organização
difundidas no país, que na década de 90 dá um salto enorme com Fernando
Henrique, é o salto das ONGs. A palavra ONG não explica tudo, eu tomo
muito cuidado quando uso, porque ONG é um pedacinho das fundações e
associações sem fins lucrativos, que, segundo o IBGE, são 340 mil no
último censo feito em 2005. Tirando os sindicatos, tem mais de um
milhão de trabalhadores nessas entidades, tem mais que o serviço
federal todo, com salário de
mil reais em 2005. Nós temos uma rede hoje que é uma rede de
organização burguesa. Portanto, diferentemente da Bolívia ou da
Venezuela, onde não houve nenhum espaço de incorporação de nada, onde a
burguesia local é uma burguesia pequena, restrita, uma burguesia com
uma configuração bastante diferente da burguesia brasileira, eu diria
que nós hoje estamos num país capitalista desenvolvido. É o que eu
venho trabalhando. Um país capitalista desenvolvido significa que a
burguesia tem meios, tem recursos, tanto de sedução quanto de
violência, e eles usam os dois. A novidade é que o recurso de sedução
cresceu muito, de convencimento, cresceu a extensão
das bolsas, a extensão dessa rede cultural associativa, é uma dimensão
de convencimento quase capilar, isso está no cotidiano.
[A entrevista completa está na edição de setembro da Caros Amigos].
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