Por NPC Para Marildo Menegat, a lógica do capital naturaliza todas as formas de injustiça
Por Katarine Flor 25.06.09
Marildo
Menegat é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde
atualmente trabalha como professor adjunto. Em entrevista para o BoletimNPC,falou sobre as relações desumanas naturalizadas pela lógica da
sociedade capitalista. Ele acredita que “se uma sociedade não é transformada de
forma revolucionária quando seus limites estruturais se apresentam, ela vai
decaindo lentamente num quadro social que cada vez mais se confunde com uma
regressão”. E identifica este processo como “barbárie”.
Boletim NPC - De que
maneira a organização do mundo capitalista é um empecilho para uma sociedade
mais humana e solidária?
Marildo Menegat- O capitalismo é uma forma
social fundada na relação abstrata de produtores independentes e autônomos de
mercadorias, isto é, uma forma de produção que apenas se torna social
indiretamente, por meio de uma esfera caótica que é o mercado. Na lógica desta
sociedade, a competição é seu modo dinâmico de ser. Por esta razão, para que os
indivíduos possam sobreviver, precisam se dispor a uma luta permanente – e
desumanizadora - de todos contra todos (ela se impõe na relação entre os
diferentes proprietários para a disputa de mercados, ela se impõe na relação
entre os países centrais e os periféricos e ela se impõe na busca de trabalho
num mercado impessoal que cada vez mais emprega poucos).
Esta
forma social, ou se preferirmos, este ser social em sua imediaticidade não
produz solidariedade. Para que esta lógica funcione são necessárias algumas
explicações. A primeira é que, como diz Marx, por hábito, costume e apagamento
da história e memória comum, esta forma de vida social parece natural para seus
membros. Ou seja, ela parece corresponder à mais elevada racionalidade e ser
adequada à natureza humana. Esta naturalização foi um processo histórico cuja
idade é a própria afirmação e imposição das relações capitalistas de produção. Em
segundo lugar, como esta violência da origem do capitalismo foi um fato do
passado, e o presente está legitimado pela ordem econômica e suas leis, da qual
deriva que as coisas (mercadorias, dinheiro, capital) dominam as relações
humanas, decorre deste fato que a desumanização pareça ela mesma natural. Não
fosse isso a fome, a exploração e todas as formas de injustiça seriam
estranhadas por todos e tomadas como inaceitáveis.
Dito
isso, o capitalismo seria uma gélida Sibéria (na verdade ele é, mas trata-se de
indicar apenas uma aparência) se não houvesse espaços de solidariedade. Sejam
os espaços familiares, as associações, as formas coletivas de ação política
etc. Em níveis diferentes, estes espaços comportam laços que não passam pela
mediação de coisas. Mas esta não é a lógica dominante. A dominante é a que eu
expliquei anteriormente. Solidariedade no capitalismo só pode existir como uma
força para suprimi-lo.
Boletim NPC - Uma das
contradições do capitalismo é que ele visa aumentar a produção de bens de
consumo e diminuir o trabalho humano. Este sistema contribui para aumentar o
desemprego. Como o senhor vê esta situação e isto tem alguma relação com a
violência nos centros urbanos?
MM- Esta é a contradição de
uma sociedade regida pela incessante acumulação de capital. Ela não tem outra
razão de ser que não seja transformar valor em mais-valor. É a própria forma de
ser desta sociedade. Como o valor é produzido numa relação de competição, para
ser levada adiante esta razão de ser, os capitalistas individuais são obrigados
a revolucionar permanentemente as forças de produção. Esta contradição é um
limite intransponível do capital. O que já está acontecendo é que num certo
momento não se produz mais valor na escala do capital acumulado.
Explicando
isso melhor: sabemos que para produzir valor é necessário o emprego de trabalho
humano. Sem trabalho vivo, quer dizer, se somente as máquinas produzissem (e
elas são trabalho morto acumulado), não haveria mais a produção de um átomo de
valor. O que aconteceria? Pois então, em linhas muito gerais é isso que está
acontecendo. Dizer que o capitalismo bateu num limite intransponível não
significa dizer que ele vai acabar amanhã. O modo de produção escravista
antigo, o Império Romano já havia entrado em coma profunda no século III, mas
sua queda apenas ocorreu no século V. Também não estou dizendo que com o
capitalismo será a mesma coisa.
Veja,
e isto responde sobre a violência, se uma sociedade não é transformada de forma
revolucionária quando seus limites estruturais se apresentam, ela vai decaindo
lentamente num quadro social que cada vez mais se confunde com uma regressão.
Eu chamo este processo de barbárie. Ele não é um mero retorno à natureza, como
ocorreu em certos aspectos da decadência do modo de produção escravista antigo,
mas é a dissolução passiva de uma forma social cujas contradições chegaram ao
limite, sem que houvesse uma forma coletiva de ação capaz de produzir uma
transição à outra forma de vida social.
Boletim NPC - Recentemente
alguns movimentos sociais tem acusado o governo estadual e municipal de
fascista. O senhor concorda com este ponto de vista?
MM- O fascismo foi uma
resposta à crise de algumas sociedades nacionais européias diante da ameaça de
dissolução de suas formas dinâmicas de acumulação de capital. Mas naquele
momento, primeira metade do século XX, havia vigorosas formas coletivas de ação
que apresentavam programas de transição ao socialismo. Era uma dissolução que
recebia uma resposta ativa de parte da sociedade. Além disso, aquela crise do
capitalismo era diferente da atual. Ela foi uma crise sistêmica muito grave,
mas ainda não era uma crise estrutural como esta. Assim, tanto pelo caráter da
crise, como pelo sentido passivo da dissolução das relações sociais, o fenômeno
político que já está a postos para enfrentar esta situação, sem a menor chance
de reverter o que está ocorrendo, merece um nome novo. Ele em diversos aspectos
já é bem mais brutal do que o fascismo.
Boletim NPC - Gostaria que
o senhor trouxesse uma reflexão sobre a violência urbana. E qual a relação da
mídia comercial nesse processo?
MM-
A violência numa sociedade que se dissolve passivamente, ou seja, na ausência
de formas coletivas e revolucionárias de ação capazes de dar outro destino a
este fenômeno, se manifesta em inúmeras esferas e de diferentes formas. O mundo do trabalho se tornou há muito uma
fábrica de horror. A pressão para manter o emprego, a perda de direitos
elementares, o stress permanente e as doenças funcionais revelam que “trabalhar
tem feito muito mal a saúde”.
A
violência nesta esfera parece ter sido “compensada” pela onipresença da
violência do que ficou irreversivelmente fora do mundo do trabalho. Sobre isso
é necessário se fazer duas observações. A primeira é que o desenvolvimento das
capacidades humanas e das forças produtivas não requer mais que passemos a
maior parte da nossa vida dedicando-nos ao trabalho. Marx nos seus cadernos de
rascunho para escrever o capital observa este processo e tem diante dele uma
postura afirmativa. Para ele o socialismo era uma sociedade cuja riqueza de
seus membros seria medida pelo tempo livre, ou, se preferirmos, pelo nível de
realização daquilo que ele chamou de individualidade rica. A segunda observação
é que o desemprego em nossa época, e isto é um dos sintomas mais salientes da
crise estrutural do capitalismo, não é um produto do fim de um ciclo ou de uma
onda de expansão da economia. É um desemprego que não tem solução dentro dos
marcos desta forma social e deste modo de produção industrial. Nas próximas
décadas ele só crescerá.
Ora,
o que é a violência urbana então? Nesta sociedade, ou vendemos algo, ou temos o
dinheiro para comprar. A imensa maioria tem apenas sua força de trabalho para
vender. Não havendo mais postos de trabalho decentes para ao menos “quase
todos”, os que não encontram trabalho precisam buscar formas para sobreviver,
digamos, pouco ortodoxas para uma sociedade como a burguesa. Estas estratégias
de sobrevivência, como diz Vera Malaguti, são criminalizadas. Elas vão desde a
venda de discos e dvd’s piratas até o comércio de drogas ilícitas e etc.. Esta
é a economia política de tempos de barbárie. Com ela é retomado a violência da
origem do capitalismo dos séculos XV e XVI como uma necessidade fundamental
para manter a ordem do todo que sempre se estruturou em relações mercantis.
Precisamos fazer a crítica da economia política destes tempos agravados (ou
decorrentes da) pela crise estrutural do capitalismo. Nesta crítica deve estar
incluída, como um capítulo especial, a crítica à mídia.
Boletim NPC - O senhor
acredita que existem exemplos práticos de uma nova maneira de organização
coletiva?
MM- O MST é uma boa resposta
para sua pergunta. Ele faz de sua luta, de suas formas de organização, enfim,
de todo o processo de confronto uma escola, incluindo nele inclusive aquele
momento da escola formal. O MST luta para que suas crianças possam ser educadas
para as condições em que elas vivem. Ou seja, a educação para elas deve ser um
modo de libertação, e não uma entediante lengalenga que não passa por uma
peneira filtrando de fato a erudição e o conhecimento que são necessários para
nos tornarmos seres humanos emancipados, e não este boi de engorda passivo e
inculto que a escola burguesa produz.