Em entrevista concedida no
Equador, Eduardo Galeano fala sobre o significado do projeto de instalação de
bases militares norte-americanas na Colômbia e sobre o atual momento da América
Latina. Ao mesmo tempo em que região vive um tempo aberto de esperança, diz o
escritor uruguaio, a independência ainda é um projeto inacabado.
Depois de 200 anos da emancipação da América Latina, pode-se falar de
uma reconfiguração do sujeito político nesta região, levando em conta os avanços
políticos que se traduzem em governos progressistas e de esquerda em vários
países latinoamericanos?
Galeano: Sim, há um tempo aberto de esperança, uma espécie de
renascimento que é digno de celebração em países que não chegaram ainda a ser
independentes, apenas começaram um pouquinho a sê-lo. A independência é uma
tarefa pendente para quase toda a América Latina
Com toda a irrupção social que se vem dando ao longo do hemisfério, se
pode dizer que há uma acentuação da identidade cultural da América
Latina?
Galeano: Sim, eu acho que sim e isto passa certamente pelas reformas
constitucionais. Ofendeu a minha inteligência, além de outras coisas que senti,
o horror deste golpe de Estado em Honduras que invocou como causa o pecado
cometido por um Presidente que quis consultar o povo sobre a possibilidade de
reformar a Constituição, porque o que queria Zelaya era consultar sobre a
consulta, nem sequer era uma reforma direta. Supondo que fosse uma reforma da
Constituição, que seja bem vinda, porque as constituições não são eternas e para
que os países possam realizar-se plenamente têm que reformá-las.
Eu me pergunto: o que seria dos EUA se seus habitantes continuassem
obedecendo à sua primeira Constituição? A primeira Constituição dos EUA
estabelecia que um negro equivalia às três quintas parte de uma pessoa. Obama
não poderia ser Presidente porque nenhum país pode ter como mandatário as três
quintas partes de uma pessoa.
Você reivindica a figura do presidente Barack Obama por sua condição
racial, mas o fato de manter ou ampliar a presença norteamericana mediante bases
militares na América Latina não desdiz das
verdadeiras intenções desse mandatário do Partido Democrata, e simplesmente
segue ao pé da letra os planos expansionistas e de ameaça de uma potência
hegemônica como os EUA?
Galeano: O que acontece é que Obama não definiu muito bem o que quer
fazer nem em relação à America Latina, as relações nossas, tradicionalmente
duvidosas, nem tampouco em outros temas. Em alguns espaços há uma vontade de
mudança expressa, por exemplo, no que tem a ver com o sistema de saúde que é
escandaloso nos EUA, se você quebra a perna, tem que pagar até o fim dos teus
dias a dívida com esse acidente.
Mas em outros espaços não, ele continua falando de “nossa liderança”,
“nosso estilo de vida” em uma linguagem excessivamente parecida com as dos
anteriores. Me parece muito positivo que um país tão racista como esse e com
episódios de um racismo colossal, descomunal, escandaloso, ocorridos há quinze
minutos em termos históricos tenha um presidente seminegro. Em 1942, ou seja
meio século atrás, o Pentágono proibiu as transfusões de sangue negro e aí o
diretor da Cruz Vermelha renunciou ou foi renunciado porque se negou a aceitar a
ordem dizendo que todo sangue é vermelho e que era um disparate falar de sangue
negro, e ele, Charles Drew, era negro e um grande cientista, o que fez possível
a aplicação do plasma em escala universal.
Então um país que fizesse um
disparate como proibir o sangue negro ter agora Obama como presidente é um
grande avanço. Mas por outro lado, até agora eu não vejo uma mudança
substancial. Aí está, por exemplo, o modo como seu governo enfrentou a crise
financeira. Pobrezinho, eu não gostaria de estar na sua pele, mas a verdade é
que acabaram recompensando os especuladores, os piratas de Wall Street que são
muitíssimo mais perigosos que os da Somália porque estes assaltam apenas aos
naviozinhos na costa, mas os da Bolsa de Nova York assaltam todo o mundo. Eles
foram finalmente recompensados; eu gostaria de começar uma campanha em princípio
comovido pela crise dos banqueiros com o lema: “adote um banqueiro”, mas desisti
porque vi que o Estado assumiu essa responsabilidade. E da mesma forma com a
América Latina, que parece não ter muito claro o que fazer.
Os EUA estiveram mais de um século dedicados à fabricação de ditaduras
militares na América Latina. Então, está na hora de defender uma democracia como
no caso de Honduras, diante de um claríssimo golpe de Estado, vacilam, tem
respostas ambíguas, não sabem o que fazer, porque não tem prática, lhes falta
experiência, há mais de um século trabalham no sentido oposto, então compreendo
que a tarefa não é fácil. No caso das bases militares na Colômbia, não só ofende
a dignidade coletiva da América Latina, mas também a inteligência de cada um de
nós, porque que se diga que sua função vai ser combater as drogas, por favor,
até quando! Quase toda a heroína que se consome no mundo provem do Afeganistão,
quase toda, dados oficiais das Nações Unidas que todo mundo pode ver na
internet. E o Afeganistão é um país ocupado pelos EUA e como se sabe os países
ocupantes tem a responsabilidade do que acontece nos países ocupados, portanto
tem algo que ver com este narcotráfico em escala universal e são dignos
herdeiros da rainha Vitória que era narcotraficante.
A rainha britânica que introduziu por todos os meios no século XIX o
ópio na China através de comerciantes da Inglaterra e dos EUA...
Galeano: Si, a celebérrima rainha Vitória da Inglaterra impôs na
China ao longo de duas guerras de trinta anos, matando uma quantidade imensa de
chineses, porque o império chinês se negava a aceitar essa substância dentro de
suas fronteiras que estava proibida. E o ópio é o pai da heroína e da morfina,
justamente. Então aos chineses lhes custou muito, porque a China era uma grande
potência que podia ter competido com a Inglaterra no começo da revolução
industrial, era a oficina do mundo, e a guerra do ópio os arrasou, os converteu
em uma piltrafa, aí entraram os japoneses como anel ao dedo, em quinze minutos.
Vitória era uma rainha traficante e os EUA, que tanto usam a droga como pretexto
para justificar suas invasões militares, porque disso se trata, são dignos
herdeiros desta feia tradição. Me parece que já é hora que acordemos um
pouquinho, porque não se pode ser tão hipócrita. Se vão ser hipócritas que o
sejam com mais cautela. Na América Latina temos bons professores de hipocrisia,
se querem podemos em um convênio de ajuda tecnológica mútua emprestar-lhes
alguns hipócritas nossos.
Há exatamente nove anos, você disse em uma entrevista concedida em
Bogotá a mim a seguinte frase: “Deus livre a Colômbia do Plano Colômbia”. Qual é
agora sua reflexão em relação a esse país andino que enfrenta um governo
autoritário entregue aos interesses dos EUA, com uma alarmante situação de
violação de direitos humanos e com um conflito interno que segue
sangrando-o?
Galeano: Além disso, com problemas gravíssimos que se foram
agudizando com a passagem do tempo. Eu não sei, te digo, quem sou eu para dar
conselhos à Colômbia nem aos colombianos, além disso sempre estive contra esse
costume ruim de algumas pessoas que se sentem em condições de dizer o que cada
país tem que fazer. Eu nunca cometi esse pecado imperdoável e não vou cometê-lo. Agora só posso dizer que tomara que os colombianos encontrem seu
caminho, ninguém pode impor-lhes de fora, nem pela
esquerda, nem pela direita, nem pelo centro, nem por nada. Serão os colombianos
que devem encontrá-lo. O que eu posso dizer é que eu testemunho as coisas.
Se há um tribunal mundial que alguma vez chegue a julgar a Colômbia pelo
que se diz da Colômbia: país violento, narcotraficante, condenado à violência
perpétua, eu vou dar testemunho de que não, de que esse é um país carinhoso,
alegre e que merece um destino melhor.
Há muitos anos, talvez umas quatro décadas, havia um personagem em
Montevidéu que se reunia com um jovem desenhista chamado Eduardo Hughes Galeano
com o propósito de lhe dar idéias para a elaboração de suas caricaturas, chamado
Raúl Sendic, o inspirador da Frente Ampla do Uruguai.
Galeano: E o dirigente guerrilheiro dos Tupamaros, mesmo se naquele
momento ainda não o era. É verdade, quando eu era criança, quase catorze anos, e
comecei a desenhar caricaturas, ele se sentava a olhar e me dava idéias, era um
homem bastante mais velho que eu, com certa experiência, e ainda não era o que
foi depois: o fundador, organizador e dirigente dos Tupamaros. Me lembro o que
disse a Emilio Frugoni que naquela época era dirigente do Partido Socialista e
diretor do semanário em que eu publicava umas caricaturas precoces, assinalando
para mim: “Este vai ser ou presidente ou grande delinquente”. Foi uma boa
profecia e terminei sendo grande delinquente.
O fato de que hoje a Frente Ampla está governando o Uruguai e que um
ex-guerrilheiro como Pepe Mujica tenha possibilidade de ganhar as eleições
constitui uma reivinidicação à memória de Sendic?
Galeano: Sim e de todos os que participaram em uma luta longa para
romper o monopólio de dois, exercido pelo Partido Colorado e pelo Partido
Nacional durante quase toda a vida independente do país. A Frente Ampla surge há
pouco tempo no cenário político nacional e me parece muito positivo que esteja
governando agora, aparte de que eu não coincida com tudo o que se faz e além
disso creio que não se faz tudo o que se deveria fazer. Mas isso não tem nada
que ver porque finalmente a vitória da Frente Ampla foi também uma vitória da
diversidade política que eu creio que é a base da democracia. Na Frente
coexistem muitos partidos e movimentos diferentes, unidos claro em uma causa
comum, mas com suas diversidades e diferenças, e eu as reivndico, para mim isso
é fundamental.
O que representa para você como uruguaio o fato de que um dirigente
emblemático da esquerda como Pepe Mujica, ex-guerrilheiro tupamaro, tenha amplas
possibilidades de chegar à Presidência da República?
Galeano: Com alguma sorte, não vai ser fácil, vamos ver o que
acontece, mas eu acho que é um processo de recuperação, as pessoas se reconhecem
justamente no Pepe Mujica porque ele é radicalmente diferente dos nossos
políticos tradicionais, na sua linguagem, até no seu aspecto e tudo o mais, por
mais que ele tratou de se vestir como cavalheiro fino, não cai bem nele, e
expressa muito bem uma necessidade e uma vontade popular de mudança. Acho que
seria bom que ele chegasse à Presidência, vamos ver se isso acontece ou não. De
qualquer maneira, o drama do Uruguai como o do Equador, certamente, país em que
estamos conversando neste momento, é a hemorragia de sua população jovem. Ou
seja, a nossa é uma pátria peregrina; no seu discurso de posse o presidente
Rafael Correa falou dos exilados da pobreza e a verdade é que há uma enorme
quantidade de uruguaios muito mais do que se diz, porque não são oficiais as
cifras, mas não menos de 700 ou 800 mil uruguaios em uma população
pequeniníssima, porque nós no Uruguai somos 3 milhões e meio, essa é uma
quantidade imensa de gente fora, todos ou quase todos jovens, então ficaram os
velhos ou as pessoas que já cumpriram essa etapa da vida em que a gente quer que
tudo mude para se resignar a que não mude nada ou que mude muito pouco.
Depois de seus reputados livros “As veias abertas da América Latina”,
publicado em 1970, e “Espelhos”, editado em 2008, que relatam histórias da
infâmia, o primeiro sobre nosso continente e o outro de boa parte do mundo, há
espaço para continuar acreditando na utopia?
Galeano: O que faz “Espelhos” é recuperar a história universal em
todas suas dimensões, em seus horrores, mas também em suas festas, é muito
diferente de “As veias abertas da América Latina”, que foi o começo de um
caminho. “As veias abertas” é quase um ensaio de economia político, escrito em
uma linguagem não muito tradicional no gênero, por isso perdeu o concurso da
Casa das Américas, porque o jurado não o considerou um livro sério. Era uma
época em que a esquerda só acreditava que o sério era o chato, e como o livro
não era chato, não era sério, mas é um livro muito concentrado na história
política econômica e nas barbaridades que essa história implicou para nós, como
nos deformou e nos estrangulou.
Em compensação, “Espelhos” tenta abordar o mundo
inteiro recolhendo tudo, as noites e os dias, as luzes e as sombras, são todas
histórias muito curtinhas, e há também uma diferença de estilo. “As veias
abertas” tem uma estrutura tradicional, e a partir daí eu tentei encontrar uma
linguagem própria minha, que é a do relato curto, tijolos coloridos para armar
os grandes mosaicos, um estilo como o dos muralistas, e cada relato é um pequeno
tijolo que incorpora uma cor, e um dos últimos relatos de “Espelhos” evoca uma
recordação da minha infância que é verdadeiro; é que quando eu era pequenininho
acreditava que tudo o que se perdia na Terra ia parar na Lua, estava convencido
disso e me supreendeu quando chegaram os astronautas à Lua porque não encontraram
nem promessas traídas, nem ilusões perdidas, nem esperanças rompidas, e então eu
me perguntei: se não estão na Lua, onde estão? Será que não estão aqui na terra,
esperando-nos?
Tradução: Emir Sader