Entrevistas ‘Guerra santa’ entre emissoras expressa nova fase do capitalismo
[Por Aline Scarso/ Radioagência NP] Globo e Record têm trocado ataques em pleno horário nobre da televisão
brasileira. As agressões foram motivadas pela denúncia de formação de quadrilha
e lavagem de dinheiro contra o bispo Edir Macedo e mais nove dirigentes da
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A denúncia feita pelo Ministério
Público Federal (MPF) afirma que os acusados usam as doações dos fiéis para
benefício próprio.
Enquanto o fundador da Universal e dono da Record,
Edir Macedo, é incriminado pela Globo por supostos atos de corrupção, a Record
relembra as ligações da empresa da família Marinho com a ditadura militar.
Esta não é a primeira vez que Globo e Record trocam agressões sob o
pretexto de divulgar informações públicas ao telespectador. Desde que a Record
despontou como uma concorrente de peso da Globo, as duas das maiores empresas de
comunicação do país têm praticado o que os especialistas da comunicação chamam
de “guerra santa”.
Em entrevista à Radioagência NP, o professor de
jornalismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Silvio Mieli,
analisou o caso. Ele afirma que a briga entre as duas emissoras é expressão de
uma nova fase da reorganização do capitalismo mundial.
Radioagência NP
– Como você avalia o caso Globo versus Record? Silvio Mieli –
Não acho que a análise dessa briga cíclica entre a Globo e a Universal tenha que
ser tratada somente do ponto de vista legalista, do enriquecimento ilícito dos
dirigentes da Igreja, por exemplo. Teríamos que avançar um pouco. Não vou fazer
uma separação entre essas duas empresas. Elas têm mais pontos em comum do que
fatores que as distinguem. Elas atuam, segundo o meu ponto de vista, no mesmo
mercado da capitalização dos corpos, das almas e do imaginário. Eu acompanhei o
crescimento da Globo, desde pequeno eu assisto a emissora e, de vinte anos para
cá, eu também acompanhei o crescimento das Igrejas Pentecostais. A imagem que
tenho do fenômeno é de um arrastão, um arrastão político, social e do
imaginário. Acho que os neopentecostais sacaram uma outra realidade e é isso que
preocupa a Globo. Ela percebe que está perdendo terreno para um pessoal que está
muito a frente na percepção de como o capitalismo funciona hoje.
E como o capitalismo estaria funcionando hoje? SM – A partir
do surgimento da Universal, nós passamos para um outro patamar. Ela eliminou
intermediários, ela percebeu que o negócio era ir direto ao ponto. Foi
exatamente o que aconteceu com as outras igrejas. Elas atuaram em outras
frentes, atingindo outros públicos. Algumas atingiam mais a classe média, outras
ficaram com os públicos C e D, mas sempre através da mesma prática: da ocupação
de espaços existenciais, das carências e aproveitando essa falta crônica de
espaços de socialização. Além do valor de uso e do valor de troca, que são
velhos e bons conceitos marxistas, a briga entre essas gigantes [Globo e Record]
evidencia esse terceiro elemento [ocupação do espaço das carências da
população]. Sem entender esse elemento do capitalismo contemporâneo, fica
difícil entender esse arrastão que elas [igrejas neopentecostais] fizeram.
Essa forma mais sofisticada de entender a atual fase do
capitalismo seria, então, a diferença entre a Record e a Globo? Ambos são instrumentos de captura. Só que enquanto a Globo fisgava o
telespectador por seu padrão de qualidade – essa coisa gigantesca que aprendemos
a ter uma devoção quase religiosa, algo que está acima do bem e do mal –, a
Universal, a Record, passou a capturar o fiel telespectador pelo dispositivo
claro do culto ao dinheiro. Em ambos os casos, quem entendeu bem foi o [filósofo
e sociólogo] Walter Benjamin, chamando o capitalismo de um fenômeno
essencialmente religioso. [Para ele], havia uma relação entre religião e
capitalismo. Essa relação está presente tanto na Globo quanto na Universal
[Record]. Uma foi a fase gloriosa da Globo. Só que a outra é a fase que é
exatamente essa área dos pentecostais, que potencializaram o modo de avançar
sobre o imaginário.
Como a Globo está se posicionando diante
desse quadro? SM – É exatamente esse o motivo de desespero da
Globo. Ela, mais do que qualquer outra empresa no Brasil, soube ocupar espaços.
Isso vem sofrendo mudanças e essa ideia da Globo de ser a voz sagrada do país
também está mudando. Existe ainda um aspecto de influencia da Globo muito
grande, mas modificado e alterado. Existe uma tentativa da emissora de se
aproximar da universidade de um modo assustador, fazendo parcerias para ver se
consegue com instituições – que ela nunca deu bola na vida dela – fazer uma
mudança de sua imagem.
Você afirmou que essa “guerra santa” é
expressão de uma nova fase de organização do capitalismo no Brasil. Como os
telespectadores podem reagir a isso? SM – Eu acho que temos
que nos aprofundar muito sobre isso, porque se não, sempre estaremos a reboque
de um tipo de discussão que é pautado pelas empresas. Se nós não queremos
participar desse mundo com um baixíssimo nível simbólico, temos que começar a
entender o processo e colocar em prática uma outra lógica. Inclusive, com
valores simbólicos de outra natureza: boas e velhas tradições culturais que,
lentamente, podem colocar em prática uma nova estrutura. É minha visão otimista.
Meu lado pessimista indica que essas coisas [“guerras santas”] ainda vão crescer
muito.